Adriano Moreira morreu este domingo. Tinha 100 anos (1922 / 2022)
A nova geração de historiadores olha para Adriano Moreira com distância e com reserva. Quis mudar o Estado Novo por dentro ou apenas suavizar o regime colonial?
* Bárbara Reis
23 de Outubro de 2022
“Quando eu morrer, vão ler”, disse muitas vezes Adriano Moreira aos filhos. O professor, político e ministro do Ultramar no Estado Novo referia-se a Uma simples carta, um texto que escreveu em Abril de 1974.
“O meu pai dizia sempre isso:
‘Vão ler.’ Eu li-o muitas vezes ao longo dos anos. É um ensaio sobre a
pobreza”, disse ao PÚBLICO Isabel Moreira, filha e deputada do PS, no Verão,
quando o pai fez 100 anos.
A Carta abre o seu livro
de memórias, A Espuma do Tempo — Memórias do tempo de vésperas (Edições
Almedina, 2008), e começa assim: “Talvez não haja muito que contar, meus
filhos, porque não são muitas as coisas que aconteceram que valha a pena reter
e transmitir.”
Não foi bem assim. Na
autobiografia, Moreira conta 460 páginas de “coisas”. Uma delas é a de que
gostava de ser enterrado no cemitério de Grijó de Vale Benfeito, em
Trás-os-Montes, onde nasceu.
Em 1974, quando tinha 52 anos,
escreveu — na Carta — que lhe parecia “intolerável” o “afastamento” da
terra onde nascera e onde estão enterrados os avós maternos. “Fomos criados no
amor à terra, o que não tem apenas um valor simbólico.” Fisicamente seremos
terra, diz, “solidários no pó como na vida”. O avô Valentim Alves,
“anticlerical por tradição e católico por convencimento”, e o primeiro homem
que Moreira viu morrer, resistiu à pobreza e à morte de cinco dos nove filhos
como “uma das rochas da serra”.
Agora que morreu, aos 100 anos e
dois meses, poderá não ser como quis e ele sabia-o: “Os meus filhos obrigam-me
a ter âncora noutro lugar”, lamenta na Carta. Os pormenores do funeral
continuam incompletos — sabe-se apenas que o velório é esta segunda-feira, no
Mosteiro dos Jerónimos, a partir das 20h, e que haverá uma missa às 12h, no
mesmo local, e que o enterro será uma cerimónia privada, desconhecendo-se se
será em Lisboa ou em Trás-os-Montes.
Portugal das “jeiras”,
“rebusco” e “galelo”
Dizer que Adriano Moreira nasceu
noutra época é redundante. Basta pensar que no dia em que nasceu, Portugal
“entusiasmava-se com o centenário da independência do Brasil” e que acabámos de
celebrar o bicentenário.
Adriano José Alves Moreira nasceu
em 1922 numa aldeia marcada pela pobreza, onde não havia “proletários” ou
“trabalhadores”, mas “pobres”, diz nas memórias, como os avós maternos,
agricultores, e os avós paternos, moleiros.
Uma aldeia onde os mais velhos
falavam da I Guerra Mundial, mas também, ainda, “do martírio das invasões
francesas, que não se tinha minorado na memória das gerações”, e à qual se
chegava, ido de Lisboa, depois de uma viagem de 30 horas, incluindo a parte
final que era feita de burro, entre a estação de comboios e a povoação.
Um tempo em que se usava a
expressão “colheita do Senhor” para quando as crianças morriam — e morriam
muito —, em que, no mundo rural, se dizia “regar a leira”, “pagar uma jeira com
outra jeira”, se falava do “rebusco” (apanha do que fica no campo depois da
colheita), do “galelo” (cachos que ficam na videira depois da vindima), em que
a aguardente era “mata-bicho” com supostas “virtudes preventivas de doenças
sérias”, o interior estava cheio de “viúvas de homens vivos” e, na igreja, os
homens e as mulheres ficavam separados durante a missa.
Na sua aldeia, “não se conhecia a
humildade”. “A justiça civil tinha pouca ocasião de intervir, salvo nos casos
de furto” — conta nas memórias —, pois “a violência física e a morte de homem
eram frequentemente problemas familiares”, “não se denunciava o agressor, se
calhava fazia-se justiça privada, muitas vezes com a colaboração da aldeia,
quando o culpado era de fora”.
“Não gosto do padre”
O avô materno não ia à missa.
Andava já no liceu quando, finalmente, se atreveu a perguntar-lhe porquê:
— Não gosto do padre. E não é por
ter dois filhos, que ninguém tem nada com isso. É porque empresta dinheiro a
juros aos pobres.
O pai, que em Lisboa se tornou
polícia, não tinha sapatos apresentáveis para ir fazer o exame da instrução
primária à vila e foi com as botas emprestadas de um soldado, cheias de papel
para não lhe caírem dos pés. Foi também na aldeia transmontana onde nasceu que
uma tia o ensinou a ler e a escrever pela Cartilha de João de Deus antes
da idade de ir para a escola.
Em 1923, os pais, António e
Leopoldina, mudaram-se para Lisboa com o filho bebé. Viam-se como “emigrantes
que vinham do norte” e o pai foi para uma das carreiras abertas para os pobres
da província — a PSP. António Moreira reformou-se como subchefe ajudante na
Administração do Porto de Lisboa. Contou muitas vezes — e muitos viram — que
andava sempre com a fotografia do pai fardado de polícia no bolso do casaco e
que, com frequência, a mostrava aos polícias com que se cruzava. Todos
sublinham a raridade destes pais que, vindos da aldeia, quiseram muito que os
filhos fossem para a universidade. A irmã de Moreira, Olívia Moreira, que tem
90 anos, licenciou-se em Medicina nos anos 1950 — e é também sempre sublinhado
que é militante do PCP e os dois foram sempre íntimos.
Entre Trás-os-Montes e Trás-os-Montes
O livro de memórias vai do beco
da Rua Estevam Pinto, em Campolide, Lisboa, onde morava com os pais, a Grijó de
Vale Benfeito, em Trás-os-Montes, onde nasceu e passava as férias de Verão,
“meses dos mais decisivos da minha vida”.
Moreira chama “emigrantes” às
pessoas que iam para Lisboa de outros lugares em Portugal — “os meus pais
emigraram não tinha dois anos”. Na capital, as pessoas viviam numa “espécie de
colónias interiores”, organizadas por regiões. Por isso, Moreira cresceu em
Campolide, mas “intimamente amarrado à aldeia transmontana” onde nasceu, conta
a filha Isabel. “Há uma frase na Carta de que gosto muito: é quando o
meu pai diz que ‘viajava entre Trás-os-Montes e Trás-os-Montes’.”
“A vida de um estudante pobre não
era fácil nesse tempo.” Moreira andou no Liceu Passos Manuel e no Liceu do
Carmo, para onde ia e voltava a pé para casa. O mesmo na Faculdade de Direito.
Ficou amigo para a vida de colegas que entraram na faculdade ao mesmo tempo, em
1939: Manuel Gonçalves Pereira, Fernando Pedroso Rodrigues, João Rosas e
Vicente Loff.
Dar com uma mãe, tirar com a
outra
Em 1990, o historiador Manuel
Loff — sobrinho de Vicente Loff — entrevistou-o para a sua tese de mestrado. A
conversa entre o jovem estudante e o político reformado inclui os dois anos de
Moreira no Ministério do Ultramar, a legislação reformista que introduziu, mal
chegou, em 1961, e a “política de assimilação”, como se dizia na altura. “A
minha política de assimilação era total!”, exclama Moreira. “Quer dizer: toda a
gente tem os mesmos direitos políticos! Essa é que foi a inovação.”
A certa altura, Loff pergunta:
— Com os preâmbulos aos seis
decretos que saem em Setembro de 1961, queria realmente fazer uma crítica à
política ultramarina anterior?
A resposta:
— É evidente! Isso que lá está
escrito não pode deixar de ser visto como uma crítica! Por exemplo: é evidente
que existia no território português uma prática de trabalho compelido.
Exactamente o contrário do que diziam as leis e as convenções internacionais.
Era evidente que isso não podia continuar!
Sessenta anos depois, esta ideia
continua a ser debatida. Os seis decretos do ministro Moreira — aprovados a 6
de Setembro, dia dos seus anos — foram reformistas. Mas até que ponto? Do mesmo
modo, a pergunta do jovem historiador — e o seu “realmente” — está viva.
Historiadores como Diogo Ramada Curto, Bernardo Pinto Cruz e Pedro Aires Oliveira, que têm estudado e escrito sobre este
período e sobre as reformas relativas às colónias introduzidas em 1961, olham
com distância, reservas e crítica para a acção de Moreira como ministro do
Ultramar.
De tudo o que Moreira fez — como presidente do CDS, presidente do Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas, deputado e conselheiro de Estado —, é sempre nos
menos de dois anos como ministro do Ultramar que as conversas, entrevistas e
investigações académicas se centram. “Adriano Moreira passou o resto da vida a
gerir a memória daqueles dois anos no Ministério do Ultramar”, diz Ramada Curto
ao PÚBLICO.
Na entrevista a Loff, que tem 28
páginas — e que foi dada quando Moreira tinha 68 anos —, o ex-ministro de
António de Oliveira Salazar defende, citando a hoje controversa tese do
lusotropicalismo proposta pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, que quis
uma “interpenetração de culturas” e a “igual dignidade das culturas” entre
colonizadores e colonizados. “Não é transformar a população de África em
europeus”, explica. Com a nova legislação de 1961, “deixa de haver
diferenciação em matéria de direitos políticos que resultam do estatuto
cultural das pessoas, ou étnico ou religioso”.
Moreira entrou no Governo de
Salazar em 1959, como subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, e
avançou com as novas leis pouco depois de subir a ministro. De entre os
célebres seis decretos, está a abolição
do Estatuto dos Indígenas e a criação do Código do Trabalho
Rural. Na sua leitura, a nova legislação defendia uma “autonomia progressiva e
irreversível” das colónias e foi “uma etapa inovadora” — “não tenho dúvidas
nenhumas sobre isso!”, diz na entrevista de 1990. As mudanças que propôs para o
então “Ultramar” receberam “muita, muita oposição”, “como é natural”. “Não era
a corrente de pensamento do Governo. Era uma corrente de pensamento de pessoas
que se interessavam por estes problema.
Ao mesmo tempo que abolia o
Estatuto dos Indígenas, no entanto, criava a lei das regedorias, sublinha
Ramada Curto, que publicou ensaios sobre o tema. A lei das regedorias “fixava
as populações nativas e colocava os chefes nativos na posição de colaboradores
do Estado colonial, criando aldeamentos e, na prática, campos de concentração,
uma vez que as pessoas não podiam sair sem a autorização do regedor, que era o
chefe indígena”, diz o historiador. “Tira com uma mão e põe com a outra. Há um
excesso de empolamento do lusotropicalismo e da ideia de reforma.”
Sobre Moreira conta-se sempre a história de como durou pouco no Governo e de como saiu. Foi a despacho com Salazar e o ditador não gostou das suas propostas. Ao que Moreira disse: “Não muda de política, muda de ministro.” É uma história que não está fechada.
https://www.publico.pt/2022/10/23/politica/noticia/adriano-moreira-2025080
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