domingo, 27 de dezembro de 2020

José Gameiro - Saudades do Mário


* José Gameiro

DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA

Não sou, por natureza, desconfiado, mas não fiquei tranquilo. De manhã perguntei-te

Conheci-te numa daquelas idas à Figueira da Foz. Os meus pais habituaram-nos desde pequeninos a ir passar umas semanas à praia. Dizem-me, não me lembro, que fui lá fazer um ano. O ar do mar fazia-nos bem, abria-nos o apetite, outros tempos, outras crenças. O meu Pai só estava connosco poucos dias, nesse tempo as férias não abundavam e ele tinha um pequeno comércio, que tinha de fechar a porta, quando se ausentava. Morreu cedo, esgotado. Criou, com a minha Mãe, seis filhos. Ficou-me o “vício” dessa praia. Quando fui estudar para Coimbra, enfim, quando fui para a Universidade, estudar era um eufemismo, sempre que podia e tinha uns escudos, ia para a Figueira. Nunca me consegui desligar daquele mar, daquela água gelada e, depois de ti, quando te conheci. Já lá vão uns anos. Lembro-me como se fosse hoje. Um acaso, que esteve quase para não acontecer, fez encontrar-te. Nem me apetecia muito sair, as noitadas anteriores tinham dado cabo de mim, mas aos 20 anos parece que a energia nunca se esgota e, sabes bem, não tínhamos aditivos, era só a vontade de viver e não perder uma única pitada da vida. Ia com um grupo de malta a passear na Marginal, quando tu passaste com uma amiga. Tentavas acender um cigarro, a nortada era forte. Dei-te lume e disse uma daquelas frases, para ver se pega... — Venham connosco, podem precisar de lume mais vezes. Naquele tempo ainda não havia o conceito de assédio, se fosse hoje poderia ter acabado mal... O namoro durou dois anos, até casarmos. Naquele tempo a malta casava, era a única hipótese de viver juntos, sobretudo se fosse necessária alguma ajuda parental. Não foi fácil convencer-te a irmos para o interior, uma pequena vila da Beira, um forno no verão, um gelo no inverno. Mas era lá que podia ter clientela como advogado e para ti seria fácil ser professora. E assim foi. Os nossos primeiros anos foram fáceis. Até achavas graça conhecer gente diferente, habituada à dureza daquele clima, mas leal e com uma qualidade rara nas grandes urbes, a solidariedade. Nunca ficámos sem apoio nos momentos difíceis, fosse ficarem umas horas com as crianças, fosse qualquer outro apoio. Adoravas os miúdos, teus alunos, sentia-te feliz, tínhamos uma vida fácil, éramos um casal de sucesso. No verão íamos sempre para a Figueira, passar duas semanas. Tu revias as tuas amigas, eu recordava os tempos de estudante, com os colegas que continuavam a ser adeptos daquela praia. Quando voltávamos, sentia-te sempre um bocado triste, mas as rotinas faziam-te voltar ao que eras. Num desses regressos continuavas triste, diferente, arisca, irritada, sem paciência para mim e para os filhos. Chegou o inverno e a situação agravou-se. Pensei que uma saída nas férias de Natal te faria bem. Fomos à neve com os miúdos. Ficavas no quarto a ler todo o dia, mal falavas comigo. Uma noite acordei contigo a falar. Como sempre acontece nos sonhos, não consegui perceber nada do que dizias, mas uma palavra percebi claramente, Mário. Não sou, por natureza, desconfiado, mas não fiquei tranquilo. De manhã perguntei-te. Garantiste que não conhecias nenhum Mário, que eu estava a delirar. Sosseguei, mas não por muito tempo. Já na nossa terrinha voltaste a falar de noite e o gajo voltou a ser nomeado. Disse-te, basta, ou me explicas o que se passa na tua vida ou acabamos mal. Voltaste a insistir que não tinhas ninguém, que me amavas com a mesma força do início. Passei por cima do exagero e decidi utilizar a técnica, que tinha visto numa série de televisão.

Debaixo da nossa cama coloquei um gravador, ativado pela voz, com um software inovador, que decifra a salada de palavras. Arrastarei a culpa até ao final dos meus dias. Sou uma má pessoa, nunca me perdoarei ter duvidado de ti. Tantas vezes me tinhas falado dele, abriste-te comigo, confessaste que tinhas muitas saudades, confiaste em mim. Só um tipo do interior profundo, que não é capaz de perceber as saudades do MAR.

https://expresso.pt/opiniao/2020-12-24-Saudades-do-Mario


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