domingo, 6 de dezembro de 2020

Ferreira Fernandes - O caso vulgar na tenda à porta de São Bento

  Ferreira Fernandes
OPINIÃO

Já conhece o conceito do nosso restaurante?”, devia ter perguntado o empregado de mesa ao cliente Chicão, quando ele entrou na tenda.

6 de Dezembro de 2020, 7:20

No sopé da Assembleia da República montou-se uma tenda de aparentes pacatos insurretos. Nesta República que ainda não tem meio século, já ali houve pedreiros a sequestrar deputados, corporações insultando governos e até polícias ameaçaram galgar pela escadaria. Desta vez eram cozinheiros do movimento Sobreviver a Pão e Água, e com a barriga em greve de fome – bendito povo em que até os cozinheiros parecem ter dedo para as palavras. Parecem, mas será assim?

Já conhece o conceito do nosso restaurante?”, devia ter perguntado o empregado de mesa ao cliente Francisco Rodrigues dos Santos, o Chicão, quando ele entrou na tenda. Mas não havia empregado nem mesa, só a tenda. Sem a pergunta e sem reserva, o Chicão sentiu-se perdido. Para dizer a verdade, os cozinheiros também estavam perdidos, mas eles davam a impressão de não o sentir nem saber.

Para dizer outras verdades, os cozinheiros eram meia dúzia de famosos donos de restaurantes, com a presunção de serem os únicos a servir um drama nacional. De bom até então só tinham o título do tal menu sugestivo “A Pão e Água”, o que era mau. Chamava a atenção como uma boa tabuleta numa casa de maus repastos. A quantas falências já isso levou!

A tenda apresentava o cenário comum das insurreições. Havia a confusão igualitária das revoluções que ainda não foram avante. Os insurretos anónimos estavam por ali espalhados. Havia ainda o sublinhar do sacrifício, os cozinheiros derramavam-se pelas cadeiras, exaustos como o Remexido na serra algarvia, sem estratégia.

O cliente Chicão entrou e logo se revelou tenrinho. Pediu licença, sentou-se, juntou as palmas das mãos e meteu-as entre as pernas – não é alegoria, é a descrição factual (vejam o vídeo  https://www.youtube.com/watch?v=aNnylaqvCrA&feature=emb_title). Depois, lembrando-se que afinal de contas era líder de um partido antigo, ali ao lado representado na casa da democracia, disse: “O CDS…”

Logo da turba dos cozinheiros emergiu um mais igual que os outros, Ljubomir Stanisic, o cozinheiro a ferver: “Querido, posso pedir-te um favor? Se voltares a falar de partido, vou ter de pedir para saíres...” Disse-o em tom de banho-maria, é certo. Mas violento como um populista que foi acampar para a entrada da casa dos políticos, para falar com eles, e quis aboli-los, antes de falar com eles.


Ljubomir Stanisic, à esquerda, e Francisco Rodrigues dos Santos, à direita DR

Uma gentil chefe de sala levou Chicão para o empedrado da rua. Ser expulso de um dos restaurantes caros dos cozinheiros ali em luta já seria uma humilhação. De uma tendinha, então…

Talvez tudo pudesse explicar-se pela falta de pundonor de Chicão, um caso infeliz de tipo com alguma grimpa, mas sem mais. Ainda o outro dia, discursava ele no Funchal e foi filmado catatónico só por causa de ligeiro tremor de grau 5,3 da Escala de Richter. Calado e esbugalhado.

A história desta semana também podia contar-se como ironia com pitada cultural. O comunista alemão Bertolt Brecht, que passou a vida a dar ânimo aos proletários de todo o mundo, fez um poema em que convocou Alexandre da Macedónia, o Filipe da Armada Invencível, o Frederico II da Prússia e outros grandes vultos da História. E, a seguir a cada nome sonante, Brecht punha uma perguntinha que desenterrava os ausentes que há em cada arco de triunfo e na memória de cada feito. Por exemplo: “O jovem Alexandre conquistou as Índias./ Sozinho?”.

O poema chama-se Perguntas de um Operário Letrado e os dois versos que aqui me interessam são: “César venceu os gauleses./ Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?” Tungas! Os de baixo, sempre esquecidos…


Então, o incidente da tenda de São Bento, esta semana, quando um jovem líder político foi varrido da História e um cozinheiro elevado, não simplesmente a chef, mas a chefe, a porta-voz do drama de uma profissão inteira, podia ser invocado como suprema ironia. Podíamos imaginar o Brecht vingado, a levantar-se de punho erguido no pequeno cemitério de Berlim onde jaz… Mas essa versão é falsa e eu venho aqui apresentar melhor interpretação.

Em Saint-Denis, berço dos antigos reis franceses e arredores vermelhos de Paris, transformou-se um convento no museu de Paul Éluard, o maior poeta surrealista. Mais ou menos pela mesma altura (década de 1930, anos de todos os populismos) em que o alemão Brecht celebrou milhares de ajudantes de Júlio César na Gália, também o francês Éluard escreveu a frase: “É preciso retirar a César tudo o que não lhe pertence”.


Paul Éluard

Acontece, e isso não é incompatível (talvez só um pouco surreal), nesse museu, antigo convento, há uma reprodução do quadro de Rubens “O Imposto devido a César”, com Jesus ensinando o bíblico “dar a César o que é de César”. No que ficamos? No retirar (de Éluard), ou no pagar (de Jesus)?

Aproveitando o facto de o quadro estar por estes dias a ser restaurado em Saint-Denis, volto ao assunto desta crónica, a restauração que está nas ruas da amargura por cá (e também em Saint-Denis e Manhattan e Londres…, mas não nos dispersemos). E volto com a lição de Brecht e de Éluard, ambos certeiros sobre a necessidade de desnudar a injusta acumulação de fama e de proveito dos poderosos.

E junto essa lição à de Rubens e de Jesus que acautelam o que está estabelecido, porque os homens devem ser mudança mas também continuidade. Justiça e prudência, eis duas das ambições que mais nos fizeram avançar – e quanto mais fortes são quando se juntam!

Sobretudo volto a uma lição comum do quarteto que, receio, não foi tida em devida conta. Os quatro respeitaram as palavras, pintaram-nas bem. Sabemos o que qualquer deles – Brecht, Éluard, Rubens e Jesus – dizia ou pintava. E o que cada um queria dizer.


 O Imposto devido a César, de Rubens

O grave na história da tenda no sopé da Assembleia da República é o abandalhamento da palavra e a difusão desse nada. Porque não tendo a palavra clara, o populismo exprime-se na plenitude do seu nada ter para dizer. É Trump a tuítar com maiúsculas “GANHEI E À GRANDE” um totoloto que ele não jogou e a lista da Santa Casa desmente. É, à porta do Parlamento, mandar-se um político calar a sua condição de político.

Eu sei que apesar da manifesta fraqueza dos populistas com a palavra, há quem diga que eles ganham força com as palavras que os atacam. Pois eu digo: gentes de pouca fé na palavra. Ou têm é preguiça.

Jornalista

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