sexta-feira, 7 de outubro de 2022

António Guerreiro - A política da leitura


* António Guerreiro 

O mais conhecido imperativo da leitura, que ao longo de quase dois séculos garantiu o prestígio do livro e lhe conferiu o valor de instrumento essencial da socialização da cultura e da criação de um espaço público racional, é aquele formulado por Kant, quando respondeu, em 1784, à pergunta que lhe foi feita por uma publicação mensal de Berlim. “O que é o Iluminismo?”. Na sua resposta, Kant definia o Iluminismo como a “saída do estado de menoridade”, tornada possível através da leitura, isto é, através da formação de uma comunidade de leitores que, eles e só eles, estariam aptos ao livre exercício público da razão. Ainda hoje não podemos dizer que este ideal kantiano esteja completamente extinto. Mas já não tem a mesma força de outrora.

A leitura era, por definição, a leitura de livros. No nosso tempo, a alfabetização universalizou-se, a leitura tornou-se uma competência generalizada, mas o monopólio do livro e do texto impresso já não existe. Quem foi acompanhando esta progressiva perda de exclusividade move-se ainda entre dois mundos e é levado constantemente a fazer comparações. E o mais certo é não ter sequer consciência de como a leitura de um livro é, hoje, para muita gente, um acto anacrónico, anti-democrático, sem qualquer força de atracção para quem se habituou a tudo o que é interactivo.

Num livro recente, Pouvoirs de la lecture. De Platon au livre électronique, o filósofo e musicólogo francês Peter Szendy, professor numa universidade norte-americana, começa por se referir a esse imperativo da leitura e conta como se sentiu espantado por uma série de decisões judiciais que prescreviam a leitura como pena a cumprir pelo réu. A primeira história que ele conta, leu-a no Courrier international em Julho de 2009 e tinha como título Pior do que a prisão, a leitura. Tratava-se aí da condenação de um cidadão turco, condenado por um tribunal do seu país a quinze dias de prisão, uma pena comutada em obrigação de ler uma hora e meia por dia, sob vigilância policial, durante alguns meses.

Quando um jornal local perguntou ao indivíduo sentenciado como é que ele sentiu a sua entrada, pela primeira vez, na biblioteca, ele descreveu a pena como um castigo atroz: “No início era terrível. Tinha a impressão de que me torturavam e de que todos os habitantes da cidade me observavam e se riam de mim”. O jornalista quis saber que livros leu e se os leu verdadeiramente. Resposta: “Comecei por um livro sobre os escritores turcos. Li também a biografia de Atatürk. Eram livros volumosos. Levei um mês inteiro a lê-los. Na verdade, fazia de conta, a única coisa que fazia era virar as páginas. Mas quando me disseram que o juiz me interrogaria sobre o conteúdo, comecei a ler verdadeiramente. Não desejo isto a ninguém, nem mesmo ao pior inimigo”.

Perante este testemunho espantoso, Peter Szendy confessa que não tinha nenhum meio para verificar se o relato era verdadeiro, mas alguns anos depois leu duas outras histórias semelhantes que ilustravam também formas de penalização através do livros: uma no Guardian, que contava que um juiz do Estado de Virginia tinha condenado uns adolescentes, que vandalizaram túmulos inscrevendo neles a cruz gamada, a ler 35 livros, de autores como Hannah Arendt e Elie Wiesel; outra, no Corriere della Sera, que relatava um caso que envolvia prostituição e violência. Neste caso, o réu foi sentenciado a indemnizar a vítima através de um conjunto de livros escritos por mulheres.

A outra face dos imperativos da leitura é o da interdição de ler certos livros, a história da censura. Uma e outra desempenham papéis complementares e solidários neste imperativo categórico que Peter Szendi encontra logo em Platão. Quem hoje é induzido a reflectir sobre o livro e a leitura deverá saber que ninguém se pode eximir a uma política da leitura, por mais inócuo que nos pareça o acto de ler.

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