* Carlos Matos Gomes,
in Medium.com, 20/10/2022
Dos delegados da propaganda aos
missionários — dos jornalistas aos historiadores
Da ciência às mezinhas
Amedicina começou por ser um conjunto de práticas de
senso comum: uso de determinadas substâncias associadas a melhorias, de ações
de tipo mágico-religioso. Muitas doenças eram atribuídas a humores, a ações de
agentes maléficos, de mafarricos, de invejosos, de hereges, de filhos do diabo.
A epilepsia, por exemplo era fruto de um demónio que se infiltrava no ser
humano. Mas a medicina passou a ser uma ciência quando utilizou o diagnóstico
para explicar as doenças e procurar um remédio. O diagnóstico é um processo
analítico para chegar a uma conclusão. Vamos ao médico para receber uma síntese
baseada em elementos científicos, que incluem habitualmente técnicas e exames
complementares.
Eu confio nesta abordagem científica das situações que
dizem respeito à minha saúde. Já o mesmo não posso dizer das que me são
apresentados nos estúdios de televisão por muitas personagens subtituladas com
pomposos graus académicos e que dali, do púlpito televisivo, proferem
diagnósticos sobre a guerra da Ucrânia. Tem sido um festival de historiadores e
politólogos, além de generalistas de largo espetro para quem a ciência é uma
prática esotérica, que segue a mesma metodologia da apreciação futebolística.
Ainda não perdi a esperança de ver um desses artistas repetir a façanha da
cabra dos antigos saltimbancos de feira, que se equilibrava num pé de cadeira e
dali balia aos espetadores!
Eu não aceitaria que um médico explicasse a minha
situação clinica com base nos humores carregados, do olhar de quem me quer mal,
que as dores nas cruzes se deviam ao desejo de subir aos céus, que um médico me
aconselhasse a ter cuidado ao sair de casa porque um vizinho estava com más
intenções. Que referisse uma doença como o “bicho” que tomou conta dos meus
ossos.
Ora, o que tenho ouvido quanto a explicações de
historiadores e comentadores a propósito da guerra da Ucrânia é do tipo dos
curandeiros, dos exorcistas e dos pregadores da inquisição. Historiadores e
diplomados em ciência política, professores e professoras, doutores e doutoras
nas mais diversas escolas apresentam como razão para a guerra na Ucrânia os
maus humores de Putin! Ou a sua paranoia! Ou um mal inominável. Ou os traumas da
infância! Há quem tenha mandado uma imagem de uma deusa local (sempre referida
como a nossa Senhora de Fátima, imagem peregrina número 2) para a Ucrânia a fim
de vencer e converter a velha Rússia e houve reportagens e atestados de
historiadores e comentadores a garantir que a virgem, as rezas e as cerimónias
sortiam efeito contra invasões dos bárbaros!
Há mestres na matéria da História e da Ciência
política que, depois do que o saber europeu já parecia ter estabelecido quanto
aos interesses como base de toda a ação política, incluindo a guerra, reduzem a
história, a política e a guerra às taras de um homem, aos seus humores, aos
seus demónios.
Há “historiadores” e “cientistas políticos” para quem,
aplicando o seu método de diagnóstico dos acontecimentos do passado,
explicariam as cruzadas com o verdadeiro desespero místico do papa Urbano
quanto à sorte do Túmulo de Cristo em Jerusalém, vazio há mais de mil anos e
não, como é corrente, ao facto da cristandade cuja sede fora estabelecida em
Roma já se sentir suficientemente forte para ocupar a região do Médio Oriente,
decisiva para o comércio. E também explicariam a independência de Portugal com
o aparecimento de uma cruz nos céus de Ourique, a Afonso Henriques. E
explicariam a perseguição aos judeus não pelo seu poderio financeiro, mas pelo
corte de cabelo ou a circuncisão.
Utilizar termos tão científicos como: criminoso,
sanguinário, desapiedado, genocida, novo czar, filho desta ou daquela,
paranoico, a um dirigente político — no caso Putin — é reduzir a análise da
história aos impropérios que devem ter começado quando o Caim matou o irmão
Abel. É explicar uma fase da história das civilizações do Mediterrâneo com a
metodologia das revistas cor-de-rosa, dos amores de Cleópatra com Marco
António, por exemplo; é explicar a reconquista cristã da península com os
amores de uma princesa árabe por um príncipe cristão, ou ao contrário!
Ouvir estes historiadores e estes cientistas políticos
explicarem a guerra da Ucrânia pela maldade de um homem é acreditar que a
história contemporânea de Portugal pode ser entendida com a leitura da primeira
página do jornal Correio da Manhã, a história de Inglaterra com as primeiras
páginas dos vários tabloides, que a história do Mundo é a dos noticiários da
FOX e da CNN americanas, ou entender a história como os videojogos da Marvel,
do homem dragão!
A guerra da Ucrânia já tinha desnudado os jornalistas,
transformados em meros delegados de propaganda, também despiu dos mantos da
credibilidade científica alguns (bastantes) historiadores e politólogos, que em
vez da utilização de um método tão neutro quanto possível para obter uma
conclusão racional preferiram os seus preconceitos e uma linguagem de vidente
ou de pregador, ou até de condutor ofendido no seu direito à prioridade num
cruzamento.
A história, a sua interpretação, os seus interesses,
os seus atores não são um enredo de super-heróis da banda desenhada. Mas é essa
a versão que nos está a ser vendida!
Há historiadores e politólogos que abordam a história
da guerra da Ucrânia com o argumento cientifico de um biólogo que explicasse o
ataque de um leão a uma gazela como fruto da maldade do leão, e não à sua
necessidade, enquanto carnívoro, de caçar.
https://estatuadesal.com/2022/10/20/a-guerra-da-ucrania-nao-e-um-videojogo/
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