quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

VN - Antologia de Poesia de Natal



Natal 1981 [2005/2006]
– Tempo de ilusões

BOM NATAL! BOM
ANO NOVO!

(Discurso
que sempre se repete, mas que nunca se cumpre)


Natal




Menino dormindo...
/ Silêncio profundo. / Benvindo, benvindo, / Salvador do Mundo! Noite.

Noite fria.
/ Mas que lindo que é! / De um lado Maria. / Do outro José. /

Um anjo
descerra / A ponta do véu... / E cai sobre a Terra / A imagem do Céu!
1[1]



Este poema foi escrito naquele tempo em que todos nós – crianças
e adultos – sentíamos ainda o Espírito de Natal.


Nos dias de
hoje, Natal não passa de uma mera “palavra”, com
significado igual ao daqueles dias de "qualquer coisa"
que se comemoram nos 365 dias do ano.

Em Dezembro,
as luzes coloridas dão novas cores e novos ritmos às árvores, às
varandas, aos portais e às janelas das casas. No ar paira um espírito
de festa, de pseudo-alegria e de mistério. As músicas natalícias
ouvem-se em cada canto e esquina, adormecendo a razão de quem as escuta.

Toda a gente
– rica e pobre - se acotovela diante dos escaparates e das montras
deslumbrantes... Multidões irrompem pelas lojas, subjugadas aos deuses
do consumismo, inebriadas pelas coisas inúteis que compram sem pensar
e muito menos sem precisar...


Neste
mês finge-se que tudo é diferente:

— Diz-se
Bom dia”, com um sorriso no rosto, ao vizinho... – que
é ignorado todo o resto do ano!

— Olha-se
para os idosos com mais respeito e com um sorriso nos lábios, dá-se-lhes
um pouco mais de carinho, de atenção, de amizade... – para, durante
o resto do ano, continuar-se a ignorar a sua existência!

— Para os
pobrezinhos, os “sem abrigo”, os marginalizados, os indigentes,
os doentes... lá estão os nossos “primeiros”, “segundos
e “terceiros” a dar-lhes a anual “sopa de pedra”,
entre um sorriso e um piscar de olhos ternurento (mas só para as câmaras
dos média os focarem num grande primeiro plano!)... e, durante
o resto do ano, continuam a ignorar que estes (pobrezinhos,
“sem abrigo”, marginalizados, indigentes, doentes
) existem

e que continuam a precisar de comer, vestir, dormir e, sobretudo, de
um trabalho que lhes permitam sobreviver com dignidade!

Por isso
dei por mim a pensar:


  • Na “Balada
    de Neve”
    de Augusto Gil, naqueles pezinhos de criança,
    no frio e na dor que sente ao caminhar...

  • No poema de Ary
    dos Santos que, ontem como hoje, ilustra bem o “faz de conta
    desta época que estamos a viver: “Tu que dormes a noite na calçada
    ao relento / Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento / Tu que
    tens o Natal da solidão, do sofrimento / És meu irmão amigo / És
    meu irmão / (...)
    2[2].


Mas o tempo
avança inexoravelmente e as pessoas continuam a caminhar, atarefadas,
sem ter tempo, sequer, de olhar para o lado...

A época natalícia
sucede-se ano após ano, com os mesmos gestos, os mesmos fracassos e
as mesmas promessas. Fala-se de Fraternidade Universal, fala-se
do Criador, fala-se de Jesus que nasceu numa manjedoura...

Porque não
falar num Jesus mais adaptado a este mundo real?

Natal


Nasceu!
/ Numa garagem abandonada, coberta de chapa de zinco, / e num caixote
velho de latas de óleo, / Entre desperdícios sujos e usados, / Nossa
Senhora e S. José tinham vindo pela estrada, / Os pés no asfalto negro,
onde circulam carros de luxo: / Pedir boleia, pediram, mas ninguém
viu ou quis ver, / Ou escutar o gesto...

Iam apressados
para a ceia da noite, / Desbragada como um conta-quilómetros / E cheia
de neblina e promessas.


Nasceu!

Num caixote
velho de latas de óleo, / Entre desperdícios sujos e usados.(...)
3[3]

Finalmente
é chegado o dia de Natal!...

"Hoje
é dia de ser bom. / É dia de passar a mão pelo rosto das crianças
/ De falar e de ouvir com mavioso tom, / de abraçar toda a gente e
de oferecer lembranças
".

"É
dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem, / de lhes
darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, / De
perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, / de meditar
sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria
"


(...) 4[4].

Milhares de
mensagens vão atravessar o ciberespaço nas vésperas e no dia de Natal,
compondo coisas lindas nos mais de 9 milhões de telemóveis que inundam
este país de contradições e do faz de conta!... para gáudio das
operadoras que, assim, vêem os seus lucros subirem em flecha!

Este mesmo
ritual vai-se repetir na noite de 31 de Dezembro!... Desta vez regado
com espumante e ao som das 12 badaladas da meia noite, como manda a
tradição! Frases, pensamentos, mensagens (melhor ou pior elaboradas)
vão ser trocadas num desejo mútuo de tudo de Bom, muita Saúde,
Paz, Fraternidade e Amor
...

Mas a velha
dúvida persegue-me!... e interrogo-me, o que como será possível desejar
em 2005 [2006]...


Tudo de
Bom...
— se irão subirão as rendas de casa, a electricidade,
as portagens, os táxis, a água, os transportes públicos, o pão?!!!...

Tudo de
Bom...
— se vão continuar as falências, os despedimentos, o
desemprego?!!!...

Muita Saúde...
com o sistema de saúde que temos?!!! Com a maioria do nosso
povo auferindo um salário mínimo inferior a 400,00 euros?!!
Serão suficientes para pagar os medicamentos, os honorários dos médicos,
os tratamentos, os internamentos?!!!...

Paz...
com tanta instabilidade e tantas guerras à nossa volta e sem
qualquer vontade política de lhes dar fim?!!!...

Fraternidade...
se impera a lei da selva na nossa sociedade, do vale tudo, da
competitividade desenfreada e sem regras...


Amor
para 2005 [2006]... — se nem sequer há tempo para se DAR
e muito menos para se poder COMPARTILHAR?!!!...

José Gomes





Posted by saturnogomes
at dezembro 22, 2004 09:09 PM



(antologia
de Victor Nogueira)

[da memória
ou pesquisando na WEB]


– António Gedeão
– Dia de Natal


- David Mourão-Ferreira
– Litânea para este Natal


- David Mourão-Ferreira
– Natal e não Dezembro


- David Mourão Ferreira
– Ladainha dos Póstumos Natais


- Sidónio Muralha
– Natal


- Fernando Pessoa
– Chove. É dia de Natal


- Fernando Pessoa
– Natal


- Jorge de Sena
– Natal de 1971


- Popular
– Foi na noite de Natal



- Popular
– Natal de Elvas


- Popular (Madeira)
– O Natal


- Popular (Madeira)
– O Menino Deus


- Popular (Açores)
– Terno de Reis


- Popular (Donões, Montalegre)
– Cantar dos Reis


- José Afonso
– Natal dos Simples


- Álvaro Feijó
– Natal


- Miguel Torga
– Natal [Velho Menino Deus que me vens ver]


- Miguel
Torga – Natal [Soa a palavra nos sinos]



- Miguel Torga
– Poema de Natal


- Manuel Bandeira
– Versos de Natal


- Manuel Bandeira
– Canto de Natal



– SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
- CARTA DE NATAL A MURILO MENDES

- Vinicius de Morais - Natal

- Vinicius de Morais
– Poema de Natal


-
Cabral do Nascimento – Natal Africano



-
Jerónimo Baía – Ao Menino Jesus, metáfora de doce


- Fátima Maldonado
– A adoração dos Magos


- Vitorino Nemésio
– Loa


- Machado de Assis
– Soneto de Natal


- Carlos Drummond de Andrade
– Papai Noel às avessas


- Miguel Torga
– História Antiga


- Natália Correia
– Falavam-me de Amor


- Vinicius de Morais
– O Filho do Homem


- David Mourão Ferreira
– Natal à Beira-Rio



- Estela Braga e Couto e
Aníbal Raposo - Oração de Natal


- João Miguel Fernandes
Jorge – [
A abstracção
não precisa de mãe nem pai]


- Geraldo Bessa Victor
– O Menino Negro não entrou na roda


- Jorge Villa -
Trilogia do Menino Negro


- Ary dos Santos
– Quando um Homem quiser


-
Amândio César – Natal (excerto)


- Alberto Caeiro
– VIII – Num Meio-Dia de Fim de Primavera


- Augusto Gil
– Balada da Neve



- Fernando Pessoa
– O Menino de sua Mãe


-
Fernando Pessoa – Esta velha angústia


Victor Nogueira
– Cenas do jardim


- Victor Nogueira -
CONTO DE NATAL


OU DE COMO NO MELHOR PANO
CAI A NÓDOA




Dia de Natal

– António Gedeão


Hoje é dia de ser bom.

É dia de passar a mão pelo
rosto das crianças,


de falar e de ouvir com mavioso
tom,


de abraçar toda a gente e
de oferecer lembranças.




É dia de pensar nos outros—
coitadinhos— nos que padecem,


de lhes darmos coragem para
poderem continuar a aceitar a sua miséria,


de perdoar aos nossos inimigos,
mesmo aos que não merecem,



de meditar sobre a nossa existência,
tão efémera e tão séria.




Comove tanta fraternidade universal.

É só abrir o rádio e logo
um coro de anjos,


como se de anjos fosse,

numa toada doce,

de violas e banjos,

Entoa gravemente um hino ao
Criador.


E mal se extinguem os clamores
plangentes,



a voz do locutor

anuncia o melhor dos detergentes.



De novo a melopeia inunda a
Terra e o Céu


e as vozes crescem num fervor
patético.


(Vossa Excelência verificou
a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?


Não seja estúpido! Compre
imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)




Torna-se difícil caminhar
nas preciosas ruas.



Toda a gente se acotovela,
se multiplica em gestos, esfuziante.


Todos participam nas alegrias
dos outros como se fossem suas


e fazem adeuses enluvados aos
bons amigos que passam mais distante.




Nas lojas, na luxúria das
montras e dos escaparates,


com subtis requintes de bom
gosto e de engenhosa dinâmica,


cintilam, sob o intenso fluxo
de milhares de quilovates,


as belas coisas inúteis de
plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.





Os olhos acorrem, num alvoroço
liquefeito,


ao chamamento voluptuoso dos
brilhos e das cores.


É como se tudo aquilo nos
dissesse directamente respeito,


como se o Céu olhasse para
nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.




A Oratória de Bach embruxa
a atmosfera do arruamento.


Adivinha-se uma roupagem diáfana
a desembrulhar-se no ar.


E a gente, mesmo sem querer,
entra no estabelecimento


e compra— louvado seja o
Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.





Mas a maior felicidade é a
da gente pequena.


Naquela véspera santa

a sua comoção é tanta, tanta,
tanta,


que nem dorme serena.



Cada menino

abre um olhinho

na noite incerta


para ver se a aurora

já está desperta.

De manhãzinha,

salta da cama,

corre à cozinha

mesmo em pijama.



Ah!!!!!!!!!!




Na branda macieza

da matutina luz

aguarda-o a surpresa

do Menino Jesus.



Jesus

o doce Jesus,

o mesmo que nasceu na manjedoura,

veio pôr no sapatinho


do Pedrinho

uma metralhadora.



Que alegria

reinou naquela casa em todo
o santo dia!


O Pedrinho, estrategicamente
escondido atrás das portas,


fuzilava tudo com devastadoras
rajadas


e obrigava as criadas

a caírem no chão como se
fossem mortas:



Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.



Já está!

E fazia-as erguer para de novo
matá-las.


E até mesmo a mamã e o sisudo
papá


fingiam

que caíam

crivados de balas.




Dia de Confraternização Universal,

Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,

de Sonhos e Venturas.

É dia de Natal.

Paz na Terra aos Homens de
Boa Vontade.


Glória a Deus nas Alturas.



      Litania
      para este Natal
      (1967)


      David Mourão Ferreira

      Vai nascer esta noite
      à meia-noite em ponto

      Num sótão num porão
      numa cave inundada

      Vai nascer esta noite
      à meia-noite em ponto

      Dentro de um foguetão
      reduzido a sucata


      Vai nascer esta noite
      à meia-noite em ponto

      Numa casa de Hanói
      ontem bombardeada

      Vai nascer esta noite
      à meia-noite em ponto

      Num presépio de lama
      e de sangue e de cisco

      Vai nascer esta noite
      à meia-noite em ponto

      Para ter amanhã a
      suspeita que existe

      Vai nascer esta noite
      à meia-noite em ponto

      Tem no ano dois mil
      a idade de Cristo

      Vai nascer esta noite
      à meia-noite em ponto


      Vê-lo-emos depois
      de chicote no templo

      Vai nascer esta noite
      à meia-noite em ponto

      E anda já um terror
      no látego do vento

      Vai nascer esta noite
      à meia-noite em ponto

      Para nos vir pedir
      contas do nosso tempo


      David Mourão-Ferreira, Lira de Bolso



Natal, e
não Dezembro


– David Mourão Ferreira

Entremos, apressados, friorentos,

Numa gruta, no bojo de um navio,

Num presépio, num prédio,
num presídio,


No prédio que amanhã for
demolido...


Entremos, inseguros, mas entremos.

Entremos, e depressa, em qualquer
sítio,



Porque esta noite chama-se
Dezembro,


Porque sofremos, porque temos
frio.


Entremos, dois a dois: somos
duzentos,


Duzentos mil, doze milhões
de nada.


Procuremos o rastro de uma
casa,


A cave, a gruta, o sulco de
uma nave...


Entremos, despojados, mas entremos.

De mãos dadas talvez o fogo
nasça,


Talvez seja Natal e não Dezembro,


Talvez universal a consoada.


David Mourão-Ferreira, Cancioneiro do Natal



Ladainha dos póstumos Natais

– David Mourão Ferreira

Há-de vir um Natal e será
o primeiro


em que se veja à mesa o meu lugar vazio


Há-de vir um Natal e será
o primeiro

em que hão-de me lembrar de modo menos nítido


Há-de vir um Natal e será
o primeiro

em que só uma voz me evoque a sós consigo


Há-de vir um Natal e será
o primeiro

em que não viva já ninguém meu conhecido


Há-de vir um Natal e será
o primeiro

em que nem vivo esteja um verso deste livro



Há-de vir um Natal e será
o primeiro

em que terei de novo o Nada a sós comigo


Há-de vir um Natal e será
o primeiro

em que nem o Natal terá qualquer sentido


Há-de vir um Natal e será
o primeiro

em que o Nada retome a cor do Infinito


David Mourão-Ferreira,
in “Cancioneiro de Natal“


Natal


– Sidónio Muralha

Hoje é dia de Natal.

O jornal fala dos pobres

Em letras grandes e pretas,

Traz versos e historietas

E desenhos bonitinhos,

E traz retratos também

Dois bodos, bodos e bodos,


Em casa de gente bem.

Hoje é dia de Natal.

Mas quando será de todos?


Sidónio Muralha, Poesias


Chove. É
dia de Natal


– Fernando Pessoa

Chove. É dia de Natal.


Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal,

E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,


Quando o corpo me arrefece

Tenho frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra
quadra


Fico gelado dos pés.


Fernando Pessoa, Obra Poética




Natal

– Fernando Pessoa

Natal... Na província neva.

Nos lares aconchegados,

Um sentimento conserva

Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,


Como a família é verdade!

Meu pensamento é profundo,

Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça

A paisagem que não sei,

Vista de trás da vidraça

Do lar que nunca terei!


Fernando Pessoa, Obra Poética



Natal de
1971


– Jorge de Sena

Natal de quê? De quem?

Daqueles que o não têm?

Dos que não são cristãos?

Ou de quem traz às costas

As cinzas de milhões?

Natal de paz agora


Nesta terra de sangue?

Natal de liberdade

Num mundo de oprimidos?

Natal de uma justiça

Roubada sempre a todos?

Natal de ser-se igual

Em ser-se concebido,

Em de um ventre nascer-se,

Em por de amor sofrer-se,


Em de morte morrer-se,

E de ser-se esquecido?

Natal de caridade,

Quando a fome ainda mata?

Natal de qual esperança

Num mundo todo bombas?

Natal de honesta fé,

Com gente que é traição,

Vil ódio, mesquinhez,


E até Natal de amor?

Natal de quê? De quem?

Daqueles que o não têm?

Ou dos que olhando ao longe

Sonham de humana vida

Um mundo que não há?

Ou dos que se torturam

E torturados são

Na crença de que os homens


Devem estender-se a mão?


Jorge de Sena, Exorcismos


Foi na noite de Natal


Letra e música: popular

(canção de Natal)


Foi na noite de Natal


noite de santa alegria

caminhando vai José

caminhando vai Maria


Ambos vão para Belém

mais de noite que de dia

e chegaram a Belém

já toda a gente dormia


Buscou lume S.José

pois a noite estava fria


e ficou ao desamparo

sozinha a Virgem Maria


Quando S.José voltou

já viu a Virgem Maria

com o Deus Menino nos braços

que toda a gente alumia


    Natal de Elvas

    – Popular

    Eu hei-de dar ao Menino

    Uma fitinha pró chapéu

    E ele também me há-de dar

    Um lugarzinho no céu.



    Olhei para o céu

    Estava estrelado

    Vi o Deus Menino


    Em palhas deitado.

    Em palhas deitado,

    Em palhas estendido,

    Filho duma rosa,

    Dum cravo nascido!

    .

    Arre, burriquito,

    Vamos a Belém,

    A ver o Menino


    Que a senhora tem;

    Que a senhora tem,

    Que a senhora adora

    Arre burriquito,

    Vamo-nos embora.

O Natal

- Popular (Madeira)



Em dezembro, vintecinco,

Meio da noite chegado,

Um anjo ia no ar

A dizer: « Elle é já nado..»
,


Pergunta lo boi: «Aonde? .

La mula pergunta: «Quem?

Canta lo gallo: «Jesus.»

Diz la ovelha:´ «Bethlem. »


Uns pastores, acordados,

Pra outros, que já dormiam.

- « Arrenego de vós, gente,»

Em altas vozes diziam:

« Nesta hor' em que dormis,

Um anjo aqui passou,

Que de Jesus, em Bethlem,

Lo natal annunciou. »


« O' gente, seria anjo,

Ou vinha de pau e sesta?

Algum cego. de cajado?

Algum CO\O, de muleta

iNem cajado, nem muleta,

Tão pouco de pau, nem sesta;

Vinha nos ares voando,

Por sol a nossa cabeça.»


Vamos, vamos, pastorinhos,

Vamos todos a Bethlem,

Vamos visitar Maria.

Seu bento filho tambem.»

Em dezembro, vintecinco.

A meia-noite nasceu

Um Deus que, pra nos salvar,

Seu corpo e sangue deu:

nem- n`um leito de cortinas


Foste nascer em Berthlem,

Sobre umas pobres palhinhas. »


Cantar dos Reis (Donões,
Montalegre)


Letra e música: popular: Trás-os-Montes

(reis,
janeiras, canção de Natal)


Aqui vem as três rosinhas

quatro ou cinco ou seis

se o senhor nos dá licensa

vimos lhe cantar os reis


Os três reis do oriente

já chegaram a Belém

visitar o Deus Menino

que Nossa Senhora tem



O menino está no berço

coberto c'o cobertor

eos anjinhos estão cantando

louvado sej'o Senhor


O Senhor por ser Senhor

nasceu nos tristes palheiros

deixou cravos deixou rosas

deixou lindos travesseiros



também deixou a abelhinha

abelhinha com o seu mel

para fazer um docinho

ao divino Emanuel


Você diz que tem bom vinho

có có có

venha-nos dar de beber

rintintin

florin-tintin


traililairo



    O Menino Deus

    - Popular ( Madeira)

Dar parabens ti Maria.

« .Mas que lh' emos de levar,


A um Deus que tanto tem?»

Ainda que muito tenha,

Sempre gosta que lhe deem.»

- «Eu lhe lev`um cordeirinho,

Lo melhor qu' eu incontrei.»

-- « E eu lev' um requeijão.

Lo melhor qu'eu requeijei.»


-- «Pois tambem eu aqui levo,

Fofinhos, p'ra lh' off'reeer,

Bons merendeiras de leite;

Fava de mel, p'ra comer.»

- «Vamos ter c'os mais pastores,

Nã se percam no caminho;


Vamos todos, e depressa,

Adoral lo Deus Menino.»

-«Vinde tambem pastorinhas.

Vinde, cortei a Bethlem ;

Vinde visitar Maria,

Que divino filho tem,»

-«Esta noit' é sancta noite,

Ind`assim mesma, tão fria;


Vamos todos a Bethlem

Visitar Jesus, Maria.»

- « Ai, que formoso Menino;

Ai, que tanta graça tem;

Ai, que tanto se parece

Com sua Senhora.mãe!»

Terno de Reis





- Popular
(Açores)


I

Ó
de casa nobre gente

Acordais
e ouvireis


das bandas do oriente

Ta
chegando o Santos Reis

II


O
Nosso Terno de Reis

É
uma tradição Divina

De
origem açoriana

No
folclore catarina

III

Aqui
estamos em vossa porta

De
baixo do seu beirado

Venha
nos abrir a porta

Se
tiver do seu agrado.


IV

Obrigado
Dono da casa

Pela
vossa acolhida

Pelo
vosso alimento

E
Por essa santa bebida.

V

Menino
Jesus nasceu

Viemos
anunciar

Com
o nosso terno de Reis


Pra
família se alegrar.

VI

O
nosso Terno de Reis

Agora
vai viajar

Pra
chegar em seu destino

Antes
do galo cantar


Natal dos simples



Letra e música: Zeca Afonso

(reis,
janeiras, canção de Natal)

In: Cantares de Andarilho;


Vamos cantar as janeiras

Vamos cantar as janeiras


Por esses quintais adentro vamos

Às raparigas solteiras


Vamos cantar orvalhadas

Vamos cantar orvalhadas

Por esses quintais adentro vamos

Às raparigas casadas


Vira o vento e muda a sorte

Vira o vento e muda a sorte

Por aqueles olivais perdidos


Foi-se embora o vento norte


Muita neve cai na serra

Muita neve cai na serra

Só se lembra dos caminhos velhos

Quem tem saudades da terra


Quem tem a candeia acesa

Quem tem a candeia acesa

Rabanadas pão e vinho novo

Matava a fome à pobreza



Já nos cansa esta lonjura

Já nos cansa esta lonjura

Só se lembra dos caminhos velhos

Quem anda à noite à ventura


Natal

– Álvaro Feijó


Nasceu.


Foi numa cama de folhelho,

entre lençóis de estopa suja,

num pardieiro velho.

Trinta horas depois a mãe
pegou na enxada


e foi roçar nas bordas dos
caminhos


manadas de erva

para a ovelha triste.

E a criança ficou no pardieiro

só com o fumo negro das paredes


e o crepitar do fogo

enroscado num cesto vindimeiro,

que não havia berço naquela
casa.


E ninguém conta a história
do menino


Que não teve

nem magos a adorá-lo,

nem vacas a aquecê-lo,

mas que há-de ter

muitos reis da Judeia a persegui-lo;


que não terá coroa de espinhos

mas coroa de baionetas,

postas até ao fundo

do seu corpo.

Ninguém há-de contar a história
do menino.


Ninguém lhe vai chamar Salvador
do Mundo.


NATAL

- MIGUEL TORGA


Velho Menino-Deus que me vens
ver

Quando o ano passou e as dores passaram:

Sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter,

Mas quando as minhas dores o desejaram...


Agora, outras quimeras me tentaram

Em reinos onde tu não tens poder...

Outras mãos mentirosas me acenaram

A chamar, a mostrar e a prometer...


Vem, apesar de tudo, se queres
vir.


Vem com neve nos ombros, a sorrir

A quem nunca doiraste a solidão...


Mas o brinquedo... quebra-o
no caminho.

O que eu chorei por ele! Era de arminho

E batia-lhe dentro um coração...


Miguel
Torga

NATAL

– Miguel Torga


Soa a palavra nos sinos,

E que tropel nos sentidos,

Que vendaval de emoções!

Natal de quantos meninos

Em nudez foram paridos

Num presépio de ilusões.


Natal da fraternidade

Solenemente jurada

Num contraponto em surdina.


A imagem da humanidade

Terrenamente nevada

Dum halo de luz divina


Natal do que prometeu,

Só bonito na lembrança.

Natal que aos poucos morreu

No coração da criança,

Porque a vida aconteceu

Sem nenhuma semelhança.





MIGUEL TORGA, "Diário XII"


Poema de Natal

- Miguel Torga



Leio o teu nome

Na página da noite:

Menino Deus...


E fico a meditar

No milagre dobrado

De ser Deus e menino.

Em Deus não acredito.

Mas de ti como posso duvidar?

Todos os dias nascem

Meninos pobres em currais de gado.

Crianças que sâo ânsias alargadas

De horizontes pequenos.


Humanas alvoradas...

A divindade é o menos.




Miguel Torga

Versos de
Natal

-
Manuel Bandeira



“Espelho, amigo verdadeiro,

Tu refletes as minhas rugas,

Os meus cabelos brancos,

Os meus olhos míopes e cansados.

Espelho, amigo verdadeiro,

Mestre do realismo exato e minucioso,

Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,

penetrarias até o fundo desse homem
triste,



Descobririas o menino que sustenta esse
homem,


O menino que não quer morrer,

Que não morrerá senão comigo,

O menino que todos os anos na véspera
de Natal


Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos
atrás da porta.”



Canto de
Natal


Manuel Bandeira




O nosso menino


Nasceu em Belém.

Nasceu tão-somente

Para querer bem.



Nasceu sobre as palhas


O nosso menino.

Mas a mãe sabia


Que ele era divino.



Vem para sofrer


A morte na cruz,

O nosso menino.

Seu nome é Jesus.



Por nós ele aceita


O humano destino:


Louvemos a glória

De Jesus menino.



A poesia acima foi extraída da "
Antologia Poética - Manuel
Bandeira", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2001, pág.
137.




Natal

– Vinícius De Moraes


De repente
o sol raiou

E o galo cocoricou:

— Cristo nasceu!

O boi, no campo perdido

Soltou um longo mugido:

— Aonde? Aonde?




Com seu balido tremido

Ligeiro diz o cordeiro:

— Em Belém! Em Belém!

Eis senão quando, num zurro

Se ouve a risada do burro:

— Foi sim que eu estava lá!



E o papagaio que é gira


Pôs-se a falar: — É mentira!

Os bichos de pena, em bando

Reclamaram protestando.

O pombal todo arrulhava:

— Cruz credo! Cruz credo!

Brava



A arara a gritar começa:


— Mentira! Arara. Ora essa!

— Cristo nasceu! canta o galo.

— Aonde? pergunta o boi.

— Num estábulo! — o cavalo



Contente rincha onde foi.

Bale o cordeiro também:

— Em Belém! Mé! Em Belém!


E os bichos todos pegaram

O papagaio caturra

E de raiva lhe aplicaram

Uma grandíssima surra.









CARTA DE NATAL A MURILO MENDES



- SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN






Querido Murilo: será mesmo possível



Que você este ano não chegue no Verão




Que seu telefonema não soe na manhã de Julho



Que não venha partilhar o vinho e o pão







Como eu só o via nessa quadra do ano




Não vejo a sua ausência dia-a-dia



Mas em tempo mais fundo que o quotidiano







Descubro a sua ausência devagar



Sem mesmo a ter ainda compreendido




Seria bom Murilo conversar



Neste dia confuso e dividido







Hoje escrevo porém para a Saudade




- Nome que diz permanência do perdido



Para ligar o eterno ao tempo ido



E em Murilo pensar com claridade -







E o poema vai em vez deste postal




Em que eu nesta quadra respondia



- Escrito mesmo na margem do jornal



Na baixa - entre as compras de Natal








Para ligar o eterno a este dia.







Lisboa, 22 de Dezembro de 1975







(1919-2004)




(in «Natal na Poesia Portuguesa»,

org. Luiz Forjaz Trigueiros,

Dinalivro, 1987)


Poema de
Natal


-
Vinicius de Moraes

Para isso fomos
feitos:

Para lembrar e ser lembrados,

Para chorar e fazer chorar,


Para enterrar os nossos mortos -

Por isso temos braços longos para os adeuses,

Mãos para colher o que foi dado,

Dedos para cavar a terra.

Assim será
a nossa vida;

Uma tarde sempre a esquecer,

Uma estrêla a se apagar na treva,

Um caminho entre dois túmulos -

Por isso precisamos velar,


Falar baixo, pisar leve, ver

A noite dormir em silêncio.

Não há muito
que dizer:

Uma canção sôbre um berço,

Um verso, talvez, de amor,

Uma prece por quem se vai -

Mas que essa hora não esqueça

E que por ela os nossos corações

Se deixem, graves e simples.


Pois para isso
fomos feitos:

Para a esperança no milagre,

Para a participação da poesia,

Para ver a face da morte -

De repente, nunca mais esperaremos...

Hoje a noite é jovem; da morte apenas

Nascemos, imensamente.

Natal Africano


– Cabral do Nascimento


Não há pinheiros nem há
neve,


Nada do que é convencional,

Nada daquilo que se escreve

Ou que se diz... Mas é Natal.

Que ar abafado! A chuva banha

A terra, morna e vertical.

Plantas da flora mais estranha,


Aves da fauna tropical.

Nem luz, nem cores, nem lembranças

Da hora única e imortal.

Somente o riso das crianças

Que em toda a parte é sempre
igual.


Não há pastores nem ovelhas,

Nada do que é tradicional.

As orações, porém, são
velhas


E a noite é Noite de Natal.


Cabral do Nascimento


Ao
Menino Deus em metáfora de doce



– Jerónimo Baía



Romance

- Quem quer fruta doce?


- Mostre lá! Que é isso?

- É doce coberto;

É manjar divino.

- Vejamos o doce;

Compraremos todo,

Se for todo rico.

- Venha ao portal logo;

Verá que não minto,

Pois de várias sortes


É doce infinito.

- Desculpa, minha alma.

Mas ah! Que diviso?!

Envolto em mantilhas,

Um Infante lindo!

- Pois de que se admira,

Quando este Menino

É doce coberto,

É manjar divino?


- Diga o como é doce,

Que ignoro o prodígio.

- Não sabe o mistério?

Ora vá ouvindo:

Muito antes de Santa Ana,

Teve este doce princípio,

Porque já do Salvador

Se davam muitos indícios.

Mas na Anunciada dizem


Que houve mais expresso aviso,

E logo na Encarnação

Se entrou por modo divino.

Esteve pois na Esperança

Muitos tempos escondido;

Saiu da Madre de Deus,

depois às Claras foi visto.


Fazem dele estimação

As freiras com tal capricho,


Que apuram para este doce

Todos os cinco sentidos.

Afirmam que no Calvário

Terá seu termo finito,

Sendo que no Sacramento

Há-de ter novo artifício.

Que seja doce este Infante,

A razão o está pedindo,

Porque é certo que é morgado,


Sendo unigénito Filho!

Exposto ao rigor do tempo,

Quando tirita nuzinho,

Um caramelo parece

Pelo branco e pelo frio.

Tão doce é que, porque farte

Ao pecador mais faminto,

Será de pão com espécies,

Substancial doce divino.


É manjar tão soberano,

Regalo tão peregrino,

Que os espíritos levanta,

Tornando aos mortos vivos.

Tão delicioso bocado

Será de gosto infinito,

Manjar real, verdadeiro,

Manjar branco, parecido!

Que é manjar dos Anjos, dizem


Talentos mui fidedignos,

Por ser pão de ló, que aos
Anjos


Foi em figura oferecido

Jerónimo Baía

In A Poesia
Lírica Cultista e Conceptista

Lisboa, Seara Nova, 1968


A Adoração dos Magos


– Fátima Maldonado


Aquela noite a três

foi como desenhar a maçarico

numa chapa de ferro

um vento fóssil, um vítreo
monograma,


o rasto ao exceder o voo de
uma carriça


cativo flutua no vidro de uma
jarra.


Suspensos percorriam na polpa
da vertigem



léguas sobre o abismo.

Pendentes do zinco da manhã

à espera do início

do seguinte espectáculo

dispersaram o sémen

nas chaminés da noite leprosa.

Nos terraços da luta percorreram

as danças mais funestas da
ternura.


Num combinar astuto de referências


abriram-se os portais

e despediram galopes penitentes

os animais libertos

das tecidas mansões.

O unicórnio branco depôs
sua cabeça


nos braços da senhora,

compadecida dama,

e lhe tocou fiando suas lãs

entre as unhas crivadas por
metralha.



Sinto-lhes o assédio,

em cada joelho poisam

um queixo armadilhado,

a barba já cresceu desde o
jantar.


«É a adoração dos magos»
- murmuras tu –


fincando na ravina os dedos
imanados


enquanto o tronco investe

a pele percorrida por venosas
nascentes.


Olho por sobre um ombro


e surpreendo a treva

ofendida esgueirar-se

entre os dedos da porta.

O noctívago galgo

devora a escuridão às cegas
no recinto.


Em breve a luz envolve

de opalinas unções as cabeleiras.

Iminentes desenham-se as saídas,

o croissant no prato, o garoto
no copo,



o revestir a pele doutros fatos

a tragédia jazente nos horários.

Aquela noite a três foi sem
remédio.


Fátima Maldonado

Os Presságios

Lisboa, Editorial
Presença, 1983

Loa

– Vitorino Nemésio


Meu Menino Jesus dos triguinhos
no prato,

Não enxugues a tua lágrima de vidro,

Não apagues a tua estrela de prata suspensa no quarto ainda morno,


Não deixes envelhecer os velhos
tios de retábulo

Ajoelhados em torno:

Deixa estar as palhinhas urinadas no estábulo,

Que a chuva cheira bem e o pão tufa no forno.

Doira, Menino Jesus, aquele milho amarelo


Que o Joaquim Pacheco secou na escuridão do seu muro,

E manda um navio de nevoeiro

Ao poeta que embarcou à noite no Funchal

Deixando o lenço de sua Mãe molhado no último adeus.

Anda, Menino Jesus, e não me queiras mal

Se eu te disser que assim é que te sinto Deus.

Manda o navio de nevoeiro

Pela primeira vaga que vires redonda e rebentada:

Tua mão outra vez a atira contra a noite,


Como se não tivesse batido nessa grande praia parada.

E deixa as minhas faltas à missa,

Esquece os pontos fracos da minha velha teologia,

E o orgulho, a razão, o materialismo passageiro...

Mandes tu pelo mar o navio de nevoeiro!


VITORINO NEMÉSIO

Soneto de
Natal



Machado de Assis



Um homem, — era aquela noite amiga,

Noite cristã, berço no Nazareno, —

Ao relembrar os dias de pequeno,

E a viva dança, e a lépida cantiga,


Quis transportar ao verso doce
e ameno

As sensações da sua idade antiga,

Naquela mesma velha noite amiga,


Noite cristã, berço do Nazareno.


Escolheu o soneto... A folha
branca

Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,

A pena não acode ao gesto seu.


E, em vão lutando contra o
metro adverso,

Só lhe saiu este pequeno verso:

"Mudaria o Natal ou mudei eu?"




Texto extraído do livro "
Poesias Completas - Ocidentais",
1901, pág. s/nº.



Papai Noel
às Avessas

Carlos Drummond
de Andrade



Papai Noel entrou pela porta dos fundos

(no Brasil as chaminés não são praticáveis),

entrou cauteloso que nem marido depois da farra.

Tateando na escuridão torceu o comutador

e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,

coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.


Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,

achou um queijo e comeu.


Depois tirou do bolso um cigarro
que não quis acender.

Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças

(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)

e avançou pelo corredor branco de luar.

Aquele quarto é o das crianças

Papai entrou compenetrado.


Os meninos dormiam sonhando
outros natais muito mais lindos


mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos

soldados mulheres elefantes navios

e um presidente de república de celulóide.


Papai Noel agachou-se e recolheu
aquilo tudo

no interminável lenço vermelho de alcobaça.

Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto

que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa
do aperto.


Os pequenos continuavam dormindo.

Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.


Papai Noel voltou de manso para a cozinha,

apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.


Na horta, o luar de Natal abençoava
os legumes.




Este poema foi publicado no livro

"Alguma Poesia", Editora Pindorama, em1930, primeiro livro
do autor. Texto extraído de "Nova Reunião", Livraria José
Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1983, pág. 24.






HISTÓRIA ANTIGA

- Miguel Torga

Era uma vez, lá na Judeia,
um rei.

Feio bicho, de resto:

Uma cara de burro sem cabresto

E duas grandes tranças.

A gente olhava, reparava, e via


Que naquela figura não havia

Olhos de quem gosta de crianças.


E, na verdade, assim acontecia.

Porque um dia,

O malvado,

Só por ter o poder de quem é rei

Por não ter coração,

Sem mais nem menos,

Mandou matar quantos eram pequenos


Nas cidades e aldeias da Nação.


Mas,

Por acaso ou milagre, aconteceu

Que, num burrinho pela areia fora,

Fugiu

Daquelas mãos de sangue um pequenito

Que o vivo sol da vida acarinhou;

E bastou

Esse palmo de sonho


Para encher este mundo de alegria;

Para crescer, ser Deus;

E meter no inferno o tal das tranças,

Só porque ele não gostava de crianças.


        Miguel Torga

        Antologia Poética

        Coimbra, Ed. do Autor, 1981

O Filho do
Homem


-
Vinicius de Moraes


O mundo parou

A estrela morreu

No fundo da treva

O infante nasceu.



Nasceu num estábulo

Pequeno e singelo


Com boi e charrua

Com foice e martelo.



Ao lado do infante

O homem e a mulher

Uma tal Maria

Um José qualquer.



A noite o fez negro


Fogo o avermelhou

A aurora nascente

Todo o amarelou.



O dia o fez branco

Branco como a luz

À falta de um nome

Chamou-se Jesus.




Jesus pequenino

Filho natural

Ergue-te, menino

É triste o Natal.


Natal de 1947



O poema acima foi extraído do livro "Antologia Poética",
Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 215.



FALAVAM-ME DE AMOR

- Natália Correia

Quando um ramo de doze badaladas

se espalhava nos móveis e tu vinhas

solstício de mel pelas escadas

de um sentimento com nozes e com pinhas,


menino eras de lenha e crepitavas

porque do fogo o nome antigo tinhas


e em sua eternidade colocavas

o que a infância pedia às andorinhas.



Depois nas folhas secas te envolvias

de trezentos e muitos lerdos dias

e eras um sol na sombra flagelado.



O fel que por nós bebes te liberta

e no manso natal que te conserta


só tu ficaste a ti acostumado.


        Natália
        Correia

        O Dilúvio e a Pomba

        Lisboa, Publicações D. Quixote, 1979



NATAL À BEIRA-RIO

- David Mourão Ferreira




É o braço do abeto a bater na vidraça?


E o ponteiro pequeno a caminho
da meta!


Cala-te, vento velho! É o
Natal que passa,


A trazer-me da água a infância
ressurrecta.


Da casa onde nasci via-se perto
o rio.


Tão novos os meus Pais, tão
novos no passado!


E o Menino nascia a bordo de
um navio


Que ficava, no cais, à noite
iluminado...



Ó noite de Natal, que travo
a maresia!


Depois fui não sei quem que
se perdeu na terra.


E quanto mais na terra a terra
me envolvia


E quanto mais na terra fazia
o norte de quem erra.


Vem tu, Poesia, vem, agora
conduzir-me


À beira desse cais onde Jesus
nascia...


Serei dos que afinal, errando
em terra firme,


Precisam de Jesus, de Mar,
ou de Poesia?






David Mourão-Ferreira,
Obra Poética 1948-1988

Lisboa, Editorial
Presença,

ORAÇÃO DE NATAL

                - Estela Braga e Couto e Aníbal Raposo



            Oh Jesus Menino
            Deus

            Se me ouves
            lá dos céus

            Um presente
            de Natal

            Venho pedir-te
            em segredo

            Não quero
            nenhum brinquedo

            Metido no
            sapatinho

            Antes queria,
            Deus menino


            Se não me
            levas a mal:


            - Que o meu
            pai que está doente

            Ficasse bom
            de repente

            Da febre que
            o tem em brasa

            É que a mãe,
            pobre coitada,

            Anda tão
            preocupada

            Com a saúde
            do paizinho

            Porque é
            ele quem, sozinho,


            Ganha o pão
            da nossa casa.


            - Que o meu
            irmão Joaquim

            Deixasse a
            coisa ruim

            Que é andar
            nas drogas duras.

            A seguir por
            este andar

            Pouco tempo
            vai durar...

            Se esta oração
            é ouvida

            Dá-lhe um
            sentido pr’á vida


            Olha, vê
            lá se o curas


            - Que aparecesse
            esta semana

            A minha gata
            Silvana.

            Se morreu
            envenenada

            Um conselho
            aqui te dou

            Castiga quem
            a matou

            Tenho o quintal
            tão vazio

            E há já
            um mês que não rio


            Por não brincar
            com a danada.



            - Que por
            obra e graça tua

            Os meninos
            lá da rua

            Tenham sempre
            que comer.

            É que dizem
            que os mais grados

            Pagam pelos
            seus pecados...

            Talvez seja,
            que sei eu?


            Mas as crianças,
            Deus meu...

            Olha, não
            te vais esquecer...



            Se és o Deus
            dos aflitos

            Faz com que
            os meus periquitos

            Tenham uma
            criaçãozinha

            A fêmea bem
            põe o ovo

            Mas crias,
            nada de novo...


            Bem sei que
            peço demais

            Mas eu gosto
            de animais

            Vê se dás
            uma ajudinha...


            Já agora
            vou mais fundo

            E te peço,
            Paz no mundo

            Alegria e
            muito Amor

            É coisa que
            não existe

            Está toda
            a gente tão triste...


            Dai-nos, Deus,
            conselhos sábios

            Põe-nos sorrisos
            nos lábios

            Faz esta graça
            Senhor...



                Estela
                Braga e Couto e Aníbal Raposo

                Dezembro
                de 2003






João Miguel Fernandes Jorge

A abstracção não precisa
de mãe nem pai


nem tão pouco de tão tolo
infante




mas o natal de minha mãe é
ainda o meu natal


com restos de Beira Alta




ano após ano via surgir figura
nova nesse


presépio de vaca burro banda
de música




ribeiro com patos farrapos
de algodão muito


musgo percorrido por ovelhas
e pastores




multidão de gente judaizante
estremenha pela


mão de meu pai descendo de
montes contando





moedas azenhas movendo água
levada pela estrela


de Belém



um galo bate as asas um frade
está de acordo


com a nossa circuncisão galinhas
debicam milho




de mistura com um porco a que
minha avó juntava


sempre um gato para dar sorte
era preto





assim íamos todos naquela
figuração animada


até ao dia de Reis aí estão



um de joelhos outro em pé

e o rei preto vinha sentado
no




camelo. Era o mais bonito.

depois eram filhoses o acordar
de prenda no





sapato tudo tão real como
o abrir das lojas no dia


de feira



e eu ia ao Sanguinhal visitar
a minha prima que


tinha um cavalo debaixo do
quarto




subindo de vales descendo de
montes


acompanhando a banda do carvalhal
com ferrinhos





e roucas trompas o meu Natal
é ainda o Natal de


minha mãe com uns restos de
canela e Beira Alta.





João Miguel Fernandes
Jorge, Actus Tragicus

Lisboa, Editorial Presença,






O Menino
Negro Não Entrou Na Roda

– Geraldo
Bessa Victor


O menino negro não entrou
na roda

das crianças brancas - as crianças brancas

que brincavam todas numa roda viva

de canções festivas , gargalhadas francas...



menino negro não entrou na roda.




E chegou o vento junto das crianças

- e bailou com elas e cantou com elas

as canções e danças das suaves brisas,

as canções e danças das brutais procelas.



O menino negro não entrou na roda.

Pássaros, em bando, voaram chilreando

sobre as cabecinhas lindas dos meninos


e pousaram todos em redor. Por fim,

bailaram seus vôos, cantando seus hinos...



O menino negro não entrou na roda.



"Venha cá, pretinho, venha cá brincar"

- disse um dos meninos com seu ar feliz.

A mamã, zelosa, logo fez reparo;


o menino branco já não quiz, não quiz...



o menino negro não entrou na roda.



O menino negro não entrou na roda

das crianças brancas. Desolado, absorto,

ficou só, parado com olhar cego,

ficou só, calado com voz de morto.





Trilogia do Menino Negro

- Jorge Villa

Menino negro tem uns olhos
grandes


uns olhos grandes como a terra
inteira!


- Tudo quanto apetece se resume


na sombra da palmeira!


Na sombra da palmeira, com
brinquedos


e grinaldas que os troncos
lhe vão dando!



´- Menino negro é senhor
do mundo


e vai brincando, brincando
….


Menino negro cresceu. E deixou


a sombra da palmeira que foi
sua!


E crescendo foi homem. E sonhou


cada vez que no céu mudou
a lua!


Teve mulher e filhos. E ambições.


Foi trabalhar nas minas. Adoeceu


e voltou.



-
Que não cresceu ilusões


além da sombra amiga onde
nasceu!


Menino-homem-velho – e morreu.


- No céu uma vez mais mudou
a lua … -


A terra inteira é outra vez
sua!


A sombra da palmeira, com
brinquedos


e grinaldas que os troncos
lhe vão dando!


O menino que já não é menino



lá vai sonhando, sonhando


Quando um Homem Quiser


– Ary dos Santos


Música: Fernando Tordo

Letra:
Ary dos Santos

Intérprete:
Paulo de Carvalho


Tu que dormes a noite na calçada
de relento

Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento

Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento

És meu irmão amigo

És meu irmão


E tu que dormes só no pesadelo
do ciúme

Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume

E sofres o Natal da solidão sem um queixume


És meu irmão amigo

És meu irmão


Natal é em Dezembro

Mas em Maio pode ser

Natal é em Setembro

É quando um homem quiser

Natal é quando nasce uma vida a amanhecer

Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher


Tu que inventas ternura e brinquedos
para dar


Tu que inventas bonecas e combóios de luar

E mentes ao teu filho por não os poderes comprar

És meu irmão amigo

És meu irmão


E tu que vês na montra a tua
fome que eu não sei

Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei

Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei

És meu irmão amigo

És meu irmão



Natal é em Dezembro

Mas em Maio pode ser

Natal é em Setembro

É quando um homem quiser

Natal é quando nasce uma vida a amanhecer

Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher




Natal



Amândeo César

(excerto)



Nasceu!

Numa garagem abandonada, coberta de chapa de zinco,

E num caixote velho de latas de óleo,

Entre desperdícios sujos e usados.




Nossa Senhora e S. José tinham vindo pela estrada

Os pés no asfalto negro, onde circulavam carros de luxo:

Pedir boleia, pediram, mas ninguém os viu ou quis ver,

Ou escutar o gesto...

Iam todos apressados para a ceia da noite,

Desbragada como um conta-quilómetros



E cheia de neblina e de promessas.

Nasceu!


Num caixote velho de latas de óleo,

Entre desperdícios sujos e usados.



O clarão dos holofotes chamou lá os vadios de todas as noites:

Os quarda-noturnos, os polícias de giro,

Os que não têm cama para dormir,

Os poetas e os fugidos à lei — todos! —

Todos os que naquela e nas outras noites

Não têm para onde ir, nem têm onde comer.


Foi, porém, o clarão dos holofotes gastos que os levou lá:

E viram, sobre os desperdícios sujos, num caixote velho,

O Redentor do mundo,

Aquecido pelos dez cavalos-vapor de um velho "Ford T"

Que, trabalhando, acordava a vida no arrabalde longínquo.



S. José e Nossa Senhora choravam:




Todos pediam no mundo a ressurreição do Cristo!

E Ele viera, Ele encarnara de novo

Através do ventre puríssimo da Virgem,

Sob a custódia lirial do descendente de David.



Os donos de carros de luxo cortavam o nevoeiro

Comprometidos pelas amantes caras que ficavam para trás;

As camionetas de transporte temeram a polícia das estradas

E os outros todos também não quiseram dar boleia


Ao Filho de Deus.


(…)

Mas os humildes de todo o mundo

Vieram e compreenderam

A mensagem daquela noite sem
par.



Amândio César





VIII - Num
Meio-Dia de Fim de Primavera (O Guardador de Rebanhos)

- Alberto
Caeiro


Num meio-dia de fim de primavera

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte


Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.


Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.


No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.


O seu pai era duas pessoas

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.


E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.


Hoje vive na minha aldeia
comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.


Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas pelas estradas

Que vão em ranchos pelas estradas

com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.



A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as cousas.

Aponta-me todas as cousas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão


E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou —

"Se é que ele as criou, do que duvido" —


"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,

Mas os seres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam seres."

E depois, cansados de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços


e eu levo-o ao colo para casa.

.............................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Ele é o humano que é natural,

Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certeza

Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.



E a criança tão humana que
é divina

É esta minha quotidiana vida de poeta,

E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,

E que o meu mínimo olhar

Me enche de sensação,

E o mais pequeno som, seja do que for,

Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita
onde vivo

Dá-me uma mão a mim


E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me
sempre.

A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.


O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.


Damo-nos tão bem um com o
outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as
cinco pedrinhas


No degrau da porta de casa,

Graves como convém a um deus e a um poeta,

E como se cada pedra

Fosse todo um universo

E fosse por isso um grande perigo para ela

Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias
das cousas só dos homens

E ele sorri, porque tudo é incrível.

Ri dos reis e dos que não são reis,


E tem pena de ouvir falar das guerras,

E dos comércios, e dos navios

Que ficam fumo no ar dos altos-mares.

Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer

E que anda com a luz do sol

A variar os montes e os vales,

E a fazer doer nos olhos os muros caiados.


Depois ele adormece e eu deito-o.


Levo-o ao colo para dentro de casa

E deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpo

E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha
alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros


E bate as palmas sozinho

Sorrindo para o meu sono.

......................................................................

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano


E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

.....................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus.


Por que razão que se perceba

Não há de ser ela mais verdadeira

Que tudo quanto os filósofos pensam

E tudo quanto as religiões ensinam?





BALADA DA NEVE


– Augusto Gil



Batem leve, levemente,

como quem chama por mim.

Será chuva? Será gente?

Gente não é, certamente

e a chuva não bate assim.



É talvez a ventania:

mas há pouco, há poucochinho,


nem uma agulha bulia

na quieta melancolia

dos pinheiros do caminho...



Quem bate, assim, levemente,

com tão estranha leveza,

que mal se ouve, mal se sente?

Não é chuva, nem é gente,

nem é vento com certeza.




Fui ver. A neve caía

do azul cinzento do céu,

branca e leve, branca e fria...

– Há quanto tempo a não via!

E que saudades, Deus meu!



Olho-a através da vidraça.

Pôs tudo da cor do linho.


Passa gente e, quando passa,

os passos imprime e traça

na brancura do caminho...



Fico olhando esses sinais

da pobre gente que avança,

e noto, por entre os mais,

os traços miniaturais

duns pezitos de criança...




E descalcinhos, doridos...

a neve deixa inda vê-los,

primeiro, bem definidos,

depois, em sulcos compridos,

porque não podia erguê-los!...



Que quem já é pecador

sofra tormentos, enfim!


Mas as crianças, Senhor,

porque lhes dais tanta dor?!...

Porque padecem assim?!...



E uma infinita tristeza,

uma funda turbação

entra em mim, fica em mim presa.

Cai neve na Natureza

– e cai no meu coração.






Luar de Janeiro


O menino
da sua mãe



-
Fernando Pessoa


No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,


De balas trespassado

- Duas, de lado a lado-,

Jaz morto, e arrefece



Raia-lhe a farda o sangue

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos




Tão jovem! Que jovem era!

(agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

«O menino de sua mãe».



Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve


Dera-lhe a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.



De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço... deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.




Lá longe, em casa, há a prece:

"Que volte cedo, e bem!"

(Malhas que o Império tece")

Jaz morto, e apodrece,

O menino de sua mãe.




Esta Velha Angústia

-
Fernando Pessoa


Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim,

Transbordou da vasilha,

Em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,

Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.


Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que...,

Isto.


Um internado num manicômio
é, ao menos, alguém,

Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.


Estou doido a frio,

Estou lúcido e louco,

Estou alheio a tudo e igual a todos:

Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura

Porque não são sonhos.

Estou assim...


Pobre velha casa da minha infância
perdida!

Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!

Que é do teu menino? Está maluco.


Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?

Está maluco.

Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.


Se ao menos eu tivesse uma
religião qualquer!

Por exemplo, por aquele manipanso

Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.

Era feiíssimo, era grotesco,

Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.

Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —


Júpiter, Jeová, a Humanidade —

Qualquer serviria,

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?


Estala, coração de vidro
pintado!


Cancioneiro
e Prosa de Natal


http://www.rede-nonio.min-edu.pt/1cic/agrup_ovar/natal_cancoes.htm


http://www.nesos.net/imgdocs/nesos_publicar/ebooks/romanceiro_arquipelago/romanceiro_arquipelago.pdf

http://www.apropucsp.org.br/revista/rcc01_r08.htm

http://www.releituras.com/index_natal2005.asp






        CENAS DO JARDIM

        - Victor Nogueira

        1. Era um jardim

        geometricamente
        desconfortável


        artificial


        No coreto


        a banda tocava.


        Além



        caridosamente


        alguém partilhava com os "jardineantes"


        as goelas do transístor escancaradas


        No banco


        ao meu lado


        uma matrona e uma gaiata conversam


        banalmente,


        "Puxa a mala um bocadinho mais para baixo.



        Isso! Assim!


        Para que te não vejam as pernas"


        E eu sorrio-me


        por entre a sisudez duma "Introdução à Vida Política"


        Pobres e ridículas gaiatas!


        Pobres e ridículas matronas!

        2. Era um
        miúdo esfarrapado


        sujo



        de rosto envelhecido,


        Aproxima-se do guarda, mas o dinheiro não chega.


        Mas o velho, que já terá sido criança, deixa-lo entrar.


        O miúdo envelhecido corre,


        Para,


        Hesita!


        Os olhos sorriem no rosto sujo,


        Balancé? Carrocel? Escorrega? Ou avião?



        Não poder ele desdobrar-se!


        Corre, sobe, escorrega


        o mundo é dele


        Agarra-lo.


        Sobe, desliza, corre, sobe, desliza


        sobe; desliza, corre, sobe, desliza


        contorce-se



        "MÃE, OLHA ESTE MATULÃO SUJO! VAI-TE EMBORA!"


        As avózinhas contorcem os lábios


        num rictus de desprezo


        os meninos apedrejam com a língua e crucificam com os lábios.


        Ele hesita.


        Baloiça, baloiça, baloiça!


        Roda, roda, roda,


        sobe, desliza, corre, sobe, tropeça, sobe, desliza, corre!


        contorce-se, baloiça, roda



        Olhos brilhantes cheios de felicidade!


        Um velho num corpo de criança


        pequena para a roupa suja

        esfarrapada!


        As avózinhas contorcem os lábios num rictus de desprezo


        Os meninos, esses apedrejam com a língua


        e crucificam com os lábios



        Velhas envelhecidas


        Garotos moribundos


        e uma criança num pequeno corpo de velho!

Évora, 1969 Fevereiro 24





1 comentário:

Belisa disse...

Olá :)

Aplausos quero dar
Para com este post rimar!
E quero também deixar
Um grande e gostoso beijo na ar!

Talvez nos encontremos por aí...

Beijos estrelados
de
Belisa