quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Aquilino Ribeiro no Guia de Portugal


Aquilino Ribeiro, in Guia de Portugal
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Vila cubista chamaram a Olhão, e , de facto, a vol d'oiseau, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludíbrio dos olhos afeitos à ordem objectiva das três dimensões. De um prédio para o outro as açoteias e fachadas imbricam-se, acavalam-se, sobrepõem-se, desarticulam-se, anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma Babel juncando um campo raso. E todavia, deste mar revolto de planos e desta fanfarra endiabrada de branco, filtra-se uma sensação de pureza, de banho auroral, como rescende o perfume dum canteiro de açucenas. E dá vontade de ali ficar, à vista da ria, dum azul ideal de iluminura, entre o céu duma diafaneidade vaporosa, onde mal se aguentam nuvens brancas, e aquele tablado branco, escapo à imaginação mais desmedida.
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É com o sol - e o sol é o xerife sempre presente desta terra que, sem a Nossa Senhora do Rosário, padroeira, íamos dizer sarracena - que é preciso ver Olhão do alto da sua torre. Do moinho do Levante ao «Mundo Novo», onde a telharia fresca de Marselha põe uma barra sanguínea, rola e flameja a alterosa procela de branco. Um zimbório vermelho, que emerge e sobe no ar como balão de arraial, a cúpula da Soledade, incerta se cobre igreja se mesquita, o vão negro das frestas e até o rasgão oblongo das ruas liquefazem-se no dilúvio de alvaiade.
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O próprio areal da ria aparece marchetado de branco, das mil placas deixadas pela água da baixa-mar. E por cima da selva de mastros, que povoam a pequena angra azul, à espalda das esfumadas ilhas da Armona e da Culatra, longa esta e à flor das águas como um enorme cetáceo adormecido, lá onde céu e mar se confundem, tudo é uma toalha láctea, irisada dum leve, levíssimo matiz de oiro.
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Que se queiram repousar os olhos - volvem-se costas àquela África que já foi chão de Portugal. Lá está ao norte, na quebreira da luz, lilás e inefável, como aos pés o Senhor dos Passos na Capela da Soledade, o cerro de São Miguel. De premeio, uma paisagem quieta de amendoeiras, abertas para o céu como cocares, de figueirinhas torturadas, vai pinchando corcovas e vales pequeninos. O pinhal de Marim corta os horizontes de Espanha com sua tolda altiva, verde-negra. Casais claros pontuam as veigas, como pombas brancas tresmalhadas. À outra banda, até os visos de Santo António do Alto, abarca-se o mesmo panorama de bíblica doçura, para lá da meia dúzia de ciprestes desconsolados do cemitério, dos prédios novos do «Mundo Novo», e duma casa completamente azul, a meio das relvas, dum azul bárbaro e vanglorioso. E por sobre tudo, ao longe e ao perto, dulcificando, aquele céu de estrema meridional, tão leve que dir-se-ia beber-se dum hausto, tão branco que dá ideia de que, como anilina fluida, a sua brancura se pega aos dedos.

1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

É sempre um encanto ler ou reler as descrições quase pictóricas de Aquilino; lê-se e vê-se ao mesmo tempo, sem a imagem presente e um milhão de sensações saídas do texto nos avassala.

Obrigada

Maria Mamede