Os fantasmas que escrevem os
livros dos famosos
08.05.2016 às 10h00
MERCADO. Sara Rodi é uma das
ghost-writers mais solicitadas. Para dar vazão às solicitações criou uma
empresa de escritores-fantasmas — A Bem Escrito
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Escrever livros nunca esteve tão
na moda. As editoras querem que as vedetas de televisão sejam o rosto dos seus
best-sellers. Mas, para isso, muitas vezes são contratados
escritores-fantasmas. Revelamos aqui alguns
Texto
Fotos
Decerto já comentou ou ouviu a
frase batida: “Parece impossível. Agora qualquer um escreve um livro!” Essa
ideia pode aplicar-se mais do que nunca ao mercado literário português. Basta
uma breve olhadela pelos escaparates das livrarias para se dar conta da
quantidade de apresentadores de televisão, atores, músicos, jogadores de
futebol e treinadores, médicos, nutricionistas, políticos, economistas e tantos
outros escritores improváveis que assinam autobiografias, revelam como
superaram momentos difíceis de dor ou doença e, nalguns casos, partilham
conhecimentos técnicos da sua área.
Estes livros comerciais têm um
denominador comum — são assinados por personalidades conhecidas do grande
público, que estão num momento particularmente mediático e têm revelações
privadas para fazer ou algo a dizer sobre as tendências sociais que estão na
berra — seja sobre alimentação saudável, dietas milagrosas ou exercícios que
prometem deixá-lo em forma.
Escrever livros nunca esteve tão
na moda. E é aqui que o véu se levanta. À parte algumas vocações literárias
menos conhecidas, o que talvez não saiba é que grande parte dessas obras são
escritas por ghost-writers, ou escritores-fantasmas, pessoas que emprestam a
sua pena e o seu talento para que a prosa saia bem e a história seja contada
com a qualidade literária necessária e no prazo certo.
Neste pacote estão também
incluídos livros de ficção pretensamente escritos por certas vedetas da TV, mas
que na verdade são da autoria dos ghosts, invisíveis aos olhos do público. As
editoras querem associar um rosto mediático a um título que venda. E todas as
partes saem a ganhar. Talvez aqui o leitor seja o único defraudado. Espantado?
São as regras do jogo no mercado das editoras.
E como o segredo é a alma do
negócio, o nome destes fantasmas da escrita nem aparece na ficha técnica (ou se
aparece é de forma discreta na qualidade de ‘colaborador’) para que a ilusão da
proximidade do leitor com a figura pública visada não saia beliscada e as
vendas sejam um sucesso.
Um dos casos mais famosos da
história que foi assombrado por um fantasma da escrita é o do livro “Retratos
de Coragem” (originalmente intitulado “Profiles In Courage”), assinado por John
F. Kennedy, em 1955. Nele Kennedy apresentou um relato verídico de oito
esquecidos atos heroicos levados a cabo por patriotas americanos em diferentes
períodos na história dos Estados Unidos. O livro tornou-se de imediato leitura
obrigatória, transformou-se num clássico e chegou a ser galardoado com o Prémio
Pulitzer, em 1957. Mas como a verdade é como um corpo morto no mar, vem sempre
ao de cima, em 2009, Theodore Sorensen, conselheiro do ex-Presidente dos EUA,
confessou a alegada autoria da dita obra na autobiografia “Conselheiro”
(“Counselor”). Não é caso único mesmo entre a literatura considerada mais
séria. São decerto milhares de páginas biográficas e de ficção que foram da
autoria desses invisíveis da literatura que os leitores desconhecem.
Polémicas à parte, o mistério e o
segredo que rodeiam estes escritores na sombra já inspirou as mais variadas
histórias na literatura e no cinema. É o caso de “Budapeste”, de Chico Buarque,
que conta a vida de José Costa, um ghost-writer especialista em escrever
cartas, artigos e livros para terceiros e, mais recentemente, “O Fantasma”, de
Robert Harris, com adaptação para o grande ecrã de Roman Polanski no filme “O
Escritor-Fantasma” (2010). Um thriller em redor da vontade de um ex-primeiro
ministro britânico em ter um ghost que lhe escreva a biografia. O filme começa
com a morte de um ghost-writer — que se suspeita ter sido assassinado — e a
urgente necessidade do político em contratar outro para terminar a tarefa.
No mercado anglo-saxónico há
muito que estes fantasmas fazem parte da estrutura da máquina editorial. Por cá
o mercado também não os dispensa. E, quanto a isso, seguramente há um antes e
um depois da publicação da autobiografia “Eu, Carolina”, por Carolina Salgado,
editado pela Dom Quixote, em dezembro de 2006. Foi há quase dez anos. Como
seria de esperar o livro contou com um ghost. Aliás, dois ghost-writers. Mas já
lá vamos.
MULTIFACETADO João Pedro
George é tradutor, escritor, crítico literário e ghost-writer. Está interessado
em escrever como ghost um livro de ficção para uma figura pública
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Logo nas primeiras páginas,
Carolina recorda em discurso direto como se apaixonou pelo dirigente numa dança
ao som de ‘Brand New Days’, de Sting, no bar de alterne Calor da Noite, onde
trabalhava seis madrugadas por semana. E como o dirigente portista passou a ser
visita assídua do espaço noturno até iniciarem uma relação. “As nossas mãos
transpiravam. As pernas tremiam. Previ que estava a nascer um grande amor e não
me enganei. Dançámos três músicas seguidas e a sensação que tinha era de que
apenas existíamos nós, não havia ninguém em volta. Fez-me sentir uma verdadeira
princesa.” Mas o conto não foi de fadas. Inúmeras acusações de subornos a
árbitros que privavam em sua casa, negócios ilícitos, e uma alegada ordem para
que Ricardo Bexiga, o então vereador da Câmara Municipal de Gondomar, fosse
espancado constam também no livro. O livro foi a galinha dos ovos de ouro da
editora, vendeu mais de 120 mil exemplares e abriu noticiários.
Na altura falou-se que Fernanda
Freitas, professora de literatura portuguesa e amiga de Carolina, a teria
ajudado a escrever o livro. Mas isso é apenas parte da verdade. Fernanda
escreveu metade do livro, mas a verdadeira ghost-writer que agarrou no projeto,
o editou e escreveu na totalidade com toda a matéria sobre o caso ‘Apito
Dourado’ foi a jornalista e cronista Leonor Pinhão. Foi Tereza Coelho, na época
editora da D. Quixote, que a contratou para ghost-writer e revisora. A razão
para tal mudança foi que a editora queria apressar a sua publicação a tempo do
Natal e apenas alguém experiente como Leonor conseguiria, em pouco tempo,
transformar o discurso de Carolina numa prosa fluente. Antes, Leonor tratou de
fazer desaparecer do primeiro manuscrito que lhe chegara às mãos, ditado por
Carolina, alguns pormenores ‘de índole eminentemente pessoal’ que poderiam ser
considerados difamatórios e levantar processos desnecessários. Bem como
fotografias demasiado privadas. “Em dois ou três fins de semana ouvi a
Carolina, tomei notas, fui redigindo. O livro segue a ordem cronológica dos
acontecimentos e, nesse outono de 2006, era já do domínio público a
investigação da PJ a certos procedimentos de alguns dirigentes do Porto. E já
tinham sido até publicadas em jornais algumas escutas que ainda hoje fazem
furor.” O que é facto é que foi este livro escrito por dois ghost-writers que
voltou a trazer para a barra dos tribunais o caso ‘Apito Dourado’. Leonor ri-se
do facto e recorda: “É cómico quando ouço dizer que o livro faz revelações
sensacionais sobre o ‘Apito Dourado’. Não fez uma única revelação sobre esse
processo ou outro qualquer. Tudo o que veio no livro já tinha sido publicado na
imprensa, para defender a editora e a própria Carolina. Se houve reabertura do
‘Apito Dourado’ não foi por causa do conteúdo do livro, mas sim pelo impacto
brutal que teve no fim de semana em que foi lançado. Venderam-se milhares. E
foi o ruído da opinião pública que obrigou à reabertura do processo.”
Na opinião de Leonor a grande
revelação do livro é Carolina assumir que trabalhou num bar de alterne. “É
provável que as pessoas já não se lembrem, mas enquanto foi mulher do
presidente do FC Porto, Carolina era tratada com a maior deferência pelos
jornais e convivia com a classe política e outras personalidades de vulto. Até
chegou a ser recebida pelo Papa. Com este livro ela desmascara a hipocrisia da
sociedade, e a sua coragem de contar a verdade sem medo de assumir que
trabalhara num bar de alterne, apesar das fortes pressões para que não o
fizesse, foi para mim de uma enorme grandeza.”
Apesar de o livro ter sido
escrito em parte por Leonor, a jornalista não se sente coautora. “O livro é
dela, a história é dela, até o título foi dela. Não é meu nem da Fernanda
Freitas. Mas às vezes, por brincadeira, gosto de dizer que escrevi meio
best-seller, que sempre será melhor do que não escrever nenhum.” A cronista
assegura ter ganho apenas mil euros pela tarefa. O que em nada se compara ao
mercado americano em que um ghost de um livro de uma figura pública pode
enriquecer de um momento para o outro. “Lembro-me de que em 2001 ‘The New York
Times’ anunciou que o ghost-writer da autobiografia de Hillary Clinton recebeu
meio milhão de dólares só na assinatura do contrato. Aqui praticam-se outros
preços porque isto é ínfimo. Foi, isso sim, um extraordinário negócio para a
Dom Quixote!”
Nunca mais repetiu a experiência.
Diz que gosta mais de ler biografias do que redigi-las. E, se possível,
escritas pelo próprio autor. “O ideal, em termos da fidedignidade do biografado
e em benefício da literacia, era que todas as pessoas interessadas soubessem
escrever as suas próprias biografias. Mas considero que [o ghost-writer] é uma
disciplina do ofício da escrita que merece consideração no estrangeiro, mas que
é um bocadinho mal vista no nosso país por saloiice. Sempre houve e sempre
haverá fantasmas na literatura.”
João Pedro George, 44 anos, autor
da biografia de Luiz Pacheco “Puta Que os Pariu!” é da mesma opinião. Ele que é
um ghost multifacetado, já foi ‘negro’ de traduções [traduziu livros que
aparecem com o nome de outro tradutor], fez revisões de obras, reescreveu
livros de outros autores a pedido das editoras e já foi diversas vezes
contratado para escrever de raiz autobiografias de famosos.
João Pedro começou nesta área por
acaso. Estava um dia a passar pelos corredores da Dom Quixote quando ouviu uma
conversa de alguém que precisava dos serviços de um ghost-writer para escrever
a biografia de um antigo treinador e jogador de futebol. Ele, como precisava de
trabalho, ofereceu-se. O biografado era Octávio Machado, atual dirigente no
futebol do Sporting. João Pedro levou três meses a escrever o livro “Vocês
Sabem do Que Eu Estou a Falar”, a partir das conversas que teve com o dirigente
leonino. Uma obra onde Octávio Machado contou em quase 300 páginas diversas
histórias polémicas passadas fora das quatro linhas e que envolveram algumas
das personagens principais do futebol português: Carlos Queiroz, Jesualdo
Ferreira, Pinto da Costa, além de diversos dirigentes, empresários, jogadores e
ex-jogadores. Para escrever essas memórias, João Pedro George teve dez
encontros com o ex-treinador para o entrevistar e tomar notas, demorando três
meses a concluir o projeto. “Mas já me aconteceu ter de escrever um livro desta
natureza num mês. Sou bem mais rápido agora.”
O tradutor e professor
universitário encontra uma imagem literária para ilustrar este seu ganha-pão.
“O escritor-fantasma é alguém que calça os sapatos da personagem sobre o qual
está a escrever. Parafraseando a escritora norte-americana Harper Lee, só
conseguimos compreender realmente uma pessoa quando nos metemos na sua pele e
caminhamos dentro dela.” Contas feitas de cabeça, afirma ter sido ghost-writer
de seis livros. Tanto de mulheres como de homens. “Sou um ghost-writer
versátil. Adequo a minha escrita à voz de quem estou a representar. Tanto posso
escrever de uma forma mais lamechas se for uma mulher sensível como de uma
forma mais dura, sarcástica e contundente se for alguém do desporto”. Fala-nos
de vários títulos que escreveu no lugar de figuras conhecidas das revistas do
social, mas que por contrato está obrigado ao silêncio na maioria dos casos.
Histórias de superação, de coragem, ou num dos casos de defesa da imagem
pública do marido. João Pedro diz que normalmente nem à família conta a autoria
dos livros sobre os quais anda a escrever como fantasma. “Faz parte das regras
de sigilo.” Em média João Pedro ganha por este tipo de trabalho €3500, mais
cerca de 1% em royalties sobre as vendas. João Pedro prepara-se para escrever
mais duas biografias, uma de uma apresentadora de televisão e outra sobre a
mulher de um político. Mas diz que não tem ilusões sobre o sucesso deste tipo
de livros. O que falha, diz, é a sinceridade da maioria dos
biografados.“Prometem fazer revelações bombásticas mas quando veem o que disseram
no papel retiram ou atenuam as declarações para não terem de se chatear. E,
claro, os testemunhos acabam frouxos.”
Ainda neste capítulo, o autor do
controverso “Couves & Alforrecas” — sobre a obra de Margarida Rebelo Pinto
— diz que não se importaria de escrever uma história de ficção enquanto
ghost-writer. Ou seja, está disponível para criar uma obra não biográfica
prescindindo da assinatura. “Claro que dependeria dos valores envolvidos,
porque escrever uma obra de ficção obriga a mais trabalho, mais criatividade e
a uma linguagem mais literária. Nesta área sou um mercenário da escrita.
Mantenho a ilusão de que com estes trabalhos poderei ganhar dinheiro suficiente
para durante um ano dedicar-me exclusivamente aos meus próprios livros ou a
fazer as críticas literárias que me interessam.”
Maria João Costa, consultora
editorial da Leya, conta que são várias as razões para que uma editora solicite
os serviços de um ghost-writer. “Às vezes é por falta de tempo do autor. Outras
é falta de técnica ou capacidade para escrever. Nós queremos o livro pronto o
mais depressa possível, trabalhamos sobre a atualidade.” Há seis anos escreveu
o livro autobiográfico “Aproveitem a Vida”, de António Feio, publicado poucos
meses após a morte do ator. “A ideia era eu contratar um ghost para o António
Feio, mas ele desafiou-me a que fosse eu própria a escrever a sua história. Não
tive como recusar. Entretanto, o António morreu de repente e criou-se uma
especulação tal sobre quem estaria a escrever a sua biografia que o meu nome acabou
por aparecer na capa como ‘colaboradora’.”
Também Maria João não tem
problema em editar livros de ficção com ghost-writers, ao associar a sua
autoria a determinadas figuras públicas. “Se eu convidar uma apresentadora de
televisão especialmente mediática a escrever um livro de ficção e ela estiver
interessada, mas não tiver tempo para o escrever ou — na maior parte dos casos
— não tiver capacidade para o fazer, juntamos esse nome que vende a uma boa
história pensada para certo tipo de leitores. E a probabilidade do projeto
funcionar é enorme. Para as editoras este modelo de negócio é essencial por ser
rentável. Hoje em dia até as editoras mais imaculadas editam livros para ganhar
dinheiro. Se não existirem livros mais comerciais como é que as editoras
apostam em novos autores de qualidade?”
FANTASMAS De cima para baixo,
no sentido dos ponteiros do relógio, Leonor Pinhão foi uma das duas
ghost-writers do livro-escândalo “Eu, Carolina” (foto Vasco Célio/Stills);
Maria João Nobre especializou-se em ser ghost de autores que prescrevem dietas;
Maria João Vieira acaba de ser escritora-fantasma de uma autobiografia assinada
por uma cantora com um passado difícil e rocambolesco
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Grande parte dos ghost-writers
são jornalistas, mas também há tradutores, guionistas e escritores. Há os mais
versáteis e os que têm mais jeito para escrever biografias masculinas ou
femininas, ou assuntos ligados a dietas, a crianças, ao desporto. Em comum têm
o gosto e o treino de através da escrita contarem histórias.
No início de cada processo é a
editora que apresenta os autores e os ghosts para ver se há química entre eles
e se aceitam trabalhar em conjunto. Por vezes acontece o processo não correr
como esperado. “Já troquei de ghosts a meio da escrita de um livro. O autor e o
ghost deram-se mal. O autor achava que o ghost estava a ser demasiado
intrusivo. Foi um choque de sensibilidades. Um ghost mais pragmático talvez
lide pior com alguém mais sensível, com um drama delicado para partilhar”,
considera Maria João Costa.
José Prata, editor da Lua de
Papel, do grupo Leya, também tem uma história semelhante para contar. O caso de
um ghost-writer que se incompatibilizou com o autor. “O processo de escrita de
um livro que recorre à colaboração de um ghost implica uma convivência súbita
entre o autor e o escritor-fantasma. O que, por vezes, pode não dar certo.
Porque o autor pode achar que se expôs demais, que se envolveu, que aquilo foi
por caminhos não esperados...”
A grande questão filosófica desta
matéria é levantada por José Prata. “Até que ponto a autoria desses livros é
beliscada por haver um ghost-writer envolvido? Depende. Quando o imaginário é
todo do autor que tem um grande trabalho de monitorização sobre o que o ghost
escreve. E quando o ghost é bom e consegue apanhar o espírito da pessoa que
assina o livro, diria que o ghost cumpre apenas o papel de tradutor de uma
mensagem ou de uma história. Transforma em palavras escritas o saber ou a história
de alguém.”
Sara Rodi, 37 anos, é uma das
ghost-writers mais experientes no mercado. Das suas mãos já saíram oito livros
escritos na sombra, assinados pelas mais variadas figuras públicas. Sara, que
também é autora com obra própria, começou o seu percurso pelo guionismo e
colaborou em várias telenovelas e séries de televisão. Foi por causa do sucesso
da telenovela “O Olhar da Serpente” que um dia Sara e a jornalista Felícia
Cabrita (autora da obra) foram desafiadas a adaptar a história para um livro. A
experiência foi bem-sucedida e Sara começou a ser desafiada para escrever
enquanto escritora-fantasma.
O seu primeiro trabalho como
ghost foi a ajudar a médica endocrinologista Isabel do Carmo a criar perguntas
que poderiam interessar o público sobre como emagrecer e a editar as respostas
que a médica lhe enviava. O livro chamou-se “222 Perguntas e Respostas para
Emagrecer e Manter o Peso de Uma Forma Equilibrada”. Isabel do Carmo recorda-se
desse apoio que Sara lhe prestou. “Ela foi uma querida, ajudou-me no processo
para facilitar a realização do livro.” Nestes últimos dez anos, tantos foram os
pedidos para escrever enquanto ghost que Sara achou melhor criar a sua empresa
de ghost-writers, a Bem Escrito, onde conta com uma vasta equipa para pesquisa
de informação e, nalguns casos, para a escrita de algumas obras. “Na maior
parte dos casos são pessoas com um vasto conhecimento técnico, mas que não têm
o hábito de escrever para o grande público e eu ajudo-as. Refiro-me a médicos,
nutricionistas ou economistas. Os livros não são meus, o saber é todo deles, eu
apenas os auxilio na escrita e na edição da informação.”
Mãe de três filhos, Sara tira
partido do facto de trabalhar em casa, num escritório localizado no último
andar da sua moradia, com uma privilegiada vista para o mar. Autora da nova
série familiar da TVI “Massa Fresca”, Sara recorda que o livro mais ousado que
escreveu como ghost foi a relatar a vida de uma stripper lisboeta. Para melhor
se meter na pele da ‘autora’ chegou a visitar um desses espaços noturnos onde a
protagonista se movia. “Desconhecia por completo esse meio e fiquei com uma
opinião diferente dos homens. Talvez pior. Soube de fetiches estranhíssimos.
Mas deu para perceber melhor a minha ‘autora’. Para quando ela lesse as minhas
palavras dissesse ‘ah, realmente parece que fui eu que escrevi isto!’ Quando
consigo que a pessoa sinta que o livro é dela é quando sou bem-sucedida.”
Dos meandros dos clubes de strip
ao mundo das técnicas de pré e pós-parto, Sara já escreveu de tudo um pouco. E
não se importa de no dia da apresentação do livro, os autores tomarem para si a
autoria total do livro. “Faz parte. Quem tem um ego muito grande não se dará
bem neste trabalho. O meu nome é ruído. Os leitores querem é identificar-se com
aquelas pessoas conhecidas.” Refere que na maioria dos casos é a editora que
contacta as figuras públicas que estão na berra e arranja quem escreva por
elas. “As editoras têm de publicar livros que vendam. As pessoas que mais
aparecem na TV vendem mais. É um cruzamento de vontades.” O limite de Sara é
escrever histórias de ficção para outros assinarem por ela. “Não conseguiria
fazê-lo. Faz-me confusão. Não suportaria ouvir alguém dizer que a história que
saiu da minha cabeça é dela. Já me propuseram isso e recusei. Não considero tão
honesto.”
Maria João Nobre, 37 anos, com
oito livros escritos como ghost, na sua maioria sobre dietas ditadas por
nutricionistas, esclarece que na maior parte dos casos o nome dessas dietas é
inventado pelas editoras. “Seja a dieta 1,2,3 ou a dos 31 dias é a reprodução
de dietas clássicas vendidas como novas e exclusivas para atrair os leitores.”
Foi a prática de mais de vinte
anos no jornalismo que ajudou Maria João Vieira, 53 anos, a abraçar a carreira
de ghost-writer a par da de guionista de séries e telenovelas. A crise nos
jornais fê-la mudar de rumo, mas manteve-se ligada à escrita e às histórias.
Umas reais, outras inspiradas na vida que observa. Tal como Sara Rodi, trabalha
a partir de casa. A primeira encomenda que recebeu enquanto escritora-fantasma
foi contar a história de uma das testemunhas do processo Casa Pia. “A minha
preocupação é que o discurso seja claro. Não me preocupo tanto com o estilo ou
com metáforas. A grande dificuldade no processo é esclarecer as situações,
escavar a história, as pessoas costumam ser algo confusas. E eu tenho de
traduzir os relatos para o papel.” Desde essa experiência já escreveu sete
títulos, na maioria biografias de famosos. Recebe à volta de €3000 por cada
livro, que lhe toma em média dois meses de trabalho. “É um trabalho bem pago.
Que consigo conjugar com os meus trabalhos de guionismo. Mas que me obriga a
trabalhar quase todos os dias.” A autora e guionista não se importa de ser um
fantasma no processo quando escreve as histórias dos outros. “Não faço questão
de aparecer na capa. Ser ghost é isso mesmo, não aparecer. Quero é que o meu
trabalho saia bem.” Maria João acaba de concluir a biografia de uma cantora da
música popular com uma história de vida rocambolesca. Talvez por ser o último
que escreveu, escolhe-o como o que lhe deu mais prazer fazer. “Este livro tem
todos os ingredientes para ser do agrado do público. É a história de uma mulher
que nasceu no seio de uma família completamente disfuncional. Mal passou pela
escola, tinha tudo para dar torto — ser alcoólica, drogada, ou prostituta — mas
deu a volta ao destino. Tinha um sonho e concretizou-o. E isso é extraordinário
e exemplar. “ Palavra de fantasma.
Artigo publicado na edição do
EXPRESSO de 30 abril 2016
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