sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Carlos Matos Gomes - A guerra da Ucrânia não é um videojogo!

* Carlos Matos Gomes, 

in Medium.com, 20/10/2022

Dos delegados da propaganda aos missionários — dos jornalistas aos historiadores

Da ciência às mezinhas


Amedicina começou por ser um conjunto de práticas de senso comum: uso de determinadas substâncias associadas a melhorias, de ações de tipo mágico-religioso. Muitas doenças eram atribuídas a humores, a ações de agentes maléficos, de mafarricos, de invejosos, de hereges, de filhos do diabo. A epilepsia, por exemplo era fruto de um demónio que se infiltrava no ser humano. Mas a medicina passou a ser uma ciência quando utilizou o diagnóstico para explicar as doenças e procurar um remédio. O diagnóstico é um processo analítico para chegar a uma conclusão. Vamos ao médico para receber uma síntese baseada em elementos científicos, que incluem habitualmente técnicas e exames complementares.

Eu confio nesta abordagem científica das situações que dizem respeito à minha saúde. Já o mesmo não posso dizer das que me são apresentados nos estúdios de televisão por muitas personagens subtituladas com pomposos graus académicos e que dali, do púlpito televisivo, proferem diagnósticos sobre a guerra da Ucrânia. Tem sido um festival de historiadores e politólogos, além de generalistas de largo espetro para quem a ciência é uma prática esotérica, que segue a mesma metodologia da apreciação futebolística. Ainda não perdi a esperança de ver um desses artistas repetir a façanha da cabra dos antigos saltimbancos de feira, que se equilibrava num pé de cadeira e dali balia aos espetadores!

Eu não aceitaria que um médico explicasse a minha situação clinica com base nos humores carregados, do olhar de quem me quer mal, que as dores nas cruzes se deviam ao desejo de subir aos céus, que um médico me aconselhasse a ter cuidado ao sair de casa porque um vizinho estava com más intenções. Que referisse uma doença como o “bicho” que tomou conta dos meus ossos.

Ora, o que tenho ouvido quanto a explicações de historiadores e comentadores a propósito da guerra da Ucrânia é do tipo dos curandeiros, dos exorcistas e dos pregadores da inquisição. Historiadores e diplomados em ciência política, professores e professoras, doutores e doutoras nas mais diversas escolas apresentam como razão para a guerra na Ucrânia os maus humores de Putin! Ou a sua paranoia! Ou um mal inominável. Ou os traumas da infância! Há quem tenha mandado uma imagem de uma deusa local (sempre referida como a nossa Senhora de Fátima, imagem peregrina número 2) para a Ucrânia a fim de vencer e converter a velha Rússia e houve reportagens e atestados de historiadores e comentadores a garantir que a virgem, as rezas e as cerimónias sortiam efeito contra invasões dos bárbaros!

Há mestres na matéria da História e da Ciência política que, depois do que o saber europeu já parecia ter estabelecido quanto aos interesses como base de toda a ação política, incluindo a guerra, reduzem a história, a política e a guerra às taras de um homem, aos seus humores, aos seus demónios.

Há “historiadores” e “cientistas políticos” para quem, aplicando o seu método de diagnóstico dos acontecimentos do passado, explicariam as cruzadas com o verdadeiro desespero místico do papa Urbano quanto à sorte do Túmulo de Cristo em Jerusalém, vazio há mais de mil anos e não, como é corrente, ao facto da cristandade cuja sede fora estabelecida em Roma já se sentir suficientemente forte para ocupar a região do Médio Oriente, decisiva para o comércio. E também explicariam a independência de Portugal com o aparecimento de uma cruz nos céus de Ourique, a Afonso Henriques. E explicariam a perseguição aos judeus não pelo seu poderio financeiro, mas pelo corte de cabelo ou a circuncisão.

Utilizar termos tão científicos como: criminoso, sanguinário, desapiedado, genocida, novo czar, filho desta ou daquela, paranoico, a um dirigente político — no caso Putin — é reduzir a análise da história aos impropérios que devem ter começado quando o Caim matou o irmão Abel. É explicar uma fase da história das civilizações do Mediterrâneo com a metodologia das revistas cor-de-rosa, dos amores de Cleópatra com Marco António, por exemplo; é explicar a reconquista cristã da península com os amores de uma princesa árabe por um príncipe cristão, ou ao contrário!

Ouvir estes historiadores e estes cientistas políticos explicarem a guerra da Ucrânia pela maldade de um homem é acreditar que a história contemporânea de Portugal pode ser entendida com a leitura da primeira página do jornal Correio da Manhã, a história de Inglaterra com as primeiras páginas dos vários tabloides, que a história do Mundo é a dos noticiários da FOX e da CNN americanas, ou entender a história como os videojogos da Marvel, do homem dragão!

A guerra da Ucrânia já tinha desnudado os jornalistas, transformados em meros delegados de propaganda, também despiu dos mantos da credibilidade científica alguns (bastantes) historiadores e politólogos, que em vez da utilização de um método tão neutro quanto possível para obter uma conclusão racional preferiram os seus preconceitos e uma linguagem de vidente ou de pregador, ou até de condutor ofendido no seu direito à prioridade num cruzamento.

A história, a sua interpretação, os seus interesses, os seus atores não são um enredo de super-heróis da banda desenhada. Mas é essa a versão que nos está a ser vendida!

Há historiadores e politólogos que abordam a história da guerra da Ucrânia com o argumento cientifico de um biólogo que explicasse o ataque de um leão a uma gazela como fruto da maldade do leão, e não à sua necessidade, enquanto carnívoro, de caçar.

https://estatuadesal.com/2022/10/20/a-guerra-da-ucrania-nao-e-um-videojogo/

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