sábado, 21 de maio de 2016

José Pacheco Pereira - Mas que raio é que têm contra o papel?


OPINIÃO

 

As declarações de Costa sobre o papel são para mim preocupantes. Preciso, em Portugal e em 2016, que haja papel em vários sítios e usos.

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Agora vou fazer de sequaz do General Ludd, de “Velho do Restelo”, de Unabomber, de “apocalíptico” ou alguma variante do que isso é. Não sabem quem é o General? Vou responder como uma vez fez Medeiros Ferreira quando encontrou uma jornalista que não sabia o que era o Nó Górdio: se não sabem deviam saber. Vem nas Enciclopédias e, helás!, vem na Wikipedia. Quanto ao Velho do Restelo, já é o habitual, acham que que Camões o usa como personagem negativa, quando é exactamente o contrário: o Velho do Restelo é uma das personagens chave em tornar os Lusíadas um excepcional epopeia, porque o seu autor trata o Velho do Restelo como poucas personagens no texto. Dá-lhe uma força moral que ninguém tem, nem o Gama, nem ninguém. Quanto ao Unabomber, admito que é por excesso e os “apocalípticos” ficam bem na classificação de Umberto Eco.
Mas ouvindo aquelas frases de António Costa sobre o papel, quando deu a vaca que voa à Senhora Ministra do Simplex, eu fico possuído pelas figuras tutelares acima citadas e outras ainda mais sinistras. Ele quer acabar com o papel, acabar com as impressoras, deixar uma solitária impressora em cada repartição (e uma gloriosa fila de gente à espera da certidão…), e poupar, diz ele, trinta milhões de euros. Nosso Senhor Santo Cristo, o homem é um perigo público e não sabe o que está a dizer, porque, que o possa fazer, é ainda menos provável do que ver uma vaca voar. Vou inscrever-me como lobista da Portucel e da HP, e explicar os perigos de uma sociedade sem papel e pior ainda de um estado sem papel, onde circulam apenas bits e bytes. Em 2016, em Portugal e não numa utopia tecnológica.
Não tenho nenhuma nostalgia do papel, não tenho saudades do cheiro dos livros, mas sei que não é a mesma coisa ler num ecrã e ter vantagem em ler num ecrã por causa do hipertexto, e ler num livro. No dia em que for comum alguém ler a Guerra e Paz num telemóvel falem-me. No dia em que folhear electronicamente for tão fácil e tão fuzzycomo é no papel, eu concedo que as últimas vantagens do livro foram ultrapassadas sem problema. Mas admito que possa ser apenas uma questão de tempo, embora os nossos sentidos sejam sempre uma limitação física ao conforto de ler em espaços pequenos e ler em volume (como se passa no hipertexto) não é a mesma coisa do que ler “corrido” principalmente na ficção.
Mas não é por isso que as declarações de Costa sobre o papel são para mim preocupantes. Preciso, em Portugal e em 2016, que haja papel em vários sítios e usos, e a corrida ao mundo sem papel é perigosa e leviana, sem ser precedida de outro tipo de obrigações e práticas que não existem ou quando existem ficam apenas… no papel.
Comecemos pela obrigação de os actos do Estado, logo dos governos e de outras instituições públicas, estarem registados para escrutínio presente ou futuro conforme a natureza dos documentos em causa. Pode ser que num futuro ideal estar toda a informação em formato electrónico e só aí, seja possível sem se levantar o problema deaccountability que vou suscitar. É verdade que o Wikileaks e os papéis da Mossack Fonseca não poderiam ser “roubados” se não estivessem em formato electrónico dada a sua dimensão. Mas eles foram “roubados” sem autorização dos seus possuidores, não é líquido que estivessem todos abertos ao escrutínio público, e que não fossem apagados ou escolhidos a dedo pela simples razão de que muitos documentos electrónicos não têm outro registo que não seja o da sua própria existência, quando se sabe onde estão. Principalmente os que são mais sensíveis, quando existem.
Parece absurdo o que estou a dizer, mas eu dou um exemplo concreto: o registo das comunicações, reuniões, responsabilizações, etc., nas negociações entre o governo português e a troika de 2011 a 2015. Quem propôs o quê, quem disse o quê, quem decidiu o quê. Começa por não ser líquido o que devia estar registado ou não e por quem. Havia actas das reuniões? Em que formato? Eram os documentos numerados e datados de modo a perceber-se o que pode faltar? Como eram certificados, quem os assinava e sob que forma? Onde estão depositados, em Bruxelas, em Washington, num computador do governo, ou em computadores dos participantes, sabendo-se como se sabe que havia alguma promiscuidade no uso dos computadores pessoais? Este registo oficial incluiu o correio electrónico oficial ou as comunicações privadas? Como é que se define a diferença entre o que é público e o que é privado para efeitos de registo obrigatório? Há registo dos telefonemas feitos e uma síntese desses telefonemas como é suposto existir, por exemplo, nas comunicações diplomáticas? Podia continuar a fazer perguntas e suspeitar quais são as respostas.
https://www.publico.pt/politica/noticia/mas-que-raio-e-que-tem-contra-o-papel-1732615

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