quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

José Malheiro Dias - Depois do Natal

* José Malheiro Dias

O Natal absorvia tudo. Passávamos dias inteiros ainda antes das férias a escolher materiais e a fazer decorações de Natal para toda a casa, a comprar papéis dourados e a cortar, colar e pintar estrelas, velas e anjinhos. Era preciso ir à serra de Sintra buscar musgo para o presépio, que levava um dia a montar. A árvore ocupava outro dia. Depois as listas de compras, de presentes e de doces, as encomendas especiais, o bolo-rei nesta pastelaria, as broas na outra, os fritos a uma senhora que fazia para fora, a procura pelas lojas, depois o périplo por casa daqueles que não iríamos ver no Natal mas a quem deixávamos dias antes as prendas para abrir na Consoada.

Não era possível imaginar como seria o mundo depois do Natal, nem pensar sequer que houvesse um mundo depois do Natal. Ainda menos considerar a possibilidade de o Natal não ser aquilo que esperávamos, de não oferecer tudo o que se desejava.

E, mesmo que a realidade frustrasse uma parte das expectativas, no ano seguinte elas renasciam, da mesma maneira que um jogador compulsivo aposta todas as suas esperanças no jogo seguinte, sem pensar por um segundo em todos os jogos que já perdeu. E era verdade que depois do Natal ainda havia a passagem do ano e, na minha família, depois do fim de ano ainda havia o Dia de Reis, com festa na véspera e mais presentes, ainda que desta vez pouco mais que simbólicos, que tornavam o regresso à vida de todos os dias um processo gradual, sem ressacas violentas.

Essa magia do Natal durou para além da minha infância. Até que houve um ano em que dei por mim num dia do início de Dezembro a pensar no que iria fazer depois do Natal e percebi que a magia tinha desaparecido. O Natal tinha deixado de ocupar o horizonte, tinha perdido a capacidade de lançar o seu manto diáfano de fantasia sobre o prosaico dia-a-dia. Os pozinhos dourados mágicos que as fadas lançavam em torvelinhos pelo ar e que tornavam o mundo um sítio maravilhoso e onde os milagres eram possíveis tinham desaparecido.

A suspension of disbelief que nos permite viver todas as aventuras e deixarmo-nos embalar por todas as fantasias tinha desaparecido. O Natal tinha passado a ser uma data no calendário – uma festa com coisas agradáveis, com prendas a dar e receber, com uns jantares especiais e com as pessoas a tentar ser mais simpáticas do que de costume, mas apenas uma data. Depois da qual todos voltaríamos a ser iguais ao que éramos antes, depois da qual o mundo voltaria a ser o que era antes, sem que a festa tivesse operado qualquer magia duradoura.


Antes disso, o Natal era mágico porque era transformador. Transformador como no Conto de Natal de Dickens, capaz de transformar as pessoas más em pessoas boas, capaz de transformar para melhor a vida das pessoas – não porque fosse apenas um dia agradável. Era especial porque permitia a esperança. A esperança de que nunca mais nenhuma rapariguinha dos fósforos morresse de frio. E, não possuindo esse poder, passou a ser irrelevante e até triste. Triste porque não dá prendas aos meninos pobres que se portam bem e que lhe escrevem cartas a pedir uma casa, uma família, uma camisola, livros para a escola, um emprego para o pai, uns sapatos, o fim da guerra.

Este ano o Natal não consegue ocupar todo o horizonte de ninguém, nem sequer o das crianças, porque elas sabem que este ano as coisas estão mais difíceis, vêem que os seus pais sorriem menos e adivinham que poucos dos seus desejos serão satisfeitos. Este Natal não consegue tapar a miséria do ano que vem a seguir. Este Natal e este fim de ano é apenas o preâmbulo de um ano onde os Ebenezer Scrooge não serão tocados pela magia do Natal, onde continuarão a explorar e a torturar os seus empregados e onde as crianças continuarão a morrer de frio.

Este Natal veio para nos mostrar que as coisas podem sempre piorar e que não há nenhuma justiça divina ou mágica que premeie os bons e castigue os maus. Este Natal veio para nos mostrar que a justiça não é algo que nos vá ser oferecido e que tem de ser arrebatada das mãos daqueles que a sequestram. E a única esperança que ele permite consiste em acreditar que haverá cada vez menos pessoas a pensar como escravos e a compreender que há, lá fora, um mundo a conquistar.

(jvmalheiros@gmail.com)
24 de Dezembro de 2013, 2:40

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