* Carmo Afonso
Acreditamos na emergência climática? Sim. Estamos dispostos a mudar a nossa vida por causa dela? Não. A atitude perante o descalabro ambiental é absolutamente autodestrutiva.
Ainda pensei que fossem Campbell, as sopas de tomate usadas pelas duas ativistas climáticas, na sexta-feira, no National Gallery em Londres. Poderia ser um ataque da Arte Pop a Van Gogh. Mas não; eram Heinz. O vídeo ficou viral em minutos. Milhares de pessoas expuseram a sua revolta e indignação perante a tentativa de destruição da pintura, “Girassóis”, avaliada em 86 milhões de euros (montante que ouvimos repetidamente).
As ativistas foram duramente criticadas pela sua ação e não sabemos ao certo se sabiam que o quadro estava protegido ou se pretenderam de facto fazer estragos. Ações semelhantes visaram outras obras de arte e é sabido que todos os activistas estavam cientes de que estavam protegidas e que pretendiam apenas chamar a atenção para a causa climática. Há uma forte possibilidade de também ter sido o caso aqui.
“O que vale mais, a arte ou a vida?”
Esta foi a pergunta formulada pelo movimento a que pertencem e que deveria ser respondida. Na visão do Just Stop Oil, as pessoas valorizam mais a arte e foi isso que as duas activistas tentaram demonstrar. Nesse aspecto, a ação foi um sucesso absoluto. Se tivessem atacado uma pessoa, em vez de um quadro de Van Gogh, esse ataque não teria tanta repercussão.
Têm dúvidas?
Em abril deste ano um ativista climático imolou-se em frente ao Supremo Tribunal, em Washington, e morreu. Chamava-se Wynn Bruce, tinha 50 anos e protestava contra a destruição do planeta. A notícia não mereceu destaque. Talvez poucos se lembrem, ou sequer saibam, que aconteceu. Claro que obras de arte são mais valorizadas que vidas humanas.
Mas não era esse o sentido da pergunta das ativistas. Falavam da vida no planeta e na vida das pessoas na globalidade e era o seu valor que comparavam com o da arte. Mas, também neste sentido, têm razão. A ameaça de dano de uma obra de arte tem mais impacto do que a perspectiva de abismo que os cientistas apontam como sendo a direção que seguimos.
i-video
Activistas do Just Stop Oil atiraram sopa aos Girassóis de Van Gogh e depois colaram-se à parede. A pintura não sofreu estragos. REUTERS,JOANA GONÇALVES
Podemos dizer que danificar uma obra de arte, ou mesmo simular esse dano, não é a forma adequada para fazer passar a mensagem da emergência climática. O que é certo é que ainda ninguém descobriu qual é a fórmula certa para nos sensibilizar para o problema.
Acreditamos na emergência climática? Sim. Estamos dispostos a mudar a nossa vida por causa dela? Não. A atitude perante o descalabro ambiental é absolutamente autodestrutiva. Não vale a pena ir aos exemplos. Sabemos todos que o nosso comodismo egoísta e de curto alcance prevalece sobre a disciplina e o bom senso.
As ativistas tinham mesmo razão. As reações que desencadearam demonstraram-no amplamente. Não queremos ouvir o que têm para dizer e até pode dar-se o caso de serem sacos de vento, como tantos que há por aí, mas não é essa a razão para não as queremos ouvir. Fomos os clássicos velhos de espírito: sentimos muita estima pelo quadro de Van Gogh, que ainda por cima é tão valioso, mas muito pouco pelo próprio planeta. Reagimos em barda, e como cães de Pavlov, à imagem da sopa de tomate derramada na pintura, mas somos incapazes de – mesmo depois de saber que está intacta – perder uns minutos a pensar sobre o que aquelas duas raparigas queriam dizer.
Há outro aspecto importante aqui: é que ninguém gosta de fazer figura de parvo. E estas ativistas também provocaram isso. A generalidade das pessoas que partilharam o vídeo, e que manifestaram as suas críticas à ação das duas jovens, não sabia de todo que o quadro estava protegido. Todos se precipitaram a elaborar relambórios sobre a perda inestimável, a importância da arte e a gravidade do crime. Para nada. A obra estava protegida, como costumam todas estar. As pessoas podem perdoar muitas coisas, mas não que as ponham a fazer figuras destas. Também por isso, as jovens não caíram nas boas graças da opinião pública.
Um ato, que parecia ser radical, foi uma partida. Radical foi Van Gogh quando cortou a própria orelha, radical foi Wynn Bruce e radical é o que a comunidade científica nos diz sobre o futuro da humanidade e do planeta.
As ativistas foram detidas, mas, vamos lá ver, não é que tenham tentado fugir. Pelo contrário, colaram-se à cena do crime. Nem aí se pode encontrar a sua derrota. Ter-lhes-á corrido tudo de feição.
Estragaram-se duas sopas de tomate e as pessoas ficaram muito zangadas. O ativismo climático não marcou pontos junto da opinião pública. Se o objectivo fosse esse, teria falhado. Mas a obra está a salvo, as pessoas zangadas é que não.
Advogada
17 de Outubro de 2022
https://www.publico.pt/2022/10/17/opiniao/opiniao/estragaramse-duas-sopas-tomate-2024262
Sem comentários:
Enviar um comentário