Natal 1981 [2005/2006]
– Tempo de ilusões
– Tempo de ilusões
BOM NATAL! BOM
ANO NOVO!
ANO NOVO!
(Discurso
que sempre se repete, mas que nunca se cumpre)
que sempre se repete, mas que nunca se cumpre)
Natal
Menino dormindo...
/ Silêncio profundo. / Benvindo, benvindo, / Salvador do Mundo! Noite.
/ Silêncio profundo. / Benvindo, benvindo, / Salvador do Mundo! Noite.
Noite fria.
/ Mas que lindo que é! / De um lado Maria. / Do outro José. /
/ Mas que lindo que é! / De um lado Maria. / Do outro José. /
Um anjo
descerra / A ponta do véu... / E cai sobre a Terra / A imagem do Céu! 1[1]
descerra / A ponta do véu... / E cai sobre a Terra / A imagem do Céu! 1[1]
Este poema foi escrito naquele tempo em que todos nós – crianças
e adultos – sentíamos ainda o “Espírito de Natal”.
Nos dias de
hoje, Natal não passa de uma mera “palavra”, com
significado igual ao daqueles dias de "qualquer coisa"
que se comemoram nos 365 dias do ano.
hoje, Natal não passa de uma mera “palavra”, com
significado igual ao daqueles dias de "qualquer coisa"
que se comemoram nos 365 dias do ano.
Em Dezembro,
as luzes coloridas dão novas cores e novos ritmos às árvores, às
varandas, aos portais e às janelas das casas. No ar paira um espírito
de festa, de pseudo-alegria e de mistério. As músicas natalícias
ouvem-se em cada canto e esquina, adormecendo a razão de quem as escuta.
as luzes coloridas dão novas cores e novos ritmos às árvores, às
varandas, aos portais e às janelas das casas. No ar paira um espírito
de festa, de pseudo-alegria e de mistério. As músicas natalícias
ouvem-se em cada canto e esquina, adormecendo a razão de quem as escuta.
Toda a gente
– rica e pobre - se acotovela diante dos escaparates e das montras
deslumbrantes... Multidões irrompem pelas lojas, subjugadas aos deuses
do consumismo, inebriadas pelas coisas inúteis que compram sem pensar
e muito menos sem precisar...
– rica e pobre - se acotovela diante dos escaparates e das montras
deslumbrantes... Multidões irrompem pelas lojas, subjugadas aos deuses
do consumismo, inebriadas pelas coisas inúteis que compram sem pensar
e muito menos sem precisar...
Neste
mês finge-se que tudo é diferente:
mês finge-se que tudo é diferente:
— Diz-se
“Bom dia”, com um sorriso no rosto, ao vizinho... – que
é ignorado todo o resto do ano!
“Bom dia”, com um sorriso no rosto, ao vizinho... – que
é ignorado todo o resto do ano!
— Olha-se
para os idosos com mais respeito e com um sorriso nos lábios, dá-se-lhes
um pouco mais de carinho, de atenção, de amizade... – para, durante
o resto do ano, continuar-se a ignorar a sua existência!
para os idosos com mais respeito e com um sorriso nos lábios, dá-se-lhes
um pouco mais de carinho, de atenção, de amizade... – para, durante
o resto do ano, continuar-se a ignorar a sua existência!
— Para os
pobrezinhos, os “sem abrigo”, os marginalizados, os indigentes,
os doentes... lá estão os nossos “primeiros”, “segundos”
e “terceiros” a dar-lhes a anual “sopa de pedra”,
entre um sorriso e um piscar de olhos ternurento (mas só para as câmaras
dos média os focarem num grande primeiro plano!)... e, durante
o resto do ano, continuam a ignorar que estes (pobrezinhos,
“sem abrigo”, marginalizados, indigentes, doentes) existem
e que continuam a precisar de comer, vestir, dormir e, sobretudo, de
um trabalho que lhes permitam sobreviver com dignidade!
pobrezinhos, os “sem abrigo”, os marginalizados, os indigentes,
os doentes... lá estão os nossos “primeiros”, “segundos”
e “terceiros” a dar-lhes a anual “sopa de pedra”,
entre um sorriso e um piscar de olhos ternurento (mas só para as câmaras
dos média os focarem num grande primeiro plano!)... e, durante
o resto do ano, continuam a ignorar que estes (pobrezinhos,
“sem abrigo”, marginalizados, indigentes, doentes) existem
e que continuam a precisar de comer, vestir, dormir e, sobretudo, de
um trabalho que lhes permitam sobreviver com dignidade!
Por isso
dei por mim a pensar:
dei por mim a pensar:
- Na “Balada
de Neve” de Augusto Gil, naqueles pezinhos de criança,
no frio e na dor que sente ao caminhar... - No poema de Ary
dos Santos que, ontem como hoje, ilustra bem o “faz de conta”
desta época que estamos a viver: “Tu que dormes a noite na calçada
ao relento / Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento / Tu que
tens o Natal da solidão, do sofrimento / És meu irmão amigo / És
meu irmão / (...) 2[2].
Mas o tempo
avança inexoravelmente e as pessoas continuam a caminhar, atarefadas,
sem ter tempo, sequer, de olhar para o lado...
avança inexoravelmente e as pessoas continuam a caminhar, atarefadas,
sem ter tempo, sequer, de olhar para o lado...
A época natalícia
sucede-se ano após ano, com os mesmos gestos, os mesmos fracassos e
as mesmas promessas. Fala-se de Fraternidade Universal, fala-se
do Criador, fala-se de Jesus que nasceu numa manjedoura...
sucede-se ano após ano, com os mesmos gestos, os mesmos fracassos e
as mesmas promessas. Fala-se de Fraternidade Universal, fala-se
do Criador, fala-se de Jesus que nasceu numa manjedoura...
Porque não
falar num Jesus mais adaptado a este mundo real?
falar num Jesus mais adaptado a este mundo real?
Natal
Nasceu!
/ Numa garagem abandonada, coberta de chapa de zinco, / e num caixote
velho de latas de óleo, / Entre desperdícios sujos e usados, / Nossa
Senhora e S. José tinham vindo pela estrada, / Os pés no asfalto negro,
onde circulam carros de luxo: / Pedir boleia, pediram, mas ninguém
viu ou quis ver, / Ou escutar o gesto...
/ Numa garagem abandonada, coberta de chapa de zinco, / e num caixote
velho de latas de óleo, / Entre desperdícios sujos e usados, / Nossa
Senhora e S. José tinham vindo pela estrada, / Os pés no asfalto negro,
onde circulam carros de luxo: / Pedir boleia, pediram, mas ninguém
viu ou quis ver, / Ou escutar o gesto...
Iam apressados
para a ceia da noite, / Desbragada como um conta-quilómetros / E cheia
de neblina e promessas.
para a ceia da noite, / Desbragada como um conta-quilómetros / E cheia
de neblina e promessas.
Nasceu!
Num caixote
velho de latas de óleo, / Entre desperdícios sujos e usados.(...) 3[3]
velho de latas de óleo, / Entre desperdícios sujos e usados.(...) 3[3]
Finalmente
é chegado o dia de Natal!...
é chegado o dia de Natal!...
"Hoje
é dia de ser bom. / É dia de passar a mão pelo rosto das crianças
/ De falar e de ouvir com mavioso tom, / de abraçar toda a gente e
de oferecer lembranças".
é dia de ser bom. / É dia de passar a mão pelo rosto das crianças
/ De falar e de ouvir com mavioso tom, / de abraçar toda a gente e
de oferecer lembranças".
"É
dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem, / de lhes
darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, / De
perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, / de meditar
sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria"
dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem, / de lhes
darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, / De
perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, / de meditar
sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria"
(...) 4[4].
Milhares de
mensagens vão atravessar o ciberespaço nas vésperas e no dia de Natal,
compondo coisas lindas nos mais de 9 milhões de telemóveis que inundam
este país de contradições e do faz de conta!... para gáudio das
operadoras que, assim, vêem os seus lucros subirem em flecha!
mensagens vão atravessar o ciberespaço nas vésperas e no dia de Natal,
compondo coisas lindas nos mais de 9 milhões de telemóveis que inundam
este país de contradições e do faz de conta!... para gáudio das
operadoras que, assim, vêem os seus lucros subirem em flecha!
Este mesmo
ritual vai-se repetir na noite de 31 de Dezembro!... Desta vez regado
com espumante e ao som das 12 badaladas da meia noite, como manda a
tradição! Frases, pensamentos, mensagens (melhor ou pior elaboradas)
vão ser trocadas num desejo mútuo de tudo de Bom, muita Saúde,
Paz, Fraternidade e Amor...
ritual vai-se repetir na noite de 31 de Dezembro!... Desta vez regado
com espumante e ao som das 12 badaladas da meia noite, como manda a
tradição! Frases, pensamentos, mensagens (melhor ou pior elaboradas)
vão ser trocadas num desejo mútuo de tudo de Bom, muita Saúde,
Paz, Fraternidade e Amor...
Mas a velha
dúvida persegue-me!... e interrogo-me, o que como será possível desejar
em 2005 [2006]...
dúvida persegue-me!... e interrogo-me, o que como será possível desejar
em 2005 [2006]...
Tudo de
Bom... — se irão subirão as rendas de casa, a electricidade,
as portagens, os táxis, a água, os transportes públicos, o pão?!!!...
Bom... — se irão subirão as rendas de casa, a electricidade,
as portagens, os táxis, a água, os transportes públicos, o pão?!!!...
Tudo de
Bom... — se vão continuar as falências, os despedimentos, o
desemprego?!!!...
Bom... — se vão continuar as falências, os despedimentos, o
desemprego?!!!...
Muita Saúde...
— com o sistema de saúde que temos?!!! Com a maioria do nosso
povo auferindo um salário mínimo inferior a 400,00 euros?!!
Serão suficientes para pagar os medicamentos, os honorários dos médicos,
os tratamentos, os internamentos?!!!...
— com o sistema de saúde que temos?!!! Com a maioria do nosso
povo auferindo um salário mínimo inferior a 400,00 euros?!!
Serão suficientes para pagar os medicamentos, os honorários dos médicos,
os tratamentos, os internamentos?!!!...
Paz...
— com tanta instabilidade e tantas guerras à nossa volta e sem
qualquer vontade política de lhes dar fim?!!!...
— com tanta instabilidade e tantas guerras à nossa volta e sem
qualquer vontade política de lhes dar fim?!!!...
Fraternidade...
— se impera a lei da selva na nossa sociedade, do vale tudo, da
competitividade desenfreada e sem regras...
— se impera a lei da selva na nossa sociedade, do vale tudo, da
competitividade desenfreada e sem regras...
Amor
para 2005 [2006]... — se nem sequer há tempo para se DAR
e muito menos para se poder COMPARTILHAR?!!!...
para 2005 [2006]... — se nem sequer há tempo para se DAR
e muito menos para se poder COMPARTILHAR?!!!...
José Gomes
Posted by saturnogomes
at dezembro 22, 2004 09:09 PM
http://movimentum.blogs.sapo .pt/arquivo/417666.html
POESIA Natalícia EM PORTUGUÊS
POESIA Natalícia EM PORTUGUÊS
(antologia
de Victor Nogueira)
de Victor Nogueira)
[da memória
ou pesquisando na WEB]
ou pesquisando na WEB]
– António Gedeão
– Dia de Natal
- David Mourão-Ferreira
– Litânea para este Natal
- David Mourão-Ferreira
– Natal e não Dezembro
- David Mourão Ferreira
– Ladainha dos Póstumos Natais
- Sidónio Muralha
– Natal
- Fernando Pessoa
– Chove. É dia de Natal
- Fernando Pessoa
– Natal
- Jorge de Sena
– Natal de 1971
- Popular
– Foi na noite de Natal
- Popular
– Natal de Elvas
- Popular (Madeira)
– O Natal
- Popular (Madeira)
– O Menino Deus
- Popular (Açores)
– Terno de Reis
- Popular (Donões, Montalegre)
– Cantar dos Reis
- José Afonso
– Natal dos Simples
- Álvaro Feijó
– Natal
- Miguel Torga
– Natal [Velho Menino Deus que me vens ver]
- Miguel
Torga – Natal [Soa a palavra nos sinos]
- Miguel Torga
– Poema de Natal
- Manuel Bandeira
– Versos de Natal
- Manuel Bandeira
– Canto de Natal
– SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - CARTA DE NATAL A MURILO MENDES
- Vinicius de Morais - Natal
- Vinicius de Morais
– Poema de Natal
-
Cabral do Nascimento – Natal Africano
-
Jerónimo Baía – Ao Menino Jesus, metáfora de doce
- Fátima Maldonado
– A adoração dos Magos
- Vitorino Nemésio
– Loa
- Machado de Assis
– Soneto de Natal
- Carlos Drummond de Andrade
– Papai Noel às avessas
- Miguel Torga
– História Antiga
- Natália Correia
– Falavam-me de Amor
- Vinicius de Morais
– O Filho do Homem
- David Mourão Ferreira
– Natal à Beira-Rio
- Estela Braga e Couto e
Aníbal Raposo - Oração de Natal
- João Miguel Fernandes
Jorge – [A abstracção
não precisa de mãe nem pai]
- Geraldo Bessa Victor
– O Menino Negro não entrou na roda
- Jorge Villa -
Trilogia do Menino Negro
- Ary dos Santos
– Quando um Homem quiser
-
Amândio César – Natal (excerto)
- Alberto Caeiro
– VIII – Num Meio-Dia de Fim de Primavera
- Augusto Gil
– Balada da Neve
- Fernando Pessoa
– O Menino de sua Mãe
-
Fernando Pessoa – Esta velha angústia
Victor Nogueira
– Cenas do jardim
- Victor Nogueira -
CONTO DE NATAL
OU DE COMO NO MELHOR PANO
CAI A NÓDOA
Dia de Natal
– António Gedeão
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo
rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso
tom,
de abraçar toda a gente e
de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros—
coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para
poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos,
mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência,
tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo
um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao
Criador.
E mal se extinguem os clamores
plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a
Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor
patético.
(Vossa Excelência verificou
a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre
imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar
nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela,
se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias
dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos
bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das
montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom
gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo
de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de
plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço
liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos
brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos
dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para
nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa
a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana
a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer,
entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o
Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.
Mas a maior felicidade é a
da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta,
tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo
o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente
escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras
rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se
fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá
Já está!
E fazia-as erguer para de novo
matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo
papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de
Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
Litania
para este Natal (1967)
para este Natal (1967)
–
David Mourão Ferreira
David Mourão Ferreira
- Vai nascer esta noite
à meia-noite em ponto
- Num sótão num porão
numa cave inundada
- Vai nascer esta noite
à meia-noite em ponto
- Dentro de um foguetão
reduzido a sucata
- Vai nascer esta noite
à meia-noite em ponto
- Numa casa de Hanói
ontem bombardeada
- Vai nascer esta noite
à meia-noite em ponto
- Num presépio de lama
e de sangue e de cisco
- Vai nascer esta noite
à meia-noite em ponto
- Para ter amanhã a
suspeita que existe
- Vai nascer esta noite
à meia-noite em ponto
- Tem no ano dois mil
a idade de Cristo
- Vai nascer esta noite
à meia-noite em ponto
- Vê-lo-emos depois
de chicote no templo
- Vai nascer esta noite
à meia-noite em ponto
- E anda já um terror
no látego do vento
- Vai nascer esta noite
à meia-noite em ponto
- Para nos vir pedir
contas do nosso tempo
David Mourão-Ferreira, Lira de Bolso
Natal, e
não Dezembro
– David Mourão Ferreira
Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio,
num presídio,
No prédio que amanhã for
demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer
sítio,
Porque esta noite chama-se
Dezembro,
Porque sofremos, porque temos
frio.
Entremos, dois a dois: somos
duzentos,
Duzentos mil, doze milhões
de nada.
Procuremos o rastro de uma
casa,
A cave, a gruta, o sulco de
uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo
nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.
David Mourão-Ferreira, Cancioneiro do Natal
Ladainha dos póstumos Natais
– David Mourão Ferreira
Há-de vir um Natal e será
o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será
o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será
o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será
o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será
o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será
o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será
o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será
o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
David Mourão-Ferreira,
in “Cancioneiro de Natal“
Natal
– Sidónio Muralha
Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
Em letras grandes e pretas,
Traz versos e historietas
E desenhos bonitinhos,
E traz retratos também
Dois bodos, bodos e bodos,
Em casa de gente bem.
Hoje é dia de Natal.
Mas quando será de todos?
Sidónio Muralha, Poesias
Chove. É
dia de Natal
– Fernando Pessoa
Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho frio e Natal não.
Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra
quadra
Fico gelado dos pés.
Fernando Pessoa, Obra Poética
Natal
– Fernando Pessoa
Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
Fernando Pessoa, Obra Poética
Natal de
1971
– Jorge de Sena
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
As cinzas de milhões?
Natal de paz agora
Nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
Num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
Roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
Em ser-se concebido,
Em de um ventre nascer-se,
Em por de amor sofrer-se,
Em de morte morrer-se,
E de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
Quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
Num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
Com gente que é traição,
Vil ódio, mesquinhez,
E até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Ou dos que olhando ao longe
Sonham de humana vida
Um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
E torturados são
Na crença de que os homens
Devem estender-se a mão?
Jorge de Sena, Exorcismos
Foi na noite de Natal
Letra e música: popular
(canção de Natal)
Foi na noite de Natal
noite de santa alegria
caminhando vai José
caminhando vai Maria
Ambos vão para Belém
mais de noite que de dia
e chegaram a Belém
já toda a gente dormia
Buscou lume S.José
pois a noite estava fria
e ficou ao desamparo
sozinha a Virgem Maria
Quando S.José voltou
já viu a Virgem Maria
com o Deus Menino nos braços
que toda a gente alumia
- Natal de Elvas
- – Popular
- Eu hei-de dar ao Menino
Uma fitinha pró chapéu
E ele também me há-de dar
Um lugarzinho no céu.
Olhei para o céu
Estava estrelado
Vi o Deus Menino
Em palhas deitado.
Em palhas deitado,
Em palhas estendido,
Filho duma rosa,
Dum cravo nascido!
- .
- Arre, burriquito,
Vamos a Belém,
A ver o Menino
Que a senhora tem;
Que a senhora tem,
Que a senhora adora
Arre burriquito,
Vamo-nos embora.
O Natal
- Popular (Madeira)
Em dezembro, vintecinco,
Meio da noite chegado,
Um anjo ia no ar
A dizer: « Elle é já nado..»
,
Pergunta lo boi: «Aonde? .
La mula pergunta: «Quem?
Canta lo gallo: «Jesus.»
Diz la ovelha:´ «Bethlem. »
Uns pastores, acordados,
Pra outros, que já dormiam.
- « Arrenego de vós, gente,»
Em altas vozes diziam:
« Nesta hor' em que dormis,
Um anjo aqui passou,
Que de Jesus, em Bethlem,
Lo natal annunciou. »
« O' gente, seria anjo,
Ou vinha de pau e sesta?
Algum cego. de cajado?
Algum CO\O, de muleta
iNem cajado, nem muleta,
Tão pouco de pau, nem sesta;
Vinha nos ares voando,
Por sol a nossa cabeça.»
Vamos, vamos, pastorinhos,
Vamos todos a Bethlem,
Vamos visitar Maria.
Seu bento filho tambem.»
Em dezembro, vintecinco.
A meia-noite nasceu
Um Deus que, pra nos salvar,
Seu corpo e sangue deu:
nem- n`um leito de cortinas
Foste nascer em Berthlem,
Sobre umas pobres palhinhas. »
Cantar dos Reis (Donões,
Montalegre)
Letra e música: popular: Trás-os-Montes
(reis, janeiras, canção de Natal)
Aqui vem as três rosinhas
quatro ou cinco ou seis
se o senhor nos dá licensa
vimos lhe cantar os reis
Os três reis do oriente
já chegaram a Belém
visitar o Deus Menino
que Nossa Senhora tem
O menino está no berço
coberto c'o cobertor
eos anjinhos estão cantando
louvado sej'o Senhor
O Senhor por ser Senhor
nasceu nos tristes palheiros
deixou cravos deixou rosas
deixou lindos travesseiros
também deixou a abelhinha
abelhinha com o seu mel
para fazer um docinho
ao divino Emanuel
Você diz que tem bom vinho
có có có
venha-nos dar de beber
rintintin
florin-tintin
traililairo
- O Menino Deus
- - Popular ( Madeira)
Dar parabens ti Maria.
« .Mas que lh' emos de levar,
A um Deus que tanto tem?»
Ainda que muito tenha,
Sempre gosta que lhe deem.»
- «Eu lhe lev`um cordeirinho,
Lo melhor qu' eu incontrei.»
-- « E eu lev' um requeijão.
Lo melhor qu'eu requeijei.»
-- «Pois tambem eu aqui levo,
Fofinhos, p'ra lh' off'reeer,
Bons merendeiras de leite;
Fava de mel, p'ra comer.»
- «Vamos ter c'os mais pastores,
Nã se percam no caminho;
Vamos todos, e depressa,
Adoral lo Deus Menino.»
-«Vinde tambem pastorinhas.
Vinde, cortei a Bethlem ;
Vinde visitar Maria,
Que divino filho tem,»
-«Esta noit' é sancta noite,
Ind`assim mesma, tão fria;
Vamos todos a Bethlem
Visitar Jesus, Maria.»
- « Ai, que formoso Menino;
Ai, que tanta graça tem;
Ai, que tanto se parece
Com sua Senhora.mãe!»
Terno de Reis
- Popular
(Açores)
(Açores)
I
Ó
de casa nobre gente
Acordais
e ouvireis
e ouvireis
Lá
das bandas do oriente
Ta
chegando o Santos Reis
II
O
Nosso Terno de Reis
É
uma tradição Divina
De
origem açoriana
No
folclore catarina
III
Aqui
estamos em vossa porta
De
baixo do seu beirado
Venha
nos abrir a porta
Se
tiver do seu agrado.
IV
Obrigado
Dono da casa
Pela
vossa acolhida
Pelo
vosso alimento
E
Por essa santa bebida.
V
Menino
Jesus nasceu
Viemos
anunciar
Com
o nosso terno de Reis
Pra
família se alegrar.
VI
O
nosso Terno de Reis
Agora
vai viajar
Pra
chegar em seu destino
Antes
do galo cantar
Natal dos simples
Letra e música: Zeca Afonso
(reis, janeiras, canção de Natal)
In: Cantares de Andarilho;
Vamos cantar as janeiras
Vamos cantar as janeiras
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas solteiras
Vamos cantar orvalhadas
Vamos cantar orvalhadas
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas casadas
Vira o vento e muda a sorte
Vira o vento e muda a sorte
Por aqueles olivais perdidos
Foi-se embora o vento norte
Muita neve cai na serra
Muita neve cai na serra
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra
Quem tem a candeia acesa
Quem tem a candeia acesa
Rabanadas pão e vinho novo
Matava a fome à pobreza
Já nos cansa esta lonjura
Já nos cansa esta lonjura
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem anda à noite à ventura
Natal
– Álvaro Feijó
Nasceu.
Foi numa cama de folhelho,
entre lençóis de estopa suja,
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe
pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos
caminhos
manadas de erva
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo
enroscado num cesto vindimeiro,
que não havia berço naquela
casa.
E ninguém conta a história
do menino
Que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroa de espinhos
mas coroa de baionetas,
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história
do menino.
Ninguém lhe vai chamar Salvador
do Mundo.
NATAL
- MIGUEL TORGA
Velho Menino-Deus que me vens
ver
Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram...
Agora, outras quimeras me tentaram
Em reinos onde tu não tens poder...
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer...
Vem, apesar de tudo, se queres
vir.
Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste a solidão...
Mas o brinquedo... quebra-o
no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho
E batia-lhe dentro um coração...
Miguel
Torga
Torga
NATAL
– Miguel Torga
Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.
Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina
Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.
MIGUEL TORGA, "Diário XII"
Poema de Natal
- Miguel Torga
Leio o teu nome
Na página da noite:
Menino Deus...
E fico a meditar
No milagre dobrado
De ser Deus e menino.
Em Deus não acredito.
Mas de ti como posso duvidar?
Todos os dias nascem
Meninos pobres em currais de gado.
Crianças que sâo ânsias alargadas
De horizontes pequenos.
Humanas alvoradas...
A divindade é o menos.
Miguel Torga
Versos de
Natal
Natal
-
Manuel Bandeira
Manuel Bandeira
“Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
penetrarias até o fundo desse homem
triste,
Descobririas o menino que sustenta esse
homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera
de Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos
atrás da porta.”
Canto de
Natal
Natal
–
Manuel Bandeira
Manuel Bandeira
O nosso menino
Nasceu em Belém.
Nasceu tão-somente
Para querer bem.
Nasceu sobre as palhas
O nosso menino.
Mas a mãe sabia
Que ele era divino.
Vem para sofrer
A morte na cruz,
O nosso menino.
Seu nome é Jesus.
Por nós ele aceita
O humano destino:
Louvemos a glória
De Jesus menino.
A poesia acima foi extraída da "Antologia Poética - Manuel
Bandeira", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2001, pág.
137.
Natal
– Vinícius De Moraes
– Vinícius De Moraes
De repente
o sol raiou
E o galo cocoricou:
— Cristo nasceu!
O boi, no campo perdido
Soltou um longo mugido:
— Aonde? Aonde?
o sol raiou
E o galo cocoricou:
— Cristo nasceu!
O boi, no campo perdido
Soltou um longo mugido:
— Aonde? Aonde?
Com seu balido tremido
Ligeiro diz o cordeiro:
— Em Belém! Em Belém!
Eis senão quando, num zurro
Se ouve a risada do burro:
— Foi sim que eu estava lá!
E o papagaio que é gira
Pôs-se a falar: — É mentira!
Os bichos de pena, em bando
Reclamaram protestando.
O pombal todo arrulhava:
— Cruz credo! Cruz credo!
Brava
A arara a gritar começa:
— Mentira! Arara. Ora essa!
— Cristo nasceu! canta o galo.
— Aonde? pergunta o boi.
— Num estábulo! — o cavalo
Contente rincha onde foi.
Bale o cordeiro também:
— Em Belém! Mé! Em Belém!
E os bichos todos pegaram
O papagaio caturra
E de raiva lhe aplicaram
Uma grandíssima surra.
CARTA DE NATAL A MURILO MENDES
- SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Querido Murilo: será mesmo possível
Que você este ano não chegue no Verão
Que seu telefonema não soe na manhã de Julho
Que não venha partilhar o vinho e o pão
Como eu só o via nessa quadra do ano
Não vejo a sua ausência dia-a-dia
Mas em tempo mais fundo que o quotidiano
Descubro a sua ausência devagar
Sem mesmo a ter ainda compreendido
Seria bom Murilo conversar
Neste dia confuso e dividido
Hoje escrevo porém para a Saudade
- Nome que diz permanência do perdido
Para ligar o eterno ao tempo ido
E em Murilo pensar com claridade -
E o poema vai em vez deste postal
Em que eu nesta quadra respondia
- Escrito mesmo na margem do jornal
Na baixa - entre as compras de Natal
Para ligar o eterno a este dia.
Lisboa, 22 de Dezembro de 1975
(1919-2004)
(in «Natal na Poesia Portuguesa»,
org. Luiz Forjaz Trigueiros,
Dinalivro, 1987)
Poema de
Natal
-
Vinicius de Moraes
Vinicius de Moraes
Para isso fomos
feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será
a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrêla a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrêla a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito
que dizer:
Uma canção sôbre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
que dizer:
Uma canção sôbre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso
fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.
fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.
Natal Africano
– Cabral do Nascimento
Não há pinheiros nem há
neve,
Nada do que é convencional,
Nada daquilo que se escreve
Ou que se diz... Mas é Natal.
Que ar abafado! A chuva banha
A terra, morna e vertical.
Plantas da flora mais estranha,
Aves da fauna tropical.
Nem luz, nem cores, nem lembranças
Da hora única e imortal.
Somente o riso das crianças
Que em toda a parte é sempre
igual.
Não há pastores nem ovelhas,
Nada do que é tradicional.
As orações, porém, são
velhas
E a noite é Noite de Natal.
Cabral do Nascimento
Ao
Menino Deus em metáfora de doce
– Jerónimo Baía
Romance
- Quem quer fruta doce?
- Mostre lá! Que é isso?
- É doce coberto;
É manjar divino.
- Vejamos o doce;
Compraremos todo,
Se for todo rico.
- Venha ao portal logo;
Verá que não minto,
Pois de várias sortes
É doce infinito.
- Desculpa, minha alma.
Mas ah! Que diviso?!
Envolto em mantilhas,
Um Infante lindo!
- Pois de que se admira,
Quando este Menino
É doce coberto,
É manjar divino?
- Diga o como é doce,
Que ignoro o prodígio.
- Não sabe o mistério?
Ora vá ouvindo:
Muito antes de Santa Ana,
Teve este doce princípio,
Porque já do Salvador
Se davam muitos indícios.
Mas na Anunciada dizem
Que houve mais expresso aviso,
E logo na Encarnação
Se entrou por modo divino.
Esteve pois na Esperança
Muitos tempos escondido;
Saiu da Madre de Deus,
depois às Claras foi visto.
Fazem dele estimação
As freiras com tal capricho,
Que apuram para este doce
Todos os cinco sentidos.
Afirmam que no Calvário
Terá seu termo finito,
Sendo que no Sacramento
Há-de ter novo artifício.
Que seja doce este Infante,
A razão o está pedindo,
Porque é certo que é morgado,
Sendo unigénito Filho!
Exposto ao rigor do tempo,
Quando tirita nuzinho,
Um caramelo parece
Pelo branco e pelo frio.
Tão doce é que, porque farte
Ao pecador mais faminto,
Será de pão com espécies,
Substancial doce divino.
É manjar tão soberano,
Regalo tão peregrino,
Que os espíritos levanta,
Tornando aos mortos vivos.
Tão delicioso bocado
Será de gosto infinito,
Manjar real, verdadeiro,
Manjar branco, parecido!
Que é manjar dos Anjos, dizem
Talentos mui fidedignos,
Por ser pão de ló, que aos
Anjos
Foi em figura oferecido
Jerónimo Baía
In A Poesia
Lírica Cultista e Conceptista
Lírica Cultista e Conceptista
Lisboa, Seara Nova, 1968
A Adoração dos Magos
– Fátima Maldonado
Aquela noite a três
foi como desenhar a maçarico
numa chapa de ferro
um vento fóssil, um vítreo
monograma,
o rasto ao exceder o voo de
uma carriça
cativo flutua no vidro de uma
jarra.
Suspensos percorriam na polpa
da vertigem
léguas sobre o abismo.
Pendentes do zinco da manhã
à espera do início
do seguinte espectáculo
dispersaram o sémen
nas chaminés da noite leprosa.
Nos terraços da luta percorreram
as danças mais funestas da
ternura.
Num combinar astuto de referências
abriram-se os portais
e despediram galopes penitentes
os animais libertos
das tecidas mansões.
O unicórnio branco depôs
sua cabeça
nos braços da senhora,
compadecida dama,
e lhe tocou fiando suas lãs
entre as unhas crivadas por
metralha.
Sinto-lhes o assédio,
em cada joelho poisam
um queixo armadilhado,
a barba já cresceu desde o
jantar.
«É a adoração dos magos»
- murmuras tu –
fincando na ravina os dedos
imanados
enquanto o tronco investe
a pele percorrida por venosas
nascentes.
Olho por sobre um ombro
e surpreendo a treva
ofendida esgueirar-se
entre os dedos da porta.
O noctívago galgo
devora a escuridão às cegas
no recinto.
Em breve a luz envolve
de opalinas unções as cabeleiras.
Iminentes desenham-se as saídas,
o croissant no prato, o garoto
no copo,
o revestir a pele doutros fatos
a tragédia jazente nos horários.
Aquela noite a três foi sem
remédio.
Fátima Maldonado
Os Presságios
Lisboa, Editorial
Presença, 1983
Presença, 1983
Loa
– Vitorino Nemésio
Meu Menino Jesus dos triguinhos
no prato,
Não enxugues a tua lágrima de vidro,
Não apagues a tua estrela de prata suspensa no quarto ainda morno,
Não deixes envelhecer os velhos
tios de retábulo
Ajoelhados em torno:
Deixa estar as palhinhas urinadas no estábulo,
Que a chuva cheira bem e o pão tufa no forno.
Doira, Menino Jesus, aquele milho amarelo
Que o Joaquim Pacheco secou na escuridão do seu muro,
E manda um navio de nevoeiro
Ao poeta que embarcou à noite no Funchal
Deixando o lenço de sua Mãe molhado no último adeus.
Anda, Menino Jesus, e não me queiras mal
Se eu te disser que assim é que te sinto Deus.
Manda o navio de nevoeiro
Pela primeira vaga que vires redonda e rebentada:
Tua mão outra vez a atira contra a noite,
Como se não tivesse batido nessa grande praia parada.
E deixa as minhas faltas à missa,
Esquece os pontos fracos da minha velha teologia,
E o orgulho, a razão, o materialismo passageiro...
Mandes tu pelo mar o navio de nevoeiro!
VITORINO NEMÉSIO
Soneto de
Natal
Natal
–
Machado de Assis
Machado de Assis
Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce
e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto... A folha
branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o
metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
Texto extraído do livro "Poesias Completas - Ocidentais",
1901, pág. s/nº.
Papai Noel
às Avessas
às Avessas
Carlos Drummond
de Andrade
de Andrade
Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro
que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando
outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu
aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa
do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava
os legumes.
Este poema foi publicado no livro
"Alguma Poesia", Editora Pindorama, em1930, primeiro livro
do autor. Texto extraído de "Nova Reunião", Livraria José
Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1983, pág. 24.
HISTÓRIA ANTIGA
- Miguel Torga
Era uma vez, lá na Judeia,
um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.
Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Miguel Torga
Antologia Poética
Coimbra, Ed. do Autor, 1981
Antologia Poética
Coimbra, Ed. do Autor, 1981
O Filho do
Homem
Homem
-
Vinicius de Moraes
Vinicius de Moraes
O mundo parou
A estrela morreu
No fundo da treva
O infante nasceu.
Nasceu num estábulo
Pequeno e singelo
Com boi e charrua
Com foice e martelo.
Ao lado do infante
O homem e a mulher
Uma tal Maria
Um José qualquer.
A noite o fez negro
Fogo o avermelhou
A aurora nascente
Todo o amarelou.
O dia o fez branco
Branco como a luz
À falta de um nome
Chamou-se Jesus.
Jesus pequenino
Filho natural
Ergue-te, menino
É triste o Natal.
Natal de 1947
O poema acima foi extraído do livro "Antologia Poética",
Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 215.
FALAVAM-ME DE AMOR
- Natália Correia
Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,
menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.
Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.
O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.
Natália
Correia
O Dilúvio e a Pomba
Lisboa, Publicações D. Quixote, 1979
Correia
O Dilúvio e a Pomba
Lisboa, Publicações D. Quixote, 1979
NATAL À BEIRA-RIO
- David Mourão Ferreira
É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho
da meta!
Cala-te, vento velho! É o
Natal que passa,
A trazer-me da água a infância
ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto
o rio.
Tão novos os meus Pais, tão
novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de
um navio
Que ficava, no cais, à noite
iluminado...
Ó noite de Natal, que travo
a maresia!
Depois fui não sei quem que
se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra
me envolvia
E quanto mais na terra fazia
o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora
conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus
nascia...
Serei dos que afinal, errando
em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar,
ou de Poesia?
David Mourão-Ferreira,
Obra Poética 1948-1988
Obra Poética 1948-1988
Lisboa, Editorial
Presença,
Presença,
ORAÇÃO DE NATAL
- - Estela Braga e Couto e Aníbal Raposo
- Oh Jesus Menino
Deus
- Se me ouves
lá dos céus
- Um presente
de Natal
- Venho pedir-te
em segredo
- Não quero
nenhum brinquedo
- Metido no
sapatinho
- Antes queria,
Deus menino
- Se não me
levas a mal:
- - Que o meu
pai que está doente
- Ficasse bom
de repente
- Da febre que
o tem em brasa
- É que a mãe,
pobre coitada,
- Anda tão
preocupada
- Com a saúde
do paizinho
- Porque é
ele quem, sozinho,
- Ganha o pão
da nossa casa.
- - Que o meu
irmão Joaquim
- Deixasse a
coisa ruim
- Que é andar
nas drogas duras.
- A seguir por
este andar
- Pouco tempo
vai durar...
- Se esta oração
é ouvida
- Dá-lhe um
sentido pr’á vida
- Olha, vê
lá se o curas
- - Que aparecesse
esta semana
- A minha gata
Silvana.
- Se morreu
envenenada
- Um conselho
aqui te dou
- Castiga quem
a matou
- Tenho o quintal
tão vazio
- E há já
um mês que não rio
- Por não brincar
com a danada.
- - Que por
obra e graça tua
- Os meninos
lá da rua
- Tenham sempre
que comer.
- É que dizem
que os mais grados
- Pagam pelos
seus pecados...
- Talvez seja,
que sei eu?
- Mas as crianças,
Deus meu...
- Olha, não
te vais esquecer...
- Se és o Deus
dos aflitos
- Faz com que
os meus periquitos
- Tenham uma
criaçãozinha
- A fêmea bem
põe o ovo
- Mas crias,
nada de novo...
- Bem sei que
peço demais
- Mas eu gosto
de animais
- Vê se dás
uma ajudinha...
- Já agora
vou mais fundo
- E te peço,
Paz no mundo
- Alegria e
muito Amor
- É coisa que
não existe
- Está toda
a gente tão triste...
- Dai-nos, Deus,
conselhos sábios
- Põe-nos sorrisos
nos lábios
- Faz esta graça
Senhor...
- Estela
Braga e Couto e Aníbal Raposo
- Dezembro
de 2003
João Miguel Fernandes Jorge
A abstracção não precisa
de mãe nem pai
nem tão pouco de tão tolo
infante
mas o natal de minha mãe é
ainda o meu natal
com restos de Beira Alta
ano após ano via surgir figura
nova nesse
presépio de vaca burro banda
de música
ribeiro com patos farrapos
de algodão muito
musgo percorrido por ovelhas
e pastores
multidão de gente judaizante
estremenha pela
mão de meu pai descendo de
montes contando
moedas azenhas movendo água
levada pela estrela
de Belém
um galo bate as asas um frade
está de acordo
com a nossa circuncisão galinhas
debicam milho
de mistura com um porco a que
minha avó juntava
sempre um gato para dar sorte
era preto
assim íamos todos naquela
figuração animada
até ao dia de Reis aí estão
um de joelhos outro em pé
e o rei preto vinha sentado
no
camelo. Era o mais bonito.
depois eram filhoses o acordar
de prenda no
sapato tudo tão real como
o abrir das lojas no dia
de feira
e eu ia ao Sanguinhal visitar
a minha prima que
tinha um cavalo debaixo do
quarto
subindo de vales descendo de
montes
acompanhando a banda do carvalhal
com ferrinhos
e roucas trompas o meu Natal
é ainda o Natal de
minha mãe com uns restos de
canela e Beira Alta.
João Miguel Fernandes
Jorge, Actus Tragicus
Jorge, Actus Tragicus
Lisboa, Editorial Presença,
O Menino
Negro Não Entrou Na Roda
Negro Não Entrou Na Roda
– Geraldo
Bessa Victor
Bessa Victor
O menino negro não entrou
na roda
das crianças brancas - as crianças brancas
que brincavam todas numa roda viva
de canções festivas , gargalhadas francas...
menino negro não entrou na roda.
E chegou o vento junto das crianças
- e bailou com elas e cantou com elas
as canções e danças das suaves brisas,
as canções e danças das brutais procelas.
O menino negro não entrou na roda.
Pássaros, em bando, voaram chilreando
sobre as cabecinhas lindas dos meninos
e pousaram todos em redor. Por fim,
bailaram seus vôos, cantando seus hinos...
O menino negro não entrou na roda.
"Venha cá, pretinho, venha cá brincar"
- disse um dos meninos com seu ar feliz.
A mamã, zelosa, logo fez reparo;
o menino branco já não quiz, não quiz...
o menino negro não entrou na roda.
O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas. Desolado, absorto,
ficou só, parado com olhar cego,
ficou só, calado com voz de morto.
Trilogia do Menino Negro
- Jorge Villa
Menino negro tem uns olhos
grandes
uns olhos grandes como a terra
inteira!
- Tudo quanto apetece se resume
na sombra da palmeira!
Na sombra da palmeira, com
brinquedos
e grinaldas que os troncos
lhe vão dando!
´- Menino negro é senhor
do mundo
e vai brincando, brincando
….
Menino negro cresceu. E deixou
a sombra da palmeira que foi
sua!
E crescendo foi homem. E sonhou
cada vez que no céu mudou
a lua!
Teve mulher e filhos. E ambições.
Foi trabalhar nas minas. Adoeceu
e voltou.
-
Que não cresceu ilusões
além da sombra amiga onde
nasceu!
Menino-homem-velho – e morreu.
- No céu uma vez mais mudou
a lua … -
A terra inteira é outra vez
sua!
A sombra da palmeira, com
brinquedos
e grinaldas que os troncos
lhe vão dando!
O menino que já não é menino
lá vai sonhando, sonhando
…
Quando um Homem Quiser
– Ary dos Santos
Música: Fernando Tordo
Letra: Ary dos Santos
Intérprete: Paulo de Carvalho
Tu que dormes a noite na calçada
de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão
E tu que dormes só no pesadelo
do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão
Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher
Tu que inventas ternura e brinquedos
para dar
Tu que inventas bonecas e combóios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão
E tu que vês na montra a tua
fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão
Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher
Natal
–
Amândeo César
(excerto)
Nasceu!
Numa garagem abandonada, coberta de chapa de zinco,
E num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.
Nossa Senhora e S. José tinham vindo pela estrada
Os pés no asfalto negro, onde circulavam carros de luxo:
Pedir boleia, pediram, mas ninguém os viu ou quis ver,
Ou escutar o gesto...
Iam todos apressados para a ceia da noite,
Desbragada como um conta-quilómetros
E cheia de neblina e de promessas.
Nasceu!
Num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.
O clarão dos holofotes chamou lá os vadios de todas as noites:
Os quarda-noturnos, os polícias de giro,
Os que não têm cama para dormir,
Os poetas e os fugidos à lei — todos! —
Todos os que naquela e nas outras noites
Não têm para onde ir, nem têm onde comer.
Foi, porém, o clarão dos holofotes gastos que os levou lá:
E viram, sobre os desperdícios sujos, num caixote velho,
O Redentor do mundo,
Aquecido pelos dez cavalos-vapor de um velho "Ford T"
Que, trabalhando, acordava a vida no arrabalde longínquo.
S. José e Nossa Senhora choravam:
Todos pediam no mundo a ressurreição do Cristo!
E Ele viera, Ele encarnara de novo
Através do ventre puríssimo da Virgem,
Sob a custódia lirial do descendente de David.
Os donos de carros de luxo cortavam o nevoeiro
Comprometidos pelas amantes caras que ficavam para trás;
As camionetas de transporte temeram a polícia das estradas
E os outros todos também não quiseram dar boleia
Ao Filho de Deus.
(…)
Mas os humildes de todo o mundo
Vieram e compreenderam
A mensagem daquela noite sem
par.
Amândio César
VIII - Num
Meio-Dia de Fim de Primavera (O Guardador de Rebanhos)
Meio-Dia de Fim de Primavera (O Guardador de Rebanhos)
- Alberto
Caeiro
Caeiro
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia
comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pelas estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.
..............................
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que
é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita
onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me
sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o
outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as
cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias
das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha
alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
..............................
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
..............................
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
BALADA DA NEVE
– Augusto Gil
Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...
Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...
E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
– e cai no meu coração.
Luar de Janeiro
O menino
da sua mãe
- Fernando Pessoa
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece
Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos
Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece")
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.
Esta Velha Angústia
-
Fernando Pessoa
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicômio
é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância
perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma
religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro
pintado!
Cancioneiro
e Prosa de Natal
http://www.rede-nonio.min-edu
http://www.nesos.net/imgdocs
http://www.apropucsp.org.br
http://www.releituras.com
- CENAS DO JARDIM
- - Victor Nogueira
- 1. Era um jardim
- geometricamente
desconfortável
artificial
No coreto
a banda tocava.
Além
caridosamente
alguém partilhava com os "jardineantes"
as goelas do transístor escancaradas
No banco
ao meu lado
uma matrona e uma gaiata conversam
banalmente,
"Puxa a mala um bocadinho mais para baixo.
Isso! Assim!
Para que te não vejam as pernas"
E eu sorrio-me
por entre a sisudez duma "Introdução à Vida Política"
Pobres e ridículas gaiatas!
Pobres e ridículas matronas!
- 2. Era um
miúdo esfarrapado
sujo
de rosto envelhecido,
Aproxima-se do guarda, mas o dinheiro não chega.
Mas o velho, que já terá sido criança, deixa-lo entrar.
O miúdo envelhecido corre,
Para,
Hesita!
Os olhos sorriem no rosto sujo,
Balancé? Carrocel? Escorrega? Ou avião?
Não poder ele desdobrar-se!
Corre, sobe, escorrega
o mundo é dele
Agarra-lo.
Sobe, desliza, corre, sobe, desliza
sobe; desliza, corre, sobe, desliza
contorce-se
"MÃE, OLHA ESTE MATULÃO SUJO! VAI-TE EMBORA!"
As avózinhas contorcem os lábios
num rictus de desprezo
os meninos apedrejam com a língua e crucificam com os lábios.
Ele hesita.
Baloiça, baloiça, baloiça!
Roda, roda, roda,
sobe, desliza, corre, sobe, tropeça, sobe, desliza, corre!
contorce-se, baloiça, roda
Olhos brilhantes cheios de felicidade!
Um velho num corpo de criança
pequena para a roupa suja
- esfarrapada!
As avózinhas contorcem os lábios num rictus de desprezo
Os meninos, esses apedrejam com a língua
e crucificam com os lábios
Velhas envelhecidas
Garotos moribundos
e uma criança num pequeno corpo de velho!
Évora, 1969 Fevereiro 24
1 comentário:
Olá :)
Aplausos quero dar
Para com este post rimar!
E quero também deixar
Um grande e gostoso beijo na ar!
Talvez nos encontremos por aí...
Beijos estrelados
de
Belisa
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