sábado, 6 de dezembro de 2025

Jaime Nogueira Pinto - Outra História

Jaime Nogueira Pinto

Colunista do Observador

A História oficial, sobretudo quando não prima pela verdade, tende a ser efémera. E pode sempre rever-se e refazer-se.

06 dez. 2025,  

Não há quem não saiba que a História é feita pelos vencedores. Aqui e em todo o lado. Mas sabe-se também que a História oficial, sobretudo quando não prima pela verdade, tende a ser efémera. E pode sempre rever-se e refazer-se.

Sobre o 25 de Novembro, cuja celebração parece causar grande consternação à esquerda e na Esquerda e motivar jogos florais, já escrevi o que tinha a escrever – mais recentemente, num livro organizado por Jerónimo Fernandes, que reúne um tenebroso conjunto de 32 autores de “extrema-direita”, digamos que uma Hidra de 32 cabeças onde, entre “passistas” e outros perigosos fascistas e extremistas, até cabeças (!) do Chega serpenteiam.

Apesar de terem sido os Comandos de Jaime Neves – entre os quais os Convocados, ou seja, os que tinham servido no Ultramar e voltaram às fileiras para parar a Esquerda radical – a fazer o 25 de Novembro, o que resultou do dia foram 50 anos de Centrão, isto é, de poder repartido entre o PS (mais à esquerda e por mais tempo) e o PSD (menos à esquerda e por menos tempo). Ficaram também como eternos cronistas da República historiadores e intelectuais de esquerda, nas suas várias sensibilidades e modalidades, assistindo-se ainda à súbita conversão à democracia eleitoral e à respeitabilidade democrática do Partido Comunista Português.

Sem o 25 de Novembro, sem os Comandos, sem os Convocados e a Força Aérea que, no terreno, evitaram a vitória da Esquerda radical, não teríamos em Portugal democracia liberal. Teríamos um regime comunista com alguns esquerdistas festivos no poder, bons rapazes, simpatizantes de Trotsky e dos maoistas, como os que torturaram presos políticos no RALIS e na Polícia Militar e se dedicaram a fuzilamentos simulados em vários aquartelamentos. Tudo boa gente. De qualquer forma, com Ialta em vigor, com o “povo do Norte” em alvoroço e uma coligação negativa, da extrema-direita o Grupo dos Nove e ao PS, a festa nunca iria durar muito. Mas os estragos e o prejuízo seriam consideráveis.

Não digo que o Centrão e militares como Vasco Lourenço ou outros do Grupo dos Nove alinhassem nas veleidades, barbaridades e festividades da esquerda radical, mas se não fossem, no terreno, os Comandos de Neves, os oficiais da Força Aérea e os paraquedistas do brigadeiro Almendra chegados de Angola, não sei bem quem tiraria do poder os revolucionários. Costa Gomes e os “moderados”? Duvido.

O Dr. Soares, quando percebeu que o PREC e a Extrema-Esquerda não queriam fazer a festa só contra os “fascistas” e os “reaccionários”, também teve um papel na resistência. A política é assim: o Inimigo nem sempre faz o Amigo, mas faz muitas vezes o aliado útil e objectivo.

fEsquerdas e direitas radicais

Estou à vontade quanto ao Estado Novo, onde não tive cargos ou responsabilidades. Nem eu, nem os meus companheiros do Jovem Portugal e depois da Política, nem tão pouco os nossos amigos do Grupo de Coimbra fomos alguma vez salazaristas. O nosso empenho era a defesa do então Ultramar, talvez porque gostávamos de ser cidadãos de uma nação grande, independente, plurirracial, com uma identidade forte. Uma nação que, na Europa e em África, crescia economicamente, apesar da guerra. Havia polícia política e censura prévia, mas nós não gostávamos nem precisávamos delas. Porém, havia uma guerra, em África, e não tinham as democracias na 2ª Guerra Mundial censura? Não tinham também neutralizado os suspeitos de colaboração com o inimigo, e sem sequer lhes perguntarem de que lado estavam (fizeram-no os americanos com os nipo-americanos e os ingleses com os militantes da British Union of Fascists de Oswald Mosley)?

Depois, que autoridade moral têm os militantes da esquerda radical, que admiravam Mao Tsé-Tung ou até Pol Pot e os desviacionistas trotskistas, para criticar, os que, aos vinte anos, queríamos transformar o império português numa grande nação euro-africana, com igualdade, e integração racial, desenvolvida economicamente? Talvez tivéssemos então, nas referências históricas, os nossos excessos, mas não éramos nós que fazíamos das faculdades um Estado autoritário, censório e policiado, onde era obrigatório ser “alinhado”.

E convém também lembrar que o Estado Novo não foi só a PIDE, a Censura e a mortalidade infantil. Foi também um tempo em que, pela primeira vez em Portugal houve mais gente a saber ler e escrever que os que não sabiam; um tempo em que se executou o maior rol de obras públicas depois do fontismo e se fez a segunda revolução industrial. Foi ainda nos últimos anos do regime que Portugal se aproximou em números de capitação e renda dos países economicamente mais desenvolvidos da Europa. Pela primeira e última vez.

Ao longo de quase 50 anos de poder, entre a Ditadura Militar (1926-1933) e o Estado Novo (1933- 1974), houve abusos, saneamentos, prisões, gente a morrer nas cadeias? Houve casos de corrupção e de favoritismo? Com certeza que houve. Mas tinham acontecido piores abusos contra os católicos, os monárquicos e os sindicalistas na Primeira República, e repetiram-se contra a direita patriota e ultramarinista depois de Abril, no 28 de Setembro e no 11 de Março. Depois do 25 de Abril, quando andaram a investigar a corrupção na “longa noite fascista”, ainda conseguiram descortinar uns gastos fora da caixa de um ex-presidente da RTP, mas foi um Nuremberg bastante modesto, convenhamos.

Há muitos anos, quando discutia com o Dr. Cunhal estes desmandos numa entrevista na Rádio Renascença, e lhe disse que eles, comunistas, tinham feito como o Estado Novo e a PIDE quando puderam, perguntou-me se eu queria comparar umas centenas de fascistas e reaccionários uns meses na cadeia com os muitos anos dos comunistas nas prisões do fascismo. Respondi-lhe, com todo o respeito que me merecia um velho e coerente lutador como ele, que a única razão pela qual só tinham sido meses fora o 25 de Novembro. Senão, teriam sido muitos anos e muitos mortos, torturados ou liquidados, a avaliar pelo modus operandi dos comunistas quanto a reais ou supostos inimigos em todos os países onde o comunismo se tinha instalado. Com uma agravante: enquanto os regimes autoritários e até as ditaduras da direita permitiam igrejas, comunidades religiosas e propriedade privada, o comunismo perseguia e proibia as religiões e a propriedade privada, acabando com a sociedade civil.

O 25 de Novembro e a Liberdade

E se não fosse o 25 de Novembro, também não haveria liberdade em Portugal. Não era o slogan dos “abrilinos” mais ortodoxos “não há liberdade para os inimigos da liberdade” (sabendo nós – e eles – perfeitamente quem definiria os “inimigos da liberdade”)?

Na história do 25 de Novembro há um ponto importante e interessante que discuti há dias com a Irene Flunser Pimentel na Radio Comercial: a envolvente internacional. É uma envolvente que explica a neutralidade do PCP, que não pôs o seu peso militar e civil na balança no 25 de Novembro. A URSS não queria quebrar as regras de Ialta de partilha da Europa com os Estados Unidos (confirmados no Verão de 1975 em Helsínquia) e o Dr. Cunhal e a cúpula do PCP eram disciplinados.

Também estou convencido que se houvesse uma guerra civil, embora pudesse hipoteticamente constituir-se uma Comuna de Lisboa (talvez sem o fuzilamento de bispos e padres da Comuna de Paris), os comunistas e a esquerda radical acabavam vencidos. E em risco de serem outra vez proibidos.

Rectificações históricas

A acabar, duas explicações e rectificações: a história da bandeira a meia-haste, na morte de Hitler, ouvi-a contar e explicar por Franco Nogueira, um “patriota da Rotunda” convertido ao Estado Novo pelo lado do patriotismo ultramarino. Em 3 de Maio de 1945, no terceiro dia depois do suicídio de Hitler em Berlim, a bandeira nacional apareceu a meia-haste nos edifícios públicos: Portugal era neutral no conflito, por isso, e uma vez que morrera um chefe de Estado, o Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Luís Teixeira de Sampaio, dera instruções nesse sentido, de acordo com o Protocolo. Depois, perante algum barulho dos Aliados e das oposições, Teixeira de Sampaio quis demitir-se, arcando com as responsabilidades de um erro político, na consequência da observação cega do Protocolo. A meia-haste não tinha, assim, nada de ideológico – Salazar fora crítico do nazismo, bem antes da sua derrota. Teixeira de Sampaio estava contrito perante os clamores que causara e disposto a ser o bode expiatório. Mas Salazar, ministro dos Estrangeiros desde 1936, conteve-lhe o gesto, e mandou-lhe um dos seus habituais bilhetinhos – “De hora a hora, Deus melhora”…

Quanto à morte do general Humberto Delgado, assassinado em Espanha pelo agente da PIDE Casimiro Monteiro, no que apareceu como uma dupla armadilha – o general Delgado pensava que se ia encontrar com oposicionistas, os agentes da PIDE pensavam que Delgado se vinha entregar ou estavam ali para o deter – há várias teses. Mas não creio que Salazar tivesse alguma coisa que ver com o crime. Alberto Franco Nogueira, ministro dos Estrangeiros ao tempo, contava-me, anos depois, que nunca tinha visto ninguém tão aflito como o director da PIDE, major Silva Pais, quando lhe pediu conselho sobre como havia de comunicar a Salazar o assassinato. Salazar não mandava assassinar opositores.

De resto, o general Delgado, como demonstram os livros publicados sobre os emigrados em Argel, era um factor de divisão entre os oposicionistas residentes – republicanos do Reviralho, soaristas e comunistas; era, acima de tudo, um elemento de divisão das várias famílias da oposição. Só depois de morto se tornou um símbolo unitário.

A propósito, na nota biográfica de Humberto Delgado, no suplemento ao Dicionário de História de Portugal, coordenado por António Barreto e Maria Filomena Mónica, escreve David Lander Raby, sobre os últimos tempos de Humberto Delgado:

“De volta do Brasil, acabou por aceitar a colaboração que permitiu a formação em Dezembro de 1962 da Frente Patriótica de Libertação Portuguesa, e finalmente chegou a Argel (onde a Frente tinha o apoio do Presidente Ben Bella) em Junho de 1964. Mas em menos de dois meses estava praticamente de relações cortadas com a maioria dos membros da Junta e acabou por separar-se completamente da FPLN em Outubro, criando a sua própria “Frente Portuguesa de Libertação Nacional”, que nunca chegou a ter uma existência real. O rompimento com a FPLN foi o princípio do fim para HD; não era possível reconciliar a sua vontade de acção armada a curto prazo e a perspectiva cautelosa da maioria da oposição. Cada vez mais abandonado, HD caiu na armadilha montada pela PIDE, entrando em Espanha com a sua secretária brasileira, Arajaryr de Campos, acreditando que ia encontrar-se na fronteira com oficiais do exército português dispostos a levantarem-se contra o regime.”

A partir daqui, surgem narrativas fantasiosas ou, pelo menos, pouco verosímeis, que avançam com uma cumplicidade ou mesmo com um complot entre o “bando de Argel” e a PIDE para liquidar o “general sem medo”.

Do julgamento do caso em Portugal, e mesmo das narrativas hostis, infere-se sempre o desconhecimento de Salazar da “operação Outono”. A versão que sempre ouvi de quem sabia alguma coisa por ter conversado com elementos envolvidos no crime, foi que Delgado, convencido que se ia encontrar com militares oposicionistas, quis reagir, quando se deu conta que caíra na armadilha da PIDE. Ia armado e puxou da pistola ou do revólver, mas Casimiro Monteiro foi mais rápido e matou-o. Também no filme realizado por Bruno de Almeida e Frederico Delgado Rosa, Operação Outono, há uma implícita absolvição de Salazar quando, numa discussão de responsáveis da PIDE, surge a pergunta: “E como vamos dizer ao Doutor Salazar?” – “Dizemos-lhe que foram os comunistas!”

Não foram, embora talvez não tivessem ficado particularmente consternados. Mas isso é outra história.

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