segunda-feira, 30 de abril de 2018

The Wind That Shakes the Barley


The Wind That Shakes the Barley - The Clancy Brothers (and Tommy Makem)

I sat within the valley green,
I sat there with my true love
My heart strove to choose between,
the old love and the new love
The old for her, the new that made
me think on Ireland dearly
While soft the wind blew down the glen
and shook the golden barley

'Twas hard the mournful words to frame
to break the ties that bound us
But harder still to bear the shame
of foreign chains around us
And so I said, "The mountain glen
I'll seek at morning early
And join the brave united men (1)",
while soft wind shake the barley

T'was sad I kissed away her tears
Her arms around me clinging
When to my ears that fateful shot
Came out the wildwood ringing
The bullet pierced my true love’s breast
In life’s young spring so early
And there upon my breast she died
While soft wind shook the barley

I bore her to some mountain stream
And many’s the summer blossom
I placed with branches soft and green
About her gore-stained bosom
I wept and kissed her clay-cold corpse
Then rushed o’er vale and valley
My vengeance on the foe to wreak
While soft wind shook the barley

T'was blood for blood without remorse
I took at Oulart Hollow(2)
I placed my true love's clay cold
corpse
where mine full soon may follow
Around her grave I wandered drear,
noon, night and morning early
With aching heart when e'er I hear
the wind that shakes the barley

https://www.antiwarsongs.org/canzone.php?id=57596&lang=it


An old Irish rebel song, set in the 1798 rebellion of the United Irishmen, it tells the story of a young man who faces the dilemma of sacrificing the love for his partner, or the love for his country.



domingo, 29 de abril de 2018

Pablo Neruda - EL PUEBLO VICTORIOSO

* Pablo Neruda

Está mi corazón en esta lucha.
Mi pueblo vencerá. Todos los pueblos
vencerán , uno a uno.

Estos dolores
se exprimirán como pañuelos hasta
estrujar tantas lágrimas vertidas
en socavones del desierto, en tumbas,
en escalones del martirio humano.

Pero está cerca el tiempo victorioso.
Que sirva el odio para que no tiemblen
las manos del castigo,
que la hora
llegue a su horario en el instante puro,
y el pueblo llene las calles vacías
con sus frescas y firmes dimensiones.

Aquí está mi ternura para entonces.
La conocéis. No tengo otra bandera.


Ary dos Santos - Soneto de Mal Amar

* Ary dos Santos

Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.

A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.

E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.

Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.

Ary dos Santos, in 'O Sangue das Palavras

Mia Couto - Primeira palavra

* Mia Couto


Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palavra do teu corpo

(1980)

MIA COUTO, in RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS (Caminho, 2009)

Herberto Helder - O amor em visita

* Herberto Helder

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste da boca.
Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia, a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta, o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura, não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe a força maternal,
e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre, insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo se quebra em glória
junto ao meu flanco martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge a estrela,
o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados, espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas
frias com o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.


HERBERTO HELDER, in A COLHER NA BOCA (Edições Ática, 1961)


Francisco, a praga das notas de rodapé, a Universidade e a vida


ANDRÉ LAMAS LEITE
OPINIÃO

Tristes os povos e as cúrias que se refugiam no saber livresco para, amiúde, ocultarem a falta de saber de experiência feito, o conhecimento dos outros, a inteligência emocional, a empatia, as hoje ditas soft skills, amiúde mais importantes que uma licenciatura.

29 de Abril de 2018, 11:23

Ao ler a mais recente exortação apostólica de Francisco, Gaudete et exsultate!(Alegrai-vos e exultai!Mt 5, 12), dada no Dia de São José, com o seu tão humano apelo à santidade na vida quotidiana, não pude deixar de pensar nas críticas que têm sido dirigidas ao sucessor de Pedro e em um conjunto de vícios de que padecem tantos sectores da nossa sociedade, em especial as Universidades.

Em surdina, ou nem tanto, muitos criticam Francisco por não ter a dimensão intelectual de Bento XVI. Não sei bem o que é isso e não me lembro de me terem alguma vez ensinado que no CV de um Papa tem de constar uma série de pós-doutoramentos em qualquer um dos ramos em que se divide a Teologia. Aliás, conhecemos todos grandes sacanas diplomados, afogados em graus académicos e que pouco mais fazem que infernizar a vida dos demais. Eça, sempre ele, captou-o na perfeição: é o tipo (ou a tipa) que não cumprimenta a senhora da limpeza e que selecciona com quem se relaciona em função do que lhe podem render em prebendas económicas ou de ascensão social. É o indivíduo que se fecha num discurso hermético em aulas soporíferas, propositadamente ou – quase sempre – por não ter nada a transmitir, excepto uma espécie de “masturbação mental” circular, um conjunto de palavras bonitas, adquiridas em dicionários de antanho, que podem até captar alguma atenção junto de aprimorados estetas, mas que não cumprem o seu objectivo.

Outra marca desta pretensa superioridade, típica do Direito, é a nota de rodapé. O texto pode até não conter uma ideia ou um bom resumo do estado da arte, mas está enxameado de citações, tanto mais valiosas quanto mais páginas encherem e mais autores estrangeiros convocarem. E não se pense que existe sempre uma ligação incindível entre o texto e a nota de rodapé que, na verdade, devia limitar-se a complementar e a ilustrar o primeiro. Nada disso. Formou-se uma espécie de convenção não escrita no sentido em que esse espaço lúdico é usado para demonstrar conhecimento ou erudição sobre aspectos que só levemente – às vezes, nem de raspão – contendem com o essencial da mensagem. E se houver citações em Alemão, é o delírio, como se apenas aquele povo tivesse sido dotado de inteligência e a coisa mais banal em qualquer ramo de Direito, quando escrita na língua germânica, ganha logo outra pátina.

Voltemos a Francisco. Lemos que uma parte da Cúria está insatisfeita com a tal falta de pátina, com um alegado exagero na abertura ao mundo e à reflexão sobre a mudança de alguns aspectos atinentes a regras provenientes da Tradição e não das Escrituras. Como assistimos à pretensa defesa do actual Papa pelo Emérito, que terá escrito sobre Francisco que o seu pensamento teológico é profundo, o que teria sido encarado como uma espécie de crítica velada. Faltam notas de rodapé a Francisco. Ao ler esta e outras exortações apostólicas de Bergoglio, entendo-as, nelas reconheço o ser humano como eu que me leva a reflectir sobre as hipóteses que tenho de mudar, lentamente, passo a passo, admitindo os meus lados mais escuros e, depois, tentando iluminá-los à luz da mundividência cristã.

Para além de relembrar que Francisco é Jesuíta e que esta congregação não é propriamente conhecida por ser constituída por patetas, a soberba intelectual dos críticos, que, como disse, se repete nos demais campos societais, é a melhor prova que o caminho para a santidade começa por renunciar a essa soberba e aceitar a humildade. O conhecimento só existe ao serviço dos outros e, que eu saiba, a importância de um Papado não se mede pelas notas de rodapé de encíclicas, exortações apostólicas ou cartas pastorais. Mede-se pela capacidade de exemplo, de motivação, de denúncia, de perdão, de amor e misericórdia infindos, verdadeiro eixo de toda a mensagem cristã.

Tantas e tantos que sentiram o apelo à santidade e nem sequer sabiam ler ou escrever. E, no entanto, foram capazes de actos tão nobres e humanos que nem sequer passariam pela cabeça de gente que, como em Portugal, adora os títulos académicos, verdadeiro sinal de país terceiro-mundista. Lembro-me sempre do que me contou a minha prima Arabela (Paula para a família mais próxima), uma vez que foi ao cabeleireiro, em Coimbra, cidade dos “doutores”. Uma certa senhora tentou passar-lhe à frente. Obviamente, a minha prima perguntou à cabeleireira a razão de não ser seguida a ordem de chegada. “A Sra. é Dra. e tem pressa para um compromisso”. A minha prima, que não se deixa ficar, atirou rapidamente: “Não sabia que para vir ao cabeleireiro era preciso trazer a certidão de habilitações! Também sou licenciada e cheguei primeiro”. E que não fosse, como é evidente.

Tristes os povos e as cúrias que se refugiam no saber livresco para, amiúde, ocultarem a falta de saber de experiência feito, o conhecimento dos outros, a inteligência emocional, a empatia, as hoje ditas soft skills, amiúde mais importantes que uma licenciatura. Entendamo-nos: o estudo é essencial para nos prepararmos a ler e intervir sobre o mundo, mas não pode ser escudo que oculte um coração mirrado ou a prepotência de tantos. A substância sobre a forma, sempre. Se qualquer um de nós tiver de escolher outrem para trabalhar ou para um qualquer tipo de relação – seja Papa, ou uma mulher ou homem “comuns” –, por certo prefere alguém que tenha espaço para aprender, eventualmente menos preparado do prisma técnico, mas que consideramos “boa pessoa”. Os crápulas serão sempre crápulas e um trabalhador que ainda tem de aprender, dali a algum tempo, é alguém competente e um bom ser humano. É isso que engrandece qualquer CV.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto


sábado, 28 de abril de 2018

António Gedeão - Saudades da Terra

* António Gedeão


Uns olhos que me olharam com demora,
não sei se por amor se caridade,
fizeram-me pensar na morte, e na saudade
que eu sentiria se morresse agora.
E pensei que da vida não teria
nem saudade nem pena de a perder,
mas que em meus olhos mortos guardaria
certas imagens do que pude ver.
Gostei muito da luz. Gostei de vê-la
de todas as maneiras,
da luz do pirilampo à fria luz da estrela,
do fogo dos incêndios à chama das fogueiras.
Gostei muito de a ver quando cintila
na face de um cristal,
quando trespassa, em lâmina tranquila,
a poeirenta névoa de um pinhal,
quando salta, nas águas, em contorções de cobra,
desfeita em pedrarias de lapidado ceptro,
quando incide num prisma e se desdobra
nas sete cores do espectro.
Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria
quando galga lambendo o dorso dos navios,
quando afaga em blandícias de cândida luxúria
a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.
E também gostei muito do Jardim da Estrela
com os velhos sentados nos bancos ao sol
e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho
e a adormecê-la
e as meninas a correrem atrás das pombas
e os meninos a jogarem ao futebol.
A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer,
à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas,
gostei muito de ver
erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas.
Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados
que se julgam sozinhos no meio de toda a gente,
e se amam com os dedos aflitos, entre cruzados,
de olhos postos nos olhos, angustiadamente.
E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados,
e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras
grosseiras,
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões pesados,
e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das peixeiras.
Mas … saudade, saudade propriamente,
essa tenaz que aperta o coração
e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não.
Saudade, se a tivesse, só de Aquela
que nas flores se anunciou,
se uma saudade alguém pudesse tê-la
do que não se passou.
De Aquela que morreu antes de eu ter nascido,
ou estará por nascer – quem sabe? – ou talvez ande
nalgum atalho deste mundo grande
para lá dos confins do horizonte perdido.
Triste de quem não tem,
na hora que se esfuma,
saudades de ninguém
nem de coisa nenhuma.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Miguel Torga - Conquista

* Miguel Torga

Conquista
Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem' 

sábado, 21 de abril de 2018

Hughes Mearns - The Little Man Who Wasn't There

* Hughes Mearns

The Little Man Who Wasn't There

Yesterday, upon the stair,
I met a man who wasn't there.
He wasn't there again today,
I wish, I wish he'd go away...

When I came home last night at three,
The man was waiting there for me
But when I looked around the hall,
I couldn't see him there at all!
Go away, go away, don't you come back any more!
Go away, go away, and please don't slam the door...

Last night I saw upon the stair,
A little man who wasn't there,
He wasn't there again today
Oh, how I wish he'd go away...

~~~~~~~~~~~~~~~~~~

El hombrecito que no estaba ahí

Ayer, en la escalera
Encontré a un hombre que ahí no estaba.
Hoy tampoco ahí estaba,
Quisiera, quisiera que se marchara.

El hombre ahí me esperaba,
Cuando vine a casa anoche a las tres,
Pero cuando miré en la entrada,
Ahí en absoluto no lo pude ver
Váyase, váyase, nunca vuelva
Váyase, váyase, y por favor sin dar portazo cierre la puerta…

Ayer, en la escalera
Encontré a un hombre que ahí no estaba.
Hoy tampoco ahí estaba,
Quisiera, quisiera que se marchara....


https://www.mamalisa.com/?t=ss&p=4363

Este poema foi adaptado e 1939 por Harold Adamson com música de Bernie Hanighen, interpretado por Glenn Miller



Glenn Miller - "The Little Man Who Wasn't There"

GregorysRecords
Publicado a 06/10/2013
In the spirit of Halloween...
Bluebird B-10358-B

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Herton Gustavo Gratto - FIM DA LINHA PRA VOCÊ, EX-PRESIDENTE!

* Herton Gustavo Gratto

Fim da linha pra você, ex - presidente ladrão
mesmo sem provas
bato panelas
em prol da sua condenação
isso é pra você aprender
que o pobre não tem direito a mais que uma refeição
Fim da linha pra você, metalúrgico boçal
isso é pra você aprender
a nunca mais fazer assistência social
com meu dinheiro
e nem se atrever a transformar em engenheira
a filha do pedreiro
Fim da linha pra você ex presidente aleijado
não é pelo triplex
que você está sendo condenado
é pela sua ousadia
em ajudar o garçom
a virar advogado
em contribuir
pra ascensão do negro favelado
que agora acredita
que pode estudar medicina
sair da miséria
e até conhecer a Capela Sistina
Fim da linha pra você, ex presidente bandido
isso é pra você aprender
que o nordeste deve continuar a ser esquecido
e que saúde e educação
é pra quem pode
e não é que pra quem quer
Fim da linha pra você, semi analfabeto atrevido
graças a sua insensatez
o filho da faxineira
chamou o meu filho de amigo
você está sendo condenado
pela sua falta de noção
de achar que pobre é gente
que agora pode usar aparelho nos dentes
ter casa própria e andar de avião
Fim da linha pra você, ex presidente imundo
isso é pra você parar com essa palhaçada
de estimular a minha cozinheira
a querer ter carteira assinada
era só o que me faltava
o proletariado sonhar com qualidade de vida
você devia saber
que essa gente nasceu pra me servir
e não pra servida
mas você é tão inconsequente
não enxerga um palmo diante do nariz
que fez a babá do meu caçula
sonhar que pode estudar pra ser atriz
e fazer aula de inglês
essa pouca vergonha
é resultado
da sua insensatez
da sua irresponsabilidade desmedida
aprenda de uma vez
barriga vazia
e bala perdida
fazem parte do cotidiano
dessa gente bronzeada
foi querer mudar o mundo
se meteu numa enrascada
Fim da linha pra você, ex presidente imbecil
você está sendo condenado
não por ter roubado
porque isso não foi provado
seu erro
foi ser / fazer história
ser do tamanho do Brasil
ter oitenta por cento de aprovação popular
acreditar em igualdade
e saber governar.


Luís Leal Miranda - O Desdicionário da Língua Portuguesa”

Já chegou ao fim do dicionário e não sabe o que ler mais porque as palavras são sempre as mesmas? O Desdicionário da Língua Portuguesa chegou e o Observador faz a pós-publicação (isso mesmo).
Autor
    Os dicionários têm a vida difícil no que toca a lançamentos e pré-publicações. São muito pesados para arremessar e demasiado importantes para serem pré-publicados. “O Desdicionário da Língua Portuguesa” não tem esse problema. 
    colecção de etimolgia amadora de Luís Leal Miranda é bastante portátil, relativamente aerodinâmica e absolutamente dispensável. Por isso pode ser lançada por quem assim o desejar.
    Mas em vez de um pré-publicação, para escancarar os conteúdos desta antologia, faz-se uma pós-publicação, para exibir tudo aquilo que ficou de fora.
    As razões pelas quais estas palavras não foram escolhidas para embarcar nesta arca de noé de expressões inventadas (uma arca de não é?) serão óbvias assim que as começar a ler. E lembre-se: se estas foram as palavras que ficaram por terra, enfrentando o dilúvio, imagine como serão as que embarcaram. Boas desleituras.
    “Desdicionário da Língua Portuguesa”, de Luís Leal Miranda (Stolen Books)
    gepeta
    s. f. | Uma mentira inocente que ganha vida própria e foge ao nosso controlo.
    hipopotimismo
    s. m. | A ideia, muitas vezes errada, de que uns quilos a mais nos favorecem.
    fície
    s. f. | Uma superfície que perdeu os seus superpoderes.
    pi-rex
    s. m. | Um dinossauro que pode ir ao forno.
    efptozleped
    s. m. | O nome que se dá aos quadros com letras nos consultórios de oftalmologia.
    hemoólico
    s. m. | Termo pelo qual os vampiros preferem ser tratados.
    cacocracia
    s. f. | Forma de governo em que os soberanos são pessoas incompetentes.
    burburil
    s. m. | Peça de um frigorífico cujo único propósito é fazer um som agudo e repetitivo, inaudível durante o dia mas muito incomodativo à noite.
    otopia
    s. f. | Mundo imaginário, livre de interrupções, para onde fugimos sempre que colocamos os phones nos ouvidos.
    redundalho
    s. m. | Um saco de plástico que serve apenas para guardar outros sacos de plástico.
    bibelotaria
    s. f. | Sinónimo de “quermesse”.
    vendavalium
    s. m. | Uma brisa calmante num dia de muito calor.
    nhamnhamnésia
    s. f. | Perda total ou parcial da memória daquilo que comemos ontem ao almoço.
    Desdicionário da Língua Portuguesa (Stolen Books) saiu a 16 de Abril e está à venda nas livrarias.
    https://observador.p/2018/04/18/que-nome-se-da-a-um-livro-que-junta-palavras-novas-e-o-desdicionario-da-lingua-portuguesa/

    Camões - Sôbolos rios que vão (Redondilhas de Babel e Sião)


    * Luís Vaz de Camões

    Sôbolos rios que vão
    Por Babylonia, me achei,
    Onde sentado chorei
    As lembranças de Sião,
    E quanto nella passei.
    Alli o rio corrente
    De meus olhos foi manado;
    E tudo bem comparado,
    Babylonia ao mal presente,
    Sião ao tempo passado.

    Alli lembranças contentes
    N'alma se representárão;
    E minhas cousas ausentes
    Se fizerão tão presentes,
    Como se nunca passárão.
    Alli, despois d'acordado,
    Co'o rosto banhado em ágoa,
    Deste sonho imaginado,
    Vi que todo o bem passado
    Não he gôsto, mas he mágoa


    E vi que todos os danos
    Se causavão das mudanças,
    E as mudanças dos anos;
    Onde vi quantos enganos
    Faz o tempo ás esperanças.
    Alli vi o maior bem
    Quão pouco espaço que dura;
    O mal quão depressa vem;
    E quão triste estado tem
    Quem se fia da ventura.

    Vi aquillo que mais val
    Qu'então s'entende melhor,
    Quando mais perdido for:
    Vi ao bem succeder mal,
    E ao mal muito peor.
    E vi com muito trabalho
    Comprar arrependimento:
    Vi nenhum contentamento;
    E vejo-me a mi, qu'espalho
    Tristes palavras ao vento.

    Bem são rios estas ágoas
    Com que banho este papel:
    Bem parece ser cruel
    Variedade de mágoas,
    E confusão de Babel.
    Como homem, que por exemplo
    Dos trances em que se achou,
    Despois que a guerra deixou,
    Pelas paredes do templo
    Suas armas pendurou:

    Assi, despois qu'assentei

    Que tudo o tempo gastava,
    Da tristeza que tomei,
    Nos salgueiros pendurei
    Os orgãos com que cantava.
    Aquelle instrumento ledo
    Deixei da vida passada,
    Dizendo: Musica amada,
    Deixo-vos neste arvoredo
    Á memoria consagrada.

    Frauta minha, que tangendo
    Os montes fazieis vir
    Par'onde estaveis, correndo;
    E as ágoas, que hião descendo,
    Tornavão logo a subir;
    Jamais vos não ouvirão
    Os tigres, que s'amansavão;
    E as ovelhas, que pastavão,
    Das hervas se fartarão,
    Que por vos ouvir deixavão.

    Ja não fareis docemente
    Em rosas tornar abrolhos
    Na ribeira florecente;
    Nem poreis freio á corrente,
    E mais se for dos meus olhos.
    Não movereis a espessura,
    Nem podereis ja trazer
    Atraz vós a fonte pura;
    Pois não pudestes mover
    Desconcertos da ventura.

    Ficareis offerecida
    Á Fama, que sempre vela,

    Frauta de mi tão querida;
    Porque mudando-se a vida,
    Se mudão os gostos della.
    Acha a tenra mocidade
    Prazeres accommodados;
    E logo a maior idade
    Ja sente por pouquidade
    Aquelles gostos passados.

    Hum gôsto, que hoje s'alcança,
    Á manhãa ja o não vejo:
    Assi nos traz a mudança
    D'esperança em esperança,
    E de desejo em desejo.
    Mas em vida tão escassa
    Qu'esperança será forte?
    Fraqueza da humana sorte,
    Que quanto da vida passa
    Está recitando a morte!

    Mas deixar nesta espessura
    O canto da mocidade:
    Não cuide a gente futura
    Que será obra da idade
    O que he fôrça da ventura.
    Qu'idade, tempo, e espanto
    De ver quão ligeiro passe,
    Nunca em mi puderão tanto,
    Que, postoque deixo o canto,
    A causa delle deixasse.

    Mas em tristezas e nojos,
    Em gôsto e contentamento;
    Por sol, por neve, por vento,

    Tendré presente á los ojos
    Por quien muero tan contento.
    Orgãos e frauta deixava,
    Despôjo meu tão querido,
    No salgueiro que alli'stava,
    Que para tropheo ficava
    De quem me tinha vencido.

    Mas lembranças da affeição
    Que alli captivo me tinha,
    Me perguntárão então,
    Qu'era da musica minha,
    Que eu cantava em Sião?
    Que foi daquelle cantar,
    Das gentes tão celebrado?
    Porque o deixava de usar,
    Pois sempre ajuda a passar
    Qualquer trabalho passado?

    Canta o caminhante ledo
    No caminho trabalhoso
    Por entre o espêsso arvoredo;
    E de noite o temeroso
    Cantando refreia o medo.
    Canta o preso docemente,
    Os duros grilhões tocando;
    Canta o segador contente;
    E o trabalhador, cantando,
    O trabalho menos sente.

    Eu qu'estas cousas senti
    N'alma de mágoas tão cheia,
    Como dirá, respondi,
    Quem alheio está de si

    Doce canto em terra alheia?
    Como poderá cantar
    Quem em chôro banha o peito?
    Porque, se quem trabalhar
    Canta por menos cansar,
    Eu só descansos engeito.

    Que não parece razão,
    Nem sería cousa idonia,
    Por abrandar a paixão
    Que cantasse em Babylonia
    As cantigas de Sião.
    Que quando a muita graveza
    De saudade quebrante
    Esta vital fortaleza,
    Antes morra de tristeza,
    Que por abrandá-la cante.

    Que se o fino pensamento
    Só na tristeza consiste,
    Não tenho medo ao tormento:
    Que morrer de puro triste,
    Que maior contentamento?
    Nem na frauta cantarei
    O que passo, e passei ja,
    Nem menos o escreverei;
    Porque a penna cansará,
    E eu não descansarei.

    Que se vida tão pequena
    S'accrescenta em terra estranha;
    E se Amor assi o ordena,
    Razão he que canse a penna
    D'escrever pena tamanha.

    Porém, se para assentar
    O que sente o coração,
    A penna ja me cansar,
    Não canse para voar
    A memoria em Sião.

    Terra bem-aventurada,
    Se por algum movimento
    D'alma me fores tirada,
    Minha penna seja dada
    A perpétuo esquecimento.
    A pena deste destêrro,
    Qu'eu mais desejo esculpida
    Em pedra, ou em duro ferro,
    Essa nunca seja ouvida,
    Em castigo de meu êrro.

    E se eu cantar quizer
    Em Babylonia sujeito,
    Hierusalem, sem te ver,
    A voz, quando a mover,
    Se me congele no peito;
    A minha lingua se apegue
    Ás fauces, pois te perdi,
    S'em quanto viver assi
    Houver tempo, em que te negue,
    Ou que m'esqueça de ti.

    Mas ó tu, terra de glória.
    S'eu nunca vi tua essencia,
    Como me lembras na ausencia?
    Não me lembras na memoria,
    Senão na reminiscencia:
    Que a alma he taboa rasa,

    Que com a escrita doutrina
    Celeste tanto imagina,
    Que vôa da propria casa,
    E sobe á patria divina.

    Não he logo a saudade
    Das terras onde nasceo
    A carne, mas he do Ceo,
    Daquella santa Cidade,
    Donde est'alma descendeo.
    E aquella humana figura,
    Que cá me póde alterar,
    Não he quem se ha de buscar;
    He raio da formosura,
    Que só se deve d'amar.

    Que os olhos, e a luz que ateia
    O fogo que cá sujeita,
    Não do sol, nem da candeia,
    He sombra daquella ideia,
    Qu'em Deos está mais perfeita.
    E os que cá me captivárão,
    São poderosos affeitos
    Qu'os corações tẽe sujeitos;
    Sophistas, que m'ensinárão
    Maos caminhos por direitos.

    Destes o mando tyrano
    M'obriga com desatino
    A cantar ao som do dano
    Cantares d'amor profano,
    Por versos d'amor divino.
    Mas eu, lustrado co'o santo
    Raio, na terra de dor,

    De confusões e d'espanto
    Como hei de cantar o canto,
    Que só se deve ao Senhor?

    Tanto póde o beneficio
    Da graça que dá saude,
    Que ordena que a vida mude:
    E o qu'eu tomei por vício,
    Me faz grao para a virtude;
    E faz qu'este natural
    Amor, que tanto se préza,
    Suba da sombra ao real,
    Da particular belleza
    Para a belleza geral.

    Fique logo pendurada
    A frauta com que tangi,
    Ó Hierusalem sagrada,
    E tome a lyra dourada
    Para só cantar de ti;
    Não captivo e ferrolhado
    Na Babylonia infernal,
    Mas dos vicios desatado,
    E cá desta a ti levado,
    Patria minha natural.

    E s'eu mais der a cerviz
    A mundanos accidentes,
    Duros, tyrannos e urgentes,
    Risque-se quanto ja fiz
    Do grão livro dos viventes.
    E, tomando ja na mão
    A lyra santa e capaz
    D'outra mais alta invenção,

    Calle-se esta confusão,
    Cante-se a visão de paz.

    Ouça-me o pastor e o rei,
    Retumbe este accento santo,
    Mova-se no mundo espanto;
    Que do que ja mal cantei
    A palinodia ja canto.
    A vós só me quero ir,
    Senhor, e grão Capitão
    Da alta tôrre de Sião,
    Á qual não posso subir,
    Se me vós não dais a mão.

    No grão dia singular,
    Que na lyra em douto som
    Hierusalem celebrar,
    Lembrae-vos de castigar
    Os ruins filhos de Edom.
    Aquelles que tintos vão
    No pobre sangue innocente,
    Soberbos co'o poder vão,
    Arrazá-los igualmente:
    Conheção que humanos são.

    E aquelle poder tão duro
    Dos affectos com que venho,
    Qu'encendem alma e engenho;
    Que ja m'entrárão o muro
    Do livre arbitrio que tenho;
    Estes, que tão furiosos
    Gritando vem a escalar-me,
    Maos espiritos damnosos,
    Que querem como forçosos

    Do alicerce derribar-me;

    Derribae-os, fiquem sós,
    De fôrças fracos, imbelles;
    Porque não podemos nós,
    Nem com elles ir a vós,
    Nem sem vós tirar-nos delles.
    Não basta minha fraqueza
    Para me dar defensão,
    Se vós, santo Capitão,
    Nesta minha Fortaleza
    Não puzerdes guarnição.

    E tu, ó carne, qu'encantas,
    Filha de Babel tão feia,
    Toda de miseria cheia,
    Que mil vezes te levantas
    Contra quem te senhoreia;
    Beato só póde ser
    Quem co'a ajuda celeste
    Contra ti prevalecer,
    E te vier a fazer
    O mal que lhe tu fizeste:

    Quem com disciplina crua
    Se fere mais que huma vez;
    Cuja alma, de vicios nua,
    Faz nodas na carne sua,
    Que ja a carne n'alma fez.
    E beato quem tomar
    Seus pensamentos recentes,
    E em nascendo os affogar,
    Por não virem a parar
    Em vicios graves e urgentes:

    Quem com elles logo der
    Na pedra do furor santo,
    E batendo os desfizer
    Na Pedra, que veio a ser
    Emfim cabeça do canto:
    Quem logo, quando imagina
    Nos vicios da carne má,
    Os pensamentos declina
    Áquella Carne divina,
    Que na Cruz esteve ja.

    Quem do vil contentamento
    Cá deste mundo visibil,
    Quanto ao homem for possibil,
    Passar logo entendimento
    Para o mundo intelligibil;
    Alli achará alegria
    Em tudo perfeita, e cheia
    De tão suave harmonia,
    Que nem por pouca recreia,
    Nem por sobeja enfastia.

    Alli verá tão profundo
    Mysterio na summa Alteza,
    Que, vencida a natureza,
    Os mores faustos do mundo
    Julgue por maior baixeza.
    Ó tu, divino aposento,
    Minha patria singular,
    Se só com te imaginar,
    Tanto sobe o entendimento,
    Que fara se em ti se achar?

    Ditoso quem se partir

    Para ti, terra excellente,
    Tão justo e tão penitente,
    Que despois de a ti subir,
    Lá descanse eternamente!

    Salmo 137 - Super flumina Babylonis



    Junto aos rios da Babilônia, ali nos assentamos e choramos, quando nos lembramos de Sião.
    Sobre os salgueiros que há no meio dela, penduramos as nossas harpas.
    Pois lá aqueles que nos levaram cativos nos pediam uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-nos uma das canções de Sião.
    Como cantaremos a canção do Senhor em terra estranha?
    Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha direita da sua destreza.
    Se me não lembrar de ti, apegue-se-me a língua ao meu paladar; se não preferir Jerusalém à minha maior alegria.
    Lembra-te, Senhor, dos filhos de Edom no dia de Jerusalém, que diziam: Descobri-a, descobri-a até aos seus alicerces.
    Ah! filha de babilônia, que vais ser assolada; feliz aquele que te retribuir o pago que tu nos pagaste a nós.
    Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras.

    Salmos 137:1-9

    https://www.bibliaonline.com.br/acf/sl/137



    Daniele Dori
    Publicado a 30/09/2011
    Basilica di  Sant'Apollinare - Roma - 30/01/2011
    Stagione Concertistica del Pontificio Istituto di Musica Sacra di Roma

    Cappella Musicale della Cattedrale di Fiesole
    Direttore, Michele Manganelli 

    As gorduras que temos de eliminar

     

    • Rui Mota 


    Perante a realidade, como transformá-la? E de que lado queremos estar?
    As gorduras que temos de eliminar
    SUSANA MATOS

    A menos de uma semana de comemorarmos o aniversário do 25 de Abril, olhamos para dois livros de Álvaro Cunhal dedicados aos leitores mais novos, publicados nos últimos meses. Um desses livros é Os Barrigas e os Magriços e traz-nos a história de um país de há muitos anos atrás. Um país onde havia uns homens conhecidos como os Barrigas — que comiam tanto, tanto que «o corpo dos Barrigas lá por dentro devia ser todo estômago»; e outros conhecidos como os Magriços — que à falta de trabalho ficavam «tão magrinhos, só pele e osso, magrinhos como carapaus secos».

    Era um país injusto, onde uns trabalhavam para outros enriquecerem, onde faltava a liberdade e se enchiam as prisões. Mas aconteceu numa Primavera os Magriços juntarem-se aos soldados para dizerem «ao mais barrigudo dos Barrigas» que «Isto não pode continuar assim». E sem medo avançaram para as terras e para as fábricas, desenvolveram o País, distribuíram a riqueza por todos e tornaram-se assim senhores do seu próprio destino. Como nos diz no texto, «quando se fala no 25 de Abril, é dessa revolta dos Magriços e do que foram capaz de realizar que se fala».

    Ao longo do texto, Álvaro Cunhal vai interpelando os leitores, colocando importantes questões. Questões que são para todos os tempos, e para leitores de todas as idades: «Se algum de vocês fosse um Magriço, o que fazia?» «Se tivesses vivido nessa época, com quem estarias tu?» Ao celebrar Abril de olhos postos no futuro, são estas as questões a colocar: perante a realidade, como transformá-la? E de que lado queremos estar nessa transformação?

    É exactamente sobre os lados em que estamos que nos fala a História de Um Gordo Chinês Que Estava de Barriga para o Ar, publicado no início deste mês. Este conto, escrito durante a Guerra Civil de Espanha para ser lido na Rádio Peninsular, retrata a descoberta de Manuel e Mariazinha, duas crianças travessas e rabinas de visita à China, que não conseguiam perceber por que razão Pung-Chung, um senhor chinês muito rico e gordo, dono de muitas terras, passava o tempo de barriga para o ar. Pung-Chung explicou-lhes que trabalhava, e muito, e que se as crianças achavam fácil que se pusessem de barriga para o ar para ver como cansa. Foi um pobre camponês que trabalhava nos nas terras de Pung-Chung que explicou às duas crianças o que realmente se passava.

    Este conto confirma essa análise à sociedade burguesa presente no Manifesto do Partido Comunista: «os que nela trabalham não ganham, e os que nela ganham não trabalham».

    Estes dois livros de Álvaro Cunhal, agora publicados com ilustrações originais de Susana Matos, vão ser apresentados neste sábado, às 18 horas, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, no final do colóquio «Literatura Neo-Realista para a Infância» que se realiza integrado na exposição «Miúdos, a vida às mãos cheias – A infância do Neo-Realismo português».

    http://www.avante.pt/pt/2316/argumentos/149578/As-gorduras-que-temos-de-eliminar.htm

    segunda-feira, 16 de abril de 2018

    Victor Jara - Somos cinco mil

    * Victor Jara


    Somos cinco mil
    nesta pequena parte da cidade.
    Somos cinco mil.
    Quantos seremos no total,
    nas cidades e em todo o país?
    Somente aqui, dez mil mãos que semeiam
    e fazem andar as fábricas.Quanta humanidade
    com fome, frio, pânico, dor,
    pressão moral, terror e loucura!Seis de nós se perderam
    no espaço das estrelas.Um morto, um espancado como jamais imaginei
    que se pudesse espancar um ser humano.Os outros quatro quiseram livrar-se de todos os temores
    um saltando no vazio,
    outro batendo a cabeça contra o muro,
    mas todos com o olhar fixo da morte.Que espanto causa o rosto do fascismo!Colocam em prática seus planos com precisão arteira,
    sem que nada lhes importe.O sangue, para eles, são medalhas.A matança é ato de heroísmo.É este o mundo que criaste, meu Deus?
    Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?Nestas quatro muralhas só existe um número
    que não cresce,
    que lentamente quererá mais morte.Mas prontamente me golpeia a consciência
    e vejo esta maré sem pulsar,
    mas com o pulsar das máquinas
    e os militares mostrando seu rosto de parteira,
    cheio de doçura.E o México, Cuba e o mundo?Que gritem esta ignomínia!
    Somos dez mil mãos a menos
    que não produzem.Quantos somos em toda a pátria?O sangue do companheiro Presidente
    golpeia mais forte que bombas e metralhas.Assim golpeará nosso punho novamente.Como me sai mal o canto
    quando tenho que cantar o espanto!Espanto como o que vivo
    como o que morro, espanto.De ver-me entre tantos e tantos
    momentos do infinito
    em que o silêncio e o grito
    são as metas deste canto.O que vejo nunca vi,
    o que tenho sentido e o que sinto
    fará brotar o momento..."

    (Victor Jara, Estádio de Chile, Setembro 1973)

    Armindo Rodrigues - Liberdade

    * Armindo Rodrigues


    Ser livre é querer ir e ter um rumo
    e ir sem medo,
    mesmo que sejam vãos os passos.
    É pensar e logo
    transformar o fumo
    do pensamento em braços.
    É não ter pão nem vinho,
    só ver portas fechadas e pessoas hostis
    e arrancar teimosamente do caminho
    sonhos de sol
    com fúrias de raiz.

    É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
    e, mesmo assim,
    só de pensar gritar
    gritar
    e só de pensar ir
    ir e chegar ao fim.


    Pablo Neruda - Os comunistas

    * Pablo Neruda



    Os que colocam a alma na pedra,

    no ferro, na dura disciplina,

    ali vivemos só por amor

    e já se sabe que nos dessangramos

    quando a estrela foi tergiversada

    pela lua sombria do eclipse.


    Agora vereis que somos e pensamos.

    Agora vereis que somos e seremos.


    Somos a prata pura da terra,

    o verdadeiro mineral do homem,

    a fortificação da esperança;

    um minuto de sombra não nos cega:

    com nenhuma agonia morreremos.



    Ary dos Santos - Soneto escrito na morte de todos os antifascistas assassinados pela PIDE

    * Ary dos Santos

    Vararam-te no corpo e não na força
    e não importa o nome de quem eras
    naquela tarde foste apenas corça
    indefesa morrendo às mãos das feras.


    Mas feras é demais. Apenas hienas
    tão pútridas tão fétidas tão cães
    que na sombra farejam as algemas
    do nome agora morto que tu tens.


    Morreste às mãos da tarde mas foi cedo.
    Morreste porque não às mãos do medo
    que a todos pôs calados e cativos.


    Por essa tarde havemos de vingar-te
    por essa morte havemos de cantar-te:
    Para nós não há mortos. Só há vivos.


    Francisco Miguel Duarte - Não cultives a fraqueza

    * Francisco Miguel Duarte 

    Vive o fraco na fraqueza
    o bom na sua bondade
    vive o firme na firmeza
    lutando por liberdade. Não cultives a fraqueza,
    procura sempre ser forte,
    que o homem que tem firmeza
    não se rende nem à morte. Educa a tua vontade
    faz-te firme: em decisões,
    que não terá liberdade
    quem não fizer revoluções. Se queres o mundo melhor
    vem cá pôr a tua pedra,
    quem da luta fica fora
    neste jogo nunca medra


    Francisco Miguel Duarte - Poeta popular nascido no Alentejo,Operário sapateiro, filho de camponeses —

    Ho Chi Minh - Os Resistentes



    * Ho Chi Minh


    “Um dia encarcerado:
    Mil anos lá fora”.
    Não é vã palavras
    este provérbio antigo.
    Quatro meses na cela
    destruíram meu corpo
    mais que dez anos de vida.
    Quatro meses de fome,
    quatro meses de insônia,
    sem mudar de roupa
    sem poder me lavar.
    Abandonou-me um dente,
    cabelos branquearam,
    negro, magro, faminto,
    vestido de sarna e de feridas.
    Mas paciente sou,
    duro, rijo,
    sem recuar um palmo.
    Materialmente miserável,
    o moral, firme.


    domingo, 15 de abril de 2018

    Jorge de Sena - Super Flumina Babylonis




    * Jorge de Sena 


    É que os génios não têm, não precisam de ter biografia. (Latino Coelho — Luís de Camões, Lisboa, 1880)

    A ascensão da estreita escada escura, e tão a pino, com os degraus muito altos e cambaios, era, sempre que voltava a casa, uma tortura. À força de equilíbrios, meio encostado à parede, cuja cal já se esvaíra havia muito e até nas suas costas, e apoiando em viés uma das muletas no extremo oposto do degrau de cima, ia subindo cuidadosamente, num resfolegar de raiva pela lentidão. Toda a unção adquirida na conversa com os frades de S. Domingos, a cujas prelecções regularmente assistia, ficando depois a discretear com eles, se perdia naquele regresso a casa, ao fim da tarde, e mal se recompunha no repouso à janela, sentado no banquinho baixo, comido o caldo, e ruminando memórias e tristezas, enquanto a velha mãe prosseguia intermináveis arrumos pontuados de começos de conversa, a que respondia com sorrisos e distraídos monossílabos ou com frases secas em que ripostava mais a si próprio que a ela mesma. Às vezes, ela insistia, repetindo um comentário, por uma resposta sua. Mas mesmo essa insistência não significava comunicação efectiva: ela apenas pretendia tranquilizar a própria consciência e o seu dó do filho envelhecido e doente, que a vida destruíra, com algumas palavras que lhe dirigisse, simulando uma conversa que não o deixasse entregue, perigosamente, aos solitários pensamentos, onde é sabido que o Inimigo especialmente se insinua. E não era dos pensamentos que ele tinha medo, mas dos vazios cada vez maiores que, entre os pensamentos, se faziam. Quando ela lhe falava, e sobretudo quando ela insistia, precisava não se deixar distrair pelas palavras que ouvia: ou logo, no fio interrompido das ideias que continuamente deslizavam como um rio revolto, se abria um vácuo tenebroso, um vórtice sombrio em que flutuavam farrapos de versos e de coisas vistas, e, mais no fundo, como que uma pequenina porta iluminada, ou um vidro posto sobre estranhas águas em que nadavam esquisitos seres, e que parecia um olho fito nele, pestanejando ou palpitando, não sabia bem, talvez que, sim, nem mesmo um olho, mas uma transparência marinha como os reflexos das ondas ao luar. A pequenina porta, que lhe fazia vertigens, nem sempre se mostrava. Na maior parte das vezes não havia mais que o poço em que se debruçava, ansioso de que a portinha se abrisse e tremente até ao arrepio pela frialdade que dela vinha. Fechando os olhos, cerrando-os com bastante força, conseguia então afugentar aquelas visões» ou aquela visão, sempre a mesma, que sonhava acordado. Porque dos sonhos tinha ódio. Pensar, devanear, lembrar, imaginar, mesmo supor como tudo poderia ter sido numa vida triunfante e num outro mundo, não era sonho, mas a certeza de que existia, de que as coisas se arrumavam por sua vontade, que a ordem delas e do Mundo era um desconcerto que ele organizava mentalmente. Quando dormia, não sonhava nunca. Não eram sonhos as coisas que então via, mas a continuação do mesmo poder e da mesma certeza, ou então tentações do demónio, como diziam os padres. Mas as tentações ele conhecia bem.. Não eram tentações da sua alma que Deus não deixaria que se perdesse nunca, a não ser naquele vórtice estranho onde parecia que Ele não penetrava. Como tentações? Que tentação era ter nos braços uma mulher que lhe escapara? Que tentação era matar, dormindo, um inimigo poderoso e inacessível? Que tentação era ver-se feliz num palácio, rico, respeitado, rodeado de servos e de admiradores, com uma mesa farta de bons petiscos e de bons vinhos, e com saúde e vigor para uns jogos de armas ou para uma bela amante pescada na rua, todos os dias uma diferente? Que tentação ver-se na Corte, com bom gibão de veludo e a gola de finas rendas, ouvindo os elogios dos seus pares, e recitando ou lendo o último poema escrito? Não eram tentações estas coisas, não, mas consolações piedosas da sua alma, a satisfação do que lhe fugira, a plenitude do que não tivera, a saciedade do que não bastara, a conquista do que jamais pudera ter sido seu. Pecado é sonhar com o futuro: desejar a mulher que se viu neste instante, querer com fúria o que é dado a outros, invejar furiosamente, como coisa que nos foi roubada, a felicidade alheia que está dançando, sem vergonha e sem respeito pela nossa miséria, diante dos nossos olhos que param a vê-la. Mas imaginar-se feliz no passado, com aquilo que fugidiamente o perpassara, e não fora nunca do tamanho da sua fome, não era tentação, não era um pecado, era, sim, a sua única riqueza, a sua única razão de esperar a morte, seco de amor, exangue de entusiasmos, descrente da pátria, destituído até da alegria de fazer versos. Os seus versos, agora, haviam-no abandonado. Haviam-se desfeito, como açúcar, no rio ininterrupto do pensamento, aonde antigamente flutuavam de súbito, como pedaços de ardente gelo, que um a um se atrelavam para dar um poema. E não tinha deles saudade alguma. Não fora nunca para si próprio que os escrevera. Para os outros, sim. Para que o ouvissem, para que o admirassem, para que o entendessem, para que vissem como tudo, na vida, tinha um sentido exacto que só ele era capaz de achar, uma arquitectura que não teria tido sem ele, uma beleza que não existe senão como a ideia que primeiro é pensada por quem é digno dela.

    Empurrou a porta, e entrou. Contra o costume, a mãe não lhe apareceu, nem ele sentiu na casa ruído algum. Fechou a porta, foi até à mesa, e sentou-se na cadeira, encostando as muletas. Sentar-se era um alívio do cansaço, e uma nova tortura também. Mas a ausência da mãe, tão inabitual, tornou menos tortura a tortura de sentar-se ajeitando as partes inchadas e doloridas, acto que, com uma vergonha infinita, era obrigado a fazer diante dela, e que por isso não ajeitava bem, sentindo os olhos da velhinha fitos nele, horrorizados com a monstruosidade dos castigos reservados a quem se entrega aos pecados da carne, sem se manter puro como veio ao mundo. Ela, que, quando o marido voltava de uma viagem, só deixava que ele a beijasse depois de ter a certeza que não havia desembarcado em porto algum, desde muitos meses… Suspirando, sorriu para si mesmo. Na primeira viagem que fizera, ao embarcar-se para a Índia, ainda derrancado das orgias de noites consecutivas, destinadas a prevenir-se para tanto tempo de céu e mar e de conversa de homens, ele… Benzeu-se. Estas memórias eram tentações da carne. E nisso estava a diferença da poesia que escrevera na vida. Umas vezes escrevera na verdade para saber o que pensava. Mas outras vezes escrevera para possuir efectivamente, como, quando era moço, repetia de seguida o acto do amor, não porque desejasse, mas para sentir melhor que possuía, para ter a certeza de que possuía mesmo a marafona de que se esquecera durante a primeira vez. Agora, assim alquebrado e impotente, tudo o que pensava, se o escrevesse, lhe parecia que era só desta poesia que pecava contra o Santo Espírito, e que não era uma dádiva, uma oferta do seu corpo ao corpo em que entrava, mas uma rapina, uma avareza, uma maneira de devorar o próximo. E mesmo de tudo o que escrevera lhe parecia incerto que o tivesse sido abnegadamente, já que sempre ansiara pelo reconhecimento alheio, pelo triunfo, pela glória, pelos prémios, a ponto de contentar-se com o sorriso constrangido dos ignorantes a quem lia os poemas.

    Levantou o olhar para a janela. No prédio fronteiro, viu o calafate sentado à mesa, que o observava amigavelmente por cima da escudela fumegante. Acenou-lhe de cabeça, e o outro fez com a mão um gesto largo, que terminou apontando o caldo numa oferta gentil. Correspondeu com um gesto como que de adeus, e desviou a vista. À varanda vieram encostar-se as duas crianças; não precisava de fitar Para saber. Nunca gostara de crianças, nunca pensara em tomar estado para tê-las suas. Talvez por isso mesmo é que tanto ou tudo da sua poesia ficara como aqueles filhos que não quisemos ter, e que depois se despegam de nós adivinhando um desapego de que nos arrependemos, mas que não deixa de ser um desapego mesmo arrependido. O amor para ele fora carne e espírito, tão carne, que nenhum espírito podia estar presente, e tão espírito, que nem toda a carne do mundo, usada dia e noite, chegava para contentá-lo. Até o fastio, que às vezes o afastava longamente de contactos carnais, era uma ardência insatisfeita, que se continha, suspensa e ameaçadora, à espera de esquecer que a carne era sempre igual, e os gestos do amor tão poucos que os sabia já de cor. Mas depois, ao fazê-los, era sempre, como na primeira vez, uma surpresa, uma ignorância curiosa, um receio tímido, uma insegurança doce, um pasmo juvenil, uma alegria nova, um encantamento frenético; era como na primeira iniciação, mas sem a perplexidade e a decepção de o amor não ser mais do que isso, quando a virtude do amor não está em ser mais do que é, mas em ser o prazer de não ser isso mesmo.

    Novamente ergueu os olhos para a varanda fronteira. As crianças não estavam lá, e o homem, curvado para a escudela, comia o seu caldo. Aquele mistério da Encarnação, o frade hoje falara muito bem, explicando com eloquência o seu sentido. Mas o sentido da Encarnação não precisava ele que lho explicassem. Quem amara com a carne e com o pensamento como ele, quem escrevera do Amor como ele escrevera, e quem não gostara nunca de crianças, como ele, tinha da Encarnação uma experiência que o frade não tinha. Precisamente porque tudo se encarnara nele sem encarnar-se, e lhe devorara a própria carne, deixando-o aquele farrapo imundo que era agora, quem melhor sabia o que era a Encarnação? Ou, pelo menos, tanto quanto um homem pode sabê-lo? Sentir-se grávido de um poema, sentir-se fecundado por um relâmpago entrevisto, e ser um homem — é o mais que pode saber-se. Não o sabe a mulher que dá à luz, porque é delas dar à luz, às vezes sem ter amado. Não o sabe o homem que quer ter filhos, porque os pode fazer sem amor. Mas o poeta que praticou o amor até à destruição da carne, e escreveu poemas até que o espírito acha pouco a poesia, esse, sim, esse sabe o que Encarnação seja. Apenas, porém, o sabe. Mas não viveu a Encarnação, foi a Encarnação quem o viveu a ele. E é este o grande mistério, não o outro. E é a grande diferença entre um deus que se encarna, e o homem em quem a Encarnação se representa. Uma diferença que é, afinal, uma comédia, ou pode ser vista como uma comédia, porque todo o homem a quem isso aconteça é Anfitrião, um marido enga¬nado pelo Júpiter que há nele.

    Ficou vendo diante de si o palco iluminado, e as figuras declamando os versos. A porta rangeu, e os passinhos leves soaram atrás dele. A voz fininha e aguda começou a sua declamação desafinada.

    — Esteve hoje cá o Padre Manuel à tua procura, e eu disse-lhe que hoje era dia de ires a São Domingos, e ele disse-me que não se tinha lembrado, e eu perguntei-lhe quando voltava, e ele respondeu que precisava perguntar-te do teu livro, mas não era pressa, voltava noutro dia, ou tu fosses procurá-lo amanhã ou depois. Que é que ele anda a fazer com o teu livro, sempre a perguntar-te coisas? Então um livro desses, que não é de coisas de Deus Nosso Senhor e da nossa santa religião, precisa que tu estejas sempre a explicar o que é isto e o que é aquilo, e a contar a tua vida, nem que ele fosse o teu evangelista? A Virgem Santíssima me perdoe, mas parece-me um grande pecado. E contar a vida às outras pessoas é um grande pecado da vaidade. A vida conta-se ao padre confessor, e faz-se a penitência que ele manda pelas nossas más palavras e obras, e pronto. E, à hora da morte, a gente conta o que ainda lembra ou fez entretanto, e o padre dá a absolvição, se fomos virtuosos e piedosos, e nunca faltámos aos nossos deveres para com Deus e a sua Igreja. Ah, veio também o criado do Senhor Rui Dias, do mando deste senhor, que tão teu amigo é, perguntar pela encomenda que te fez daquelas poesias del-rei David que Deus haja. E eu disse que tu ainda não acabaste e que logo acabas, e que tens trabalhado muito e até tens estudado com o Padre Manuel para que as palavras santas fiquem todas certas e nos seus lugares. E ele disse que o amo estava muito arreliado contigo, que havia mais que muitos meses que tinha feito a encomenda, e que tu não fazias nada, e que já tinha pago adiantado uma parte do trabalho. E eu disse que era verdade, que ele já tinha pago, mas que nestas coisas pagar adiantado alguma coisa é como dar o pano ao alfaiate, porque o alfaiate não pode fazer o gibão sem o pano, e tu não podias escrever sem comer. E disse-lhe que a tua tença estava atrasada e que não a pagavam, e que eu esperava muito da bondade do seu amo e do grande poder que lá tem no Paço que a tença fosse paga em dia, que bem a tinhas merecido de Sua Alteza pelos muitos serviços de teu pai que Deus tenha em descanso, e também pelos teus serviços, que se tinhas sido um rapaz sem juízo, e não tiveste sorte na vida, também eras um homem que escrevia livros, e sabias muitas coisas divinas e humanas, como o Senhor Padre Manuel me disse, e Frei Bartolomeu escreveu na licença que te deu…

    — Frei Bartolomeu só disse que eu sabia muito de coisas humanas.

    — Pois é. Porque saber de coisas divinas tu podias ter aprendido se tivesses estudado a valer, e tido juízo, que podias hoje até ser bispo e mais do que eles dois. Mas meteste-te com más mulheres e más companhias, e hoje é isso que se vê, e, em vez de seres tu a dar as licenças, és tu quem as vai pedir a eles. Se não fossem teus amigos e tu não lhes moesses a paciência, e não mostrasses como és um homem arrependido da má vida que teve, não ta davam, que isto de frades, Nossa Senhora me perdoe, se alguém me ouve. O teu pai é que se ria deles, e dizia que eram todos uns vadios, que só queriam comer e ter as mulheres dos outros. Abrenúncio, e por isso Deus o castigou com aquela desgraçada morte, que nem teve sepultura cristã. Mas tu podias ir procurar o Senhor Duque ou o Senhor D. Manuel, e lembrar-lhes que a tua tença está atrasada, e eles não há que não consigam, de tão grandes senhores que são, primos del-rei. Eu tive de sair para visitar a nossa comadre Joaquina que está outra vez com a sua dor e não tem ninguém que cuide dela, mas logo lhe disse que não podia demorar-me, porque hoje era dia de ires a São Domingos santificar a alma, que bem precisas, e logo voltavas com fome e querias a tua ceia, e ficavas aborrecido se eu não estivesse em casa quando chegasses, para te dar o caldo, e ela respondeu que não eras nenhuma criança que chorasse pelo peito da mãe, e eu disse-lhe que tu nunca tinhas chorado pelo peito da tua mãe, e é verdade também porque eu te dava logo de mamar mal tu abrias a boca para gritar. Mas que nunca choraste para mamar é a verdade, e só choravas depois, porque o meu leite era fraco e foi preciso trazer uma ama, e o teu pai queria que tu fosses criado com ama, porque não era da nossa condição que tu fosses criado ao peito de uma senhora como eu, esposa de um homem como ele, tudo gente de condição. Mas a condição que nós tínhamos era só o que ele ganhava, e Deus sabe como eu vivi depois que teu pai faltou e tu andavas lá por essas terras de gentios e de infiéis, por tanto tempo e eu sem saber se eras vivo ou morto, e só sabia quando chegavam as armadas e vinha alguém conhecido que me dava notícias tuas, e me dizia que tu tinhas ido para aqui e para ali, ou estavas não sei onde, que para mim todas aquelas Índias são o mesmo, e os nomes das terras são mesmo coisa do demónio, cruzes, de arrenegados para se entenderem. Muitas vezes eu pensava que me escrevias, mas tu nunca escrevias, e muitas pessoas me diziam que tu lá escrevias as cartas dos outros, que escrever bem tu sempre escreveste desde muito pequeno] mas punhas as coisas bonitas no papel para eles, e para mim nada. E eu ficava rezando a Sant’Ana e a Nossa Senhora e às vezes até mudava de santo para que nenhum se cansasse de me ouvir, sempre temendo que morresses nas guerras e nos naufrágios, ou dessas doenças que há lá, e a pensar que às vezes eu podia estar a rezar pela tua boa sorte e as rezas afinal servirem para te descontar os dias de Purgatório pelos teus pecados e leviandades, e o corpo que eu dei à luz estar comido dos peixes ou do gentio, sem sepultura cristã, como teu pobre pai que Deus haja e eu só soube tanto tempo depois. E a comadre Joaquina deu-me este pastel que aqui trago e que é de uma galinha que lhe deu a vizinha, ou uma meia galinha só, de que ela fez este pastel, e me disse que tinha outro e que te mandava este, mas queria que tu lhes escrevesses uma oração em verso a S. Crispim de que é muito devota, e eu disse que tu havias de escrever depois de comeres o pastel.

    — Eu como o pastel, mas versos aos santos não faço.

    — Deus meu, se alguém te ouve e pensa que tu não acreditas nos santos. A Santa Inquisição que nos livrou da maldade e da malícia dos inimigos da nossa Fé manda que se acredite nos santos, e eu bem sei que tu não acreditas, nunca te encomendas a eles, e é por pecado de orgulho, ao que me disse o Padre Manuel, quando eu lhe falei da minha aflição por tu não acreditares nos santos, e ele me respondeu que tu achas os santos pequenos de mais para ti, e não te contentas senão com Deus Nosso Senhor. Eu até fiquei arrepiada de pensar no perigo que é não ter um santo que nos proteja. Se não fossem o Senhor Duque e o Senhor D. Manuel e o Senhor Rui Dias e outros senhores assim, eu queria ver de que é que tu vivias, que el-rei nem saberia da tua existência. Deus me perdoe, mas não é que Deus não saiba de ti, porque ele sabe de todos nós e é um pai aman¬tíssimo que não tira os olhos de nós. Mas está na sua divina majestade, ocupado em reger o Mundo, e nunca ninguém ganhou causas sem advogado. A mim a Senhora Sant’Ana nunca me desampara, eu nem sei o que seria de mim e de ti sem ela. Que este pastel é um milagre dela. Quando eu saí para visitar a comadre Joaquina, ia dizendo comigo que a Senhora Sant’Ana fizesse que eu não voltasse para casa com as mãos vazias e trouxesse algum petisco para o meu filho, e pedi mesmo um pastel de galinha, que era o mais certo, porque a comadre Joaquina sempre tem pastéis de galinha. E eu não prometi à Senhora Sant’Ana que tu farias o que a comadre pedisse, porque já te conheço, e não há contar contigo para coisa nenhuma que não seja comer o pastel. E por isso não faz mal que não faças os versos a S. Crispim, porque não foi promessa minha. A comadre é que disse que tu, se quisesses, podias fazer, que toda a gente dizia que eras muito bom dizedor, e que fazias logo os versos que te pediam. E eu respondi que isso seria dantes, porque agora tinhas uma encomenda muito boa, de grande rendimento, do Senhor Rui Dias, que nos fazia a honra de ser teu amigo, de pôr em verso os Salmos del-rei David que Deus haja, e que tu não escrevias nada, e até hoje o criado dele cá estivera a reclamar por causa do pagamento adiantado. Tu estás a dormir, tu não ouves o que eu digo? Come o teu caldo enquanto está quente e depois o pastel que é bem gostoso se for igual ao outro que a comadre tinha. Eu já ceei em casa dela, e estou sem apetite só de ver-te nesse estado, um rapaz tão forte e tão bonito como tu eras, que não havia moça que não se voltasse para te ver, nem homem que não se mordesse de inveja. E, quando o sol dava no teu cabelo, eu dizia comigo que o meu filho era como um rei com a coroa na cabeça, ou, Deus me perdoe, como um grande santo de resplendor dourado em dia de procissão. E ficava a ver-te ir pela rua abaixo, tão vaidoso que nem olhavas para trás, com a mão no punho da espada, e os passos tão firmes, Deus meu, que parecia que a terra era toda tua. Por essas e por outras é que as tuas desgraças começaram, com as arruaças e as brigas, e o mau feito, desgraça maior que todas, de acutilares o homem em Dia de Corpus Christi, aquele patife sem vergonha que te desgraçou e fez ir para a Índia e que merecia morrer em pecado, Deus me perdoe se sou eu quem peca. Está tão escuro já que vou acender a candeia. Mas o lume apagou-se e vou descer à vizinha a pedir-lhe lume. Deus Nosso Senhor tenha piedade de mim, velha e cansada, e com um filho homem, e sou eu quem tem de descer a escada para buscar o fogo que não há na minha casa. Abriu o olhar às trevas e ao silêncio. Conhecia tão bem os cantos da quadra, que era como se estivesse vendo a arca e o oratório com o raminho entalado, os quadrinhos de santos pendurados, a prateleira com os pratos em pé, a enxerga ao canto, onde ele dormia, a porta da alcova de sua mãe e a porta da cozinha. Via tudo com a mesma cer¬teza e a mesma minúcia com que vira as naus do Gama nave¬gando no mar, lá em baixo, vistas do Empíreo, com que vira Vénus abraçada a Júpiter e chorando, com que vira o Ada¬mastor sair da nuvem grossa, com que vira o Veloso correndo pelo monte abaixo. Mas ele acutilara o Borges, porquê? Para que a vida lhe mudasse de rumo, para que ela tomasse um rumo de fatalidade, para que as índias lhe fossem impostas pela sua estrela, para que a sua estrela existisse. Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor somente. Como a poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não dizendo que diz. Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e como não é dela que sabemos depois de ter escrito. A perdição procura-se, como um homem se despe para banhar–se no mar, a modos que Leandro atravessando o Helesponto. E o amor somente bastaria, como o momento em que tudo se esquece, tudo desaparece, tudo se evapora, ao calor que abrasa e que só dura um instante mas um instante em que o tempo se suspende, se petrifica num espaço e numa forma, e todo o verdadeiro espaço foge velozmente, correndo pelos tempos fora até que é ele o tempo que se suspendeu. Apenas como isso, porque é uma imagem do supremo amor, aquele que existe além do tempo e do espaço, além das esferas, além daquele poço terrível. Além ou aquém? E se esse amor não fosse mais do que uma imagem, uma essência última da sua própria vida?

    Estranhamente, no silêncio e no fluxo dos pensamentos, o poço abriu-se insólito e translúcido na sua profundeza negra, com as pequeninas formas flutuantes, e uma subia, subia, tomando cor e feições de uma medusa terrífica. Mas a porta rangeu, e uma vaga claridade fez emergirem os objectos, como formas planas, sem sombras na luz fraca. Os passinhos soaram leves.

    — A vizinha diz que, no intervalo antes de tu chegares, quando eu já tinha saído, veio cá também aquele doutor que te pediu as poesias para aquele senhor que não tem nome cristão, o Senhor D. Leonis. Hoje veio cá todo o mundo, até parece o Dia de Juízo. E ele que vai de viagem ficou com muita pena de não te ver, e disse-lhe que te deixava muitas lembranças e que queria muito que tu melhorasses de saúde, e ela respondeu que tu estavas mesmo muito acabado, e ele disse que tu não acabavas nunca, porque tu eras um grande poeta, um dos maiores que já tinha havido no mundo, assim uma coisa como nem sei quem ele disse. E ela riu-se muito, e disse-lhe que o Senhor Padre Manuel também dizia o mesmo, e que era tudo bondade deles, porque isso de poesias nunca davam nada a ninguém. Só que a ti deram a tença, mas foi por causa do livro impresso e pelos muitos serviços a el-rei que o teu pai prestou em sua pobre vida, e tu também. E ele respondeu que era sempre assim que as coisas aconteciam, que a glória só vinha muito tarde, e que os prémios, quando eram dados, nunca vinham pelo que a gente merecia mais. Eu acho que isto é descrer da infinita bondade de Deus Nosso Senhor, e não é muito respeitoso para com Sua Alteza que te deu a tença. O que é preciso é que tu vás ao Paço reclamar que não te pagam a tempo e horas, que estou cansada de me arrastar até lá, e sempre me perguntam porque tu não vais, e o outro dia o tesoureiro até me disse que era tudo história, que não ias porque tinhas morrido, e eu, se queria receber, tinha de pedir a el-rei a tença em meu nome. E tu não vais porque tens esse pecado de orgulho, e não queres que te vejam de muletas, a pedir que te paguem o que te devem. Eu é que estou cansada, e vou-me deitar que não posso mais comigo. Tem cuidado com a candeia, não gastes muito azeite, que está pela hora da morte, e bem sabes que tenho medo dos fogos e podes adormecer aí na mesa, não era a primeira vez, e a candeia pegar fogo à tua papelada, e à casa, Deus nos acuda e Santa Bárbara nos proteja. Se voltar cá o criado do Senhor Rui Dias, o que é que lhe digo? Nem me respondes, estás a cair de sono em cima da mesa. Tem cuidado com a candeia… Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora não tinha espírito nem contentamento para nada… Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via sacra da vida, 73 quintilhas como…

    Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inú¬teis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma tre¬mura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o fundo das coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a escrever… Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei… Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…

    E ficou escrevendo pela noite adiante.

    Araraquara, 27 de Março de 1964.

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