sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Mário Cláudio - Lázaro Leitão Aranha

* MÁRIO CLÁUDIO

OPINIÃO - 
18.09.2020 às 10h25

Vieira Lusitano – Lázaro Leitão Aranha, c. 1747, Museu da Segurança Social -  DR

Oartista que contratei para me pintar, e que anda em voga, compreenderia desde o início que o sedentarismo me governa como um tirano, e que sem ele jamais eu teria chegado aonde cheguei. Pedi ao mordomo que o guiasse na visita à minha casa da Junqueira, edifício de que muitos troçam por lhes parecer um pavilhão de férias fora do sítio, mas que outros admiram por se lhes afigurar precursor condigno da Real Barraca, mais tarde levantada para resistir à repetição do grande terramoto. O homem regressou na consciência do meu poderio, armou o cavalete, e lançou-se a produzir a obra que tenho agora diante dos olhos.

O artista que contratei para me pintar, e que anda em voga, compreenderia desde o início que o sedentarismo me governa como um tirano, e que sem ele jamais eu teria chegado aonde cheguei. Pedi ao mordomo que o guiasse na visita à minha casa da Junqueira, edifício de que muitos troçam por lhes parecer um pavilhão de férias fora do sítio, mas que outros admiram por se lhes afigurar precursor condigno da Real Barraca, mais tarde levantada para resistir à repetição do grande terramoto. O homem regressou na consciência do meu poderio, armou o cavalete, e lançou-se a produzir a obra que tenho agora diante dos olhos.

Nela compareço como soberbo dignitário, mas com a dose de naturalidade bastante a alimentar o diálogo com uma pessoa qualquer. É provável que quem aí me observar descubra sobre mim tanto quanto eu, e que o pintor maravilhosamente adivinharia. Cavalheiro atarracado, fui construindo a minha envergadura de lente de Cânones, amante da acumulação de objectos preciosos, ou simplesmente pitorescos, refastelado em almofadas por mor do hemorroidal que atenaza os bulímicos da minha espécie. Metido em sedas e damascos, apoio a mão esquerda no bastão áulico, e com a direita seguro o barrete clerical. Assim me comprazo com a imagem de mim, réplica lusíada, posto que com século e meio de atraso, do romano cardeal Barberini.

Fiquei muito bem, e ao abrigo da peruca sem pó, na qual uns quantos reconheceriam a minha aristocracia modesta, estrumada pelos campos do Marco de Canavezes que me viram nascer. Repoltreado hoje na bergère, e na atmosfera rosa-chá, delicio-me com o aroma da murta do jardinete, a penetrar pela porta entreaberta. Em tal estado poderei acolher as viúvas do Recolhimento de Nossa Senhora dos Anjos, fundado por mim, e em exclusivo destinado a damas de subida condição. Apaparicam-me com os coscorões da sua lavra, e há sempre uma mais jovem que, fitando-me com atenção por cima do sinal falso que lhe pica a face, me canta uma modinha em que se trata de violas, corações e praias ao luar.

O mestre ocultou-me as pernas onde reside o meu martírio maior, consequência da ureia que se encarniça contra mim, nas pesadas vestimentas que escolheu para me representar. Ninguém lhe recomendou que me beneficiasse, mas eis que, velho como eu, intuiria ele que nada deverá oferecer-se de premonitório a tutti quanti nos desejam a morte.

Destituído de amásias em odor de santidade, e à imagem e semelhança de El-Rei, deslocar-me-ei em breve para o leito que estremecerá sob o meu peso, e adormecerei de imediato, dispensando-me de prestar a Deus contas pelo dia que se extinguiu. Gracilmente colorido, permaneço entretanto no salão, tão imóvel, e tão silencioso, que até os ratos se atrevem a vir banquetear-se com as migalhas dos coscorões.

https://expresso.pt/opiniao/2020-09-18-Lazaro-Leitao-Aranha


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