quinta-feira, 12 de maio de 2016

Álvaro Cunhal no Museu do Aljube

  • Manuel Augusto Araújo 



O Museu do Aljube continuou um ciclo de encontros sob o tema Intelectuais e Artistas da Resistência, cujo objectivo é a «evocação da vida e obra de artistas, de homens de letras e de cientistas que se opuseram pela vida e a obra, à ditadura fascista».

O primeiro, a 29 de Abril, foi Manuel Tiago/ Álvaro Cunhal. Seguir-se-ão José Afonso, 27 de Maio, Bento Jesus Caraça, 17 de Junho e Maria Lamas, 1 de Julho.

A referência a Manuel Tiago/Álvaro Cunhal percebe-se pela maior notoriedade e divulgação da obra literária de Álvaro Cunhal, ainda que seja algo redutora no contexto do seu trabalho intelectual que decorreu em paralelo com a sua intensa actividade política, prática e teórica, onde se afirma como um dos maiores e mais influentes pensadores do marxismo-leninismo. Uma constatação que é uma evidência ao ler as suas Obras Escolhidas, onde se revelam textos cuja autoria a clandestinidade obrigou ao anonimato ou ao recurso a pseudónimo e se sistematizam os produzidos depois do 25 de Abril.

No encontro no Museu do Aljube, a tónica incidiu no trabalho de Álvaro Cunhal na área das artes visuais e da literatura que foi conhecido em circunstâncias especiais. O escritor Manuel Tiago desoculta-se quando se sabe que um académico especulava sobre quem seria a pessoa que usava esse criptónimo e o iria atribuir a outro que não Álvaro Cunhal, o que o compeliu a reivindicar a autoria dos romances e novelas, só conhecido por um grupo restritíssimo de camaradas. Os desenhos da prisão, organizados em duas séries, foram editados com o objectivo declarado de angariar fundos para o Partido. Nenhum estava assinado, nenhum foi assinado. Só mais tarde, no contexto das celebrações do seu centenário, é que na XVIII Bienal das Artes Plásticas da Festa do Avante! se conheceram pinturas e desenhos de alguém que, confrontado com o seu talento, dizia que gostaria de ter tido tempo para «aprender a pintar».

No debate, um dos intervenientes levantou a questão de haver comunistas escritores, como Álvaro Cunhal ou Soeiro Pereira Gomes e escritores comunistas como José Saramago ou Alves Redol. Um ponto de vista interessante para a análise crítica de obras em que a actividade política é central na actividade intelectual. De facto, tanto a obra literária como a obra pictórica de Álvaro Cunhal têm sempre como referência realidades bem conhecidas pelo autor no seu percurso político. Esse conhecimento é bem presente mesmo na tradução do Rei Lear de Shakespeare, nas notas que explicam opções linguísticas e enquadramentos históricos e sociais.

A diferença maior entre as duas áreas criativas onde Álvaro Cunhal imprimiu as suas aptidões está nos ambientes onde decorrem as acções. Nos desenhos, os lugares não são passíveis de reconhecimento, são abstractos. São raros os elementos arquitectónicos, quando existem não dão indicações sobre os lugares. O espaço tem a função de conferir profundidade e liberdade ao movimento das figuras, às situações. Na literatura os espaços são descritos nos elementos visíveis que até os tornam identificáveis o que se contrapõe aos espaços abertos dos desenhos em oposição ao espaço a que o autor estava confinado.

Nos romances é surpreendente, para quem não conhecia Álvaro Cunhal, a multifacetada riqueza humana das personagens. Nenhuma é linear nas suas grandezas e nas suas fraquezas. Mesmo os politicamente mais indiferentes, de duvidosos princípios éticos, são capazes de um súbito gesto de desprendimento como o passador de Cinco Dias, Cinco Noites.

Nas intervenções introdutórias e no debate sublinhou-se o profundo humanismo e a enorme dimensão intelectual e política de Álvaro Cunhal que o tornam uma das personalidades mais marcantes e mais fascinantes da História de Portugal. O artista e escritor que Álvaro Cunhal não foi o que poderia ter sido porque, como escreveu no prefácio de A Arte, o Artista e a Sociedade, «o absorvente empenhamento noutra direcção de actividade impediu a realização do projecto. Por razões óbvias, o que não foi possível já não o será». O projecto era rever e actualizar esse ensaio. Aplica-se a toda a obra artística que nos legou independentemente da qualidade alcançada.

http://www.avante.pt/pt/2215/argumentos/140296/

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