sexta-feira, 4 de junho de 2010

A Encomendação das Almas de João Aguiar

Letras & Letras



Recensões


A Encomendação das Almas de João Aguiar
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A Encomendação das Almas é um livro de certo modo diferente daqueles que João Aguiar até agora tem escrito. Diferente mais no estilo e na trama narrativa do que propriamente nas ideias e no imaginário veiculados. Há uma continuidade renovada, não uma ruptura.
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O primeiro capítulo remete para dois dos romances de Vergílio Ferreira: Para Sempre e Em Nome da Terra. No primeiro, a personagem central é um velho bibliotecário reformado que regressa à velha casa onde nascera, no meio da serra, longe da família e da civilização. Lá aguarda a morte, envolto em recordações e rodeado pela paisagem agreste e natural da serra. No segundo, a personagem central é também um velho, desta vez juiz reformado, que a família abandona num asilo. O Gonçalo Nuno da Encomendação das Almas partilha das características das duas personagens de Vergílio Ferreira: por um lado a família que quer ver-se livre dele internando-o num lar, por outro a sua decisão de a abandonar e ir viver sozinho para a velha casa. É provável que o João Aguiar não tenha lido os dois livros referidos. No entanto, é curiosa a semelhança das situações narradas.
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A história de um velho e de um jovem que se juntam em situações peculiares é um topoi da literatura. De todas as que poderia citar, vem-me de imediato a história de Wang-Fô e do seu discípulo Ling de Marguerite Yourcenar. Wang-Fô, prisioneiro do imperador, pinta o mar, um barco e um barqueiro (o seu discípulo que tinha sido decapitado) e escapa-se através daquilo que pintou submergindo o palácio e afogando os cortesãos. O Zé da Pinta e Gonçalo Nuno, analogicamente, escapam-se dos seus perseguidores (família, sociedade...) transformando-se em Seculares das Nuvens e desencadeando uma violenta tempestade.
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As obras do João Aguiar poderiam delimitar-se grosso modo em três constantes temáticas: o romance de feição histórica (onde se poderiam agrupar A Voz dos Deuses, O Trono do Altíssimo, Os Comedores de Pérolas e A Hora de Sertório), o romance alegórico de pendor utópico (O Homem sem Nome e alguns contos de O Canto dos Fantasmas) e o romance fantástico de pendor etnográfico (A Encomendação das Almas). Todavia, todas as obras do autor partilham mais ou menos destas constantes e é isso que leva o leitor atento a identificar em cada uma delas a pena do mesmo escritor.
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A temática campestre foi largamente tratada na literatura portuguesa. Vejam-se os trovadores, alguns poetas palacianos, Camões e os seus herdeiros. Mas é interessante verificar que foi no século XVII, em pleno Barroco e em plena ascensão da Inquisição, que os poetas que viviam na corte deixam de glosar assuntos religiosos, filosóficos e palacianos, para se dedicarem a intermináveis desabafos amorosos de pastores. Verifica-se, e é engraçado que poucos tenham ainda tratado este assunto, que, à medida que a Inquisição cimenta o seu poder nas grandes cidades (Lisboa e Évora), os intelectuais portugueses, ou saem para Espanha, Brasil ou Holanda, ou se refugiam no campo a meditarem no crescimento dos cachos de uvas. Paralelamente, em pleno final do século XX, verificamos que uma boa parte dos autores portugueses situa a acção dos seus romances no campo (nos poetas já nem se fala). Quer dizer, à medida que a vida nas cidades se torna descaracterizada e descaracterizadora, os escritores, conscientemente ou não, reflectem nas suas obras o seu descontentamento pela vida moderna e propõem um regresso às origens. Essas origens, claro, estão no campo, na serra, neste pedaço de pedra que é Portugal (como erroneamente dizia o Torga).
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Na Encomendação das Almas, Gonçalo Nuno, já velho, farto da família, do negócio e da própria cidade que o queriam condenar a um hospício, que é o mesmo que enterrá-lo, bate o pé e refugia-se na aldeia. É numa velha casa, entre a biblioteca, a janela onde olha o céu e a cozinha que decide viver o tempo que lhe falta. Há uma renúncia. Como o Santo Antão que deixou tudo e foi para o deserto. Um velho vulgar nunca faria isto. Quando muito, deixava-se meter no asilo como um cordeiro. Gonçalo é um homem invulgar. Não por mijar nas calças (o João Aguiar aqui soube pintar a personagem com muita graça), mas pelo desprezo que tinha pelas coisas que para os outros eram importantíssimas. E entrou no jogo do Zé da Pinta. Não chegamos a saber se realmente ele acreditou que se transformaria num secular das nuvens depois de ser triturado. Mas uma coisa poderemos aventar: que ele estará agora em qualquer lado a rir-se das nossas preocupações e deste palavreado.
O estilo deste romance de João Aguiar é, em relação aos seus romances anteriores, menos ingénuo, mais apimentado (um pouco à maneira, talvez, de certa prosa de Eça de Queirós) e altamente irónico. O autor não tem contemplações quando decide malhar na sociedade portuguesa actual, descaracterizada e fútil, quer a nível dos executivos, políticos e afins, quer a nível das camadas mais baixas da população. 
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As obras de João Aguiar têm um conteúdo profundamente religioso. Não no sentido cristão. Mas no sentido original da palavra: a relação do humano com o desconhecido e o sagrado, relação esta inerente a todos os homens, mesmo que andem agora um pouco esquecidos dela. Até mesmo em Os Comedores de Pérolas, a sua primeira obra de ambiente contemporâneo, isso se nota.
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As superstições, os mitos funcionam na cabeça de Zé da Pinta como verdades indiscutíveis, corroboradas pelas explicações de Gonçalo Nuno que, por sua vez, se informara na velha biblioteca do Conde de Sadorninho (de Saturnino < Saturno, deus do tempo e das sementeiras).
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A propósito de Sadorninho (corruptela de Saturninus e mantido na Península Ibérica pela devoção a São Saturnino), procedi a algumas consultas hagiológicas: Jorge Campos Tavares, no seu Dicionário de Santos, publicado pela Lello em 1990, diz que São Saturnino, festejado a 29 de Novembro, foi «Apóstolo de Toulouse e seu primeiro bispo. Tendo sido levado a sacrificar aos deuses pelo governador romano, recusou-se a incensá-los. Foi amarrado a um touro que ia ser sacrificado e levado de rastos pelo animal que em correria o arrastou pelas escadas do templo causando-lhe a morte. O seu atributo é por isso um touro bravo.» Todavia, este São Saturnino não é o mesmo que vem no hagiológio do padre José Leite. Aqui São Saturnino é um velho cristão oriundo de Cartago, preso e condenado a carregar sacos de areia para as novas termas que Diocleciano mandou construir. Porque, enquanto carregava os pesadíssimos sacos, rezava, os verdugos decidiram prendê-lo e decapitaram-no depois de constatarem que ele teimava em não querer sacrificar aos deuses (cf. José Leite, Santos de cada dia, vol. III, Braga, Editorial A.O., 1985, pp. 356-357).
José Leon Machado, Fevereiro de 1996


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