OPINIÃO
António Bento
As mortandades trazidas pela peste do
turismo selvagem na Baixa turística de Lisboa são tantas e tão cruéis que o meu
lado de arqueólogo da cidade quase me põe na situação de ter de escrever uma
narrativa chamada O Último Alfarrabista de Lisboa. Que Deus me livre.
3 de Maio de
2018, 17:34
“Onde quer que se queimem livros,
mais cedo ou mais tarde hão-de queimar-se também seres humanos”
Heinrich Heine
Pedindo a benevolência do leitor para as palavras que se seguem, partilho
com o público uma preocupação relativa à cidade de Lisboa que me aflige muito.
Preocupação com o património físico e cultural da cidade de Lisboa, mas
preocupação cívica em primeiro lugar. Refiro-me ao desaparecimento dos
alfarrabistas e livreiros da Baixa turística de Lisboa, a qual se encontra sob
uma pressão imobiliária global cega.
Ignoro se o leitor tem passeado na Lisboa turística nos últimos 12 meses.
Eu faço-o alternadamente a cada semana, a cada 15 dias, a cada três semanas ou
a cada mês. A cidade está numa profunda modificação. O processo de
turistificação nas chamadas zonas históricas acentua-se a um ponto-limite e os
seus efeitos, para o bem e para o mal, são tremendos.
Por exemplo, num dia que não deve estar tão distante assim, acabado de
chegar de um passeio nas varandas do miradouro do Jardim de São Pedro de
Alcântara, vou deixar de poder escolher e de beber calmamente o meu cálice de
Porto Tawny de 40 anos no Solar do Vinho do Porto enquanto folheio um livro
comprado num alfarrábio da zona. Aparentemente porque o imóvel em questão já
foi vendido a franceses que ali pretendem construir um hotel, num edifício
cujos ricos tectos de madeira são de um conhecido arquitecto alemão, antigo
dono da casa, contratado pelo marquês de Pombal para a reconstrução de Lisboa
após o Terramoto de 1755.
Como sou um frequentador e um conhecedor do meandro dos
livreiros-alfarrabistas de Lisboa, e como na condição de cliente conheço
nalguns casos os proprietários, posso dizer, com conhecimento de causa, que o
que actualmente se passa na Baixa turística de Lisboa neste ramo de actividade
é deveras alarmante. “Oh, Lisboa, meu lar!”.
Alguns lisboetas sabem vagamente do elo mítico de Lisboa a Ulisses, mas não
sabem que a palavra “património” tem a sua origem no grego e que se refere ao
pai e ao verbo moneo, que significa “fazer recordar para fazer
saber”. Não sabem que património” significa “o que recorda o pai”, e
“matrimónio” “o que recorda a mãe”. Não estão matrimoniados com a alma de
Lisboa.
Percorrendo a cidade de oriente para ocidente, e só para falar do espaço
que vai da colina de São Jorge à colina de São Francisco, e desta até aos
baixios de Santa Catarina, a pressão do encerramento e o garrote da condenação
das livrarias-alfarrabistas da Baixa de Lisboa é deveras assassino, tal o seu
furor destrutivo! As autoridades continuam a ignorar a razão por que a palavra
“alfarrábio” significa na nossa língua portuguesa (e em mais nenhuma outra da Europa)
“livro”. Na Lisboa Medieval, foi pelo culto judaico da leitura e pelo culto
muçulmano da caligrafia que os cristãos autóctones “apreenderam” a ler e a
estudar. Al-Farabi é nome de filósofo. Com a actual demonização do Islão,
esquecemos demasiado facilmente que foi pelos judeus e pelos muçulmanos que
nós, os cristãos “europeus”, nos familiarizámos com os gregos e de alguma
maneira nos tornámos gregos. Aqui se fecha o círculo entre Ulisses, Lisboa e os
alfarrabistas.
Quem hoje se lembra há quanto tempo fechou já, na Rua do Carmo, a Livraria
Portugal, talvez a única livraria de História decente na cidade? Foi só há
alguns anos, mas parece que já passou uma eternidade. Esta perda de uma
livraria central digna não poderia augurar nada de bom num futuro próximo. Onde
antes se poderia encontrar uma edição rara da História Trágico-Marítima,
uma certa edição comentada de uma determinada Crónica de
Fernão Lopes, ou uma edição rara da Lírica de Camões, ou ainda
um improvável Brasonário português de cultura hebraica, para
me ficar por aqui, está agora uma reles Loja Aleh Op, com uma
estúpida de uma vaca preta e branca em tamanho natural à porta à espera do
cliente de bugigangas universais. Pode alguém imaginar o olhar de um bibliófilo
que ali vai em busca de uma hipotética edição do Itinerário da Terra
Santa e Suas Particularidades, de Frey Pantaleão de Aveiro, que subitamente
se depara com uma vaca de plástico?
Quase no seu começo, para quem sobe a Rua do Carmo pela esquerda, a Aillaud
& Lellos, que nos últimos dez anos já só era um repositório de livros não
vendidos por um conjunto de editoras falidas associadas que entretanto alugaram
o espaço, fechou há menos de seis meses. Na última vez em que para lá me dirigi
e me dei conta de que a livraria tinha sido encerrada pude ao menos sorrir
diante de um grafito escrito por entre as belas colunas de Art Déco da porta da
livraria onde se podia ler: “Turismo=Terrorismo”. Passado pouco tempo a frase
foi apagada e o lamento e o queixume “vaporizados”.
Prossigo com este breve relato da destruição de livrarias-alfarrabistas em
Lisboa. Só na bela, serpenteante e luminosa Calçada do Duque fecharam num ai
três casas de livros velhos ou três livrarias que negociavam com livros fora do
mercado. Por sua vez, a Livraria Barateira, quase em frente ao Teatro Trindade,
tendo sido fundada em 1914, desapareceu também há coisa de quatro ou cinco
anos. Podiam encontrar-se por lá livros de todas as áreas do saber em cinco ou
seis línguas. Esta livraria popular, com funcionários atentos e devotos, era
especializada em livros, por assim dizer, correntes, mas ainda assim
essenciais, digamos que por livros e revistas cuja idade poderia ir até aos cem
anos, que são quatro gerações de livreiros e outras tantas vidas. Hoje está lá
um restaurante, creio que do jovem chefe Avillez, e uma barbearia moderna tal
qual as que se podem ver em Londres e no Novo Mundo…
Ao lado da Livraria Barateira, na porta de entrada da Academia de Amadores
de Música, a livreira, uma jovem com quem quase cheguei a namorar quando era
estudante universitário, e hoje naturalmente uma vetusta senhora da minha
idade, fechou a venda já lá vão pelo menos três anos. O pai morreu-lhe e a
filha não foi capaz de continuar o negócio. Na Rua do Alecrim, se descontarmos
as livrarias dos primos António Trindade e Bernardo Trindade, com o funeral
marcado para o próximo mês de Setembro, sobrevive a Livraria Bizantina, mas
creio que a família Bobone, que a explora, não fará senão andar de leilão em
leilão pelas casas de uma classe média alta burguesa, hoje praticamente
analfabeta, cujos descendentes já quase despareceram, pelo que não lhe
profetizo muitos mais anos de negócio.
Na Rua do Alecrim, um pouco abaixo da Livraria Bizantina, o velho Sr.
Holtreman quase morreu de pé a trabalhar, cego de todo. Nos últimos anos, o pó
e a poeira dentro da livraria eram tais que só um bibliófilo um pouco louco é
que poderia pensar em demorar-se por lá muito tempo à espera de desencantar uma
separata rara num maço velho de papéis secos. Lembro-me muito dele de cada vez
que conto uma nova destruição de livros. A Livraria Luís Burnay, na Calçada do
Combro, conheceu os seus últimos dias já em 2012. O proprietário, conhecedor do
negócio, recordar-se-á certamente daquele cliente que em tempos lhe comprou a
um preço muito razoável os sete tomos dos Discursos e Notas Políticas,
de Oliveira Salazar, já então a preços proibitivos, ou mesmo o Tratado
da Verdade da Lei de Moisés do rabino Saul Levi Morteira, o chefe do
tribunal que excomungou Espinosa. Actualmente está retirado, embora se mantenha
residualmente na Internet.
Poderia continuar com outros exemplos, mas fico-me por aqui para não maçar
mais o leitor com o relambório e a elegia fúnebre.
Uma coisa me parece. As mortandades trazidas pela peste do turismo selvagem
na Baixa turística de Lisboa são tantas e tão cruéis que o meu lado de
arqueólogo da cidade quase me põe na situação de ter de escrever uma narrativa
chamada O Último Alfarrabista de Lisboa. Que Deus me livre.
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