* Luís Reis Torgal
Numa obra compilada pelo historiador, prova-se que os tentáculos da polícia portuguesa iam às colónias e passavam o Atlântico para vigiar a actividade dos exilados.
O título da obra parte de uma referência irónica, a uma entrevista de António Ferro a António de Oliveira Salazar no início dos anos 30 do século passado. Contudo, Brandos Costumes, o Estado Novo e os Intelectuais, coordenado por Luís Reis Torgal, desfaz esta visão. A ditadura tinha polícia política, prisões sem culpa formada, censura, tribunais plenários especiais, interrogatórios, as matracas da força de choque da Legião Portuguesa, torturas e informadores visando as oposições. Havia falsas eleições das quais saía sempre vitorioso o partido único nas suas duas versões — União Nacional e Acção Nacional Popular —, o sindicalismo livre era reprimido naquele Estado de corporações e aos funcionários públicos exigido um juramento de fidelidade ao regime. “Activo repúdio ao comunismo e a todas as ideias subversivas”, proclamava.
As prisões eram várias e, algumas, coexistiram no tempo: do Aljube ao Campo do Tarrafal, em Cabo Verde; da ilha de Ataúro, em Timor, ao forte de São Sebastião, em Angra do Heroísmo, nos Açores; da fortaleza de Peniche ao forte de Caxias. A polícia teve várias declinações de cosmética mantendo o essencial da sua função. Em 1933, nasceu a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), sucedeu-lhe a partir de 1945 a Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), para terminar na Direcção-Geral de Segurança, assim baptizada por Marcelo Caetano, que caiu com o 25 de Abril de 1974.
“É uma referência irónica, a ditadura não foi branda”, avança, ao PÚBLICO, o coordenador que reúne investigações suas e de outros seis estudiosos — Heloísa Paulo, Julião Soares Sousa, Luís Filipe Torgal, Paulo Marques da Silva, Renato Nunes e Vítor Neto.
“A violência, o processo directo e constante da ditadura fascista não são aplicáveis, por exemplo, ao nosso meio, não se adaptam à brandura dos nossos costumes”, respondera com paternalismo Salazar a António Ferro, dando origem ao mito de uma lusa benignidade do regime de excepção. Ou seja, não há lugar para revisionismos, branqueamentos ou negacionismos.
“A ditadura não foi branda, defendo que o regime foi um fascismo à portuguesa, se utilizarmos a palavra totalitarismo não estamos errados e não há totalitarismos brandos”, acentua Luís Reis Torgal. “Claro que a PIDE não era infalível, nem podia ser, uma coisa é a vigilância, outra a prisão, mas os pides observavam tudo ou, pelo menos, tentavam”, refere.
“O início deste projecto data dos anos 90 do século passado, quando comecei a trabalhar com alunos sobre os arquivos da PIDE”, explica. “Agora, foi pegar em artigos publicados, em sínteses de doutoramento, em livros pouco lidos”, prossegue o professor da Universidade de Coimbra e membro da Academia Portuguesa de História.
Dos dois lados do Atlântico
No entanto, no volume há espaço para novidades: são três. Se era conhecida a militância comunista e a história da repressão do Estado Novo a Soeiro Pereira Gomes, também Miguel Torga e Jorge de Sena sofreram as vicissitudes da vigilância da polícia política. Este último, do outro lado do Atlântico, no exílio brasileiro, através da articulação da PIDE com o Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Brasil, e da presença de enviados especiais da polícia política portuguesa. O Brasil tinha tradição de terra de exílio das oposições, desde o advento do Estado Novo, sujeitas a vigilância. O que foi determinante para que Jorge de Sena partisse para os Estados Unidos.
O historiador Luís Reis Torgal coordena a obra Brandos Costumes, o Estado Novo e os Intelectuais
Nos relatórios dos arquivos da PIDE, Miguel Torga constava como “escritor desafecto com ideias avançadas” e Fernando Namora estava “sob vigilância”. Aquilino Ribeiro também estava na mira. Fundador da Seara Nova, exilado em França pelo seu envolvimento na revolta de 1927, aderiu à frente oposicionista do Movimento Unitário Democrático (MUD) e teve um processo-crime pela edição de Quando os Lobos Uivam.
O republicano Tomás da Fonseca, um dos mais tenazes escritores anticlericais do século XX português, foi classificado pela polícia política como “radical e perigoso” e “raivoso anti-situacionista”. Esta classificação teve consequências, pela sua expulsão da Escola do Magistério Público de Coimbra e na proibição pela censura de 17 dos seus livros. Ferreira de Castro, outro “desafecto ao regime” no crivo da polícia política, não teve nenhum livro censurado nem foi preso, o que Luís Reis Torgal justifica pelo seu prestigio internacional.
Na selecção dos estudos de 12 escritores, “meramente simbólica” como assinala o coordenador, destaque para Natália Correia, que, ainda antes de ser processada pela direcção literária das Novas Cartas Portuguesas, de Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, um dos episódios do ocaso da ditadura, teve censurada a sua Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica.
Outros dois intelectuais acompanhados pela PIDE aparecem nesta obra, ambos residentes na Casa dos Estudantes do Império, Amílcar Cabral e Agostinho Neto. Do dirigente guineense, agrónomo, nada consta nos arquivos, apesar da sua actividade nacionalista. Quanto ao médico e primeiro Presidente de Angola, o seu envolvimento em acções políticas, como o abaixo-assinado a Craveiro Lopes para que Portugal abandonasse a NATO, o apoio à campanha presidencial de Norton de Matos e a sua adesão ao Movimento Nacional Democrático levaram-no às prisões do Aljube e de Caxias.
30 de Outubro de 2022
Público 2022 10 29
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