segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Mário Cláudio - A chávena de chá

* Mário Cláudio
28.09.2020 às 10h00


Columbano Bordalo Pinheiro – "A Chávena de Chá", 1898, Museu do Chiado


Lisboa tem dias assim, vizinhos do solstício de Inverno, em que as cores esmaecem até se apagarem, e o frio me empalidece as mãos. Só as camélias entendem essa quadra do ano, quando o esforço de as ver através da vidraça embaciada é um desafio que não apetece aceitar. São momentos em que me assalta uma ânsia de anulação, sentimento vulgar nas estéreis, vivendo no ocaso dos seus propósitos, e submetidas a uma ideia inatingível.

Passo entre veludos, norteada pela luz do samovar, e da chávena de chá. Restrinjo-me ao cenário que me consentem, alumiada na face mais perfeita do rosto. Alguém tosse lá dentro, confiando na minha longínqua vigilância, sereno por saber que lhe classifiquei a correspondência, lhe arrumei as pastas, e lhe lavei os pincéis e as broxas. Um fio de prata esgueira-se de uma gravura antiga, e vem debruar a chávena que levanto para acolher o chá.

Mantenho-me alerta, não se dê o caso de precisarem dos meus serviços, destruindo-me num sopro o silêncio, e o descanso que o acompanha, Nada ouço, a não ser as passadinhas do gato no corredor, o recrudescimento das bátegas de chuva, e um estalido da credência. Desando a torneirita do samovar, e fazendo tremer um pouco a chávena sobre o pires, permito que ela se encha até meio. Bebê-lo-ei sem açúcar, e a ínfimos goles, debicando a intervalos a torrada com um mínimo de manteiga, tirada do prato à minha esquerda.

O cenário aquece-me na tranquilidade da penumbra, e descaio na dormência como num nirvana intemporal. O aguaceiro suspendeu-se, cedendo lugar a uma poalha que enegrece à medida que se extingue a tarde. Há um hiato na permanência do jardim, favorável ao surto de certos organismos rastejantes e moles, as lesmas, os caracóis, mais raramente uma salamandra.

Rodo o pescoço, furtando-me à atenção de quem me observa, e que jamais identificarei. Mulher envergonhada da sua falta de brilho, aprendi a subtrair-me a confrontos, não por temor de outrem, mas por pânico do meu reflexo nas pupilas de um anónimo qualquer.

Regresso ao samovar, e deixo que escorra o bastante para segunda meia chávena de chá. A medo, não se prove que os fantasmas existem, estendo-a a quem, há infinito tempo, não repara em mim. Fico presa do longo silvo da máquina, e aguardo que o sono se apodere da minha desolação.

https://expresso.pt/opiniao/2020-09-28-A-chavena-de-cha

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