* adolfo casais monteiro
Há dentro de mim um vazio que cresce,
como o crepúsculo comendo a pouco e pouco a terra.
Não sei o que se desmorona cada vez mais depressa
dentro de mim.
Não sei que ondas vão e vêm varrendo este mundo que fui,
alargando cada vez mais o espaço interior para outra coisa,
que não é nada aquela plenitude sonhada
dentro de mim.
De repente estou longe de tudo,
esquecido do sabor das coisas mais amadas,
com náuseas do que mais outrora amei
dentro de mim.
Dentro de mim... Este estribilho canta qualquer oculta praia
de oculto mundo. Qualquer sinal há nele, que não sei entender.
Dentro de mim, Senhor, dentro de mim quem terá morrido?
Vem nestas três palavras um dobre a finados
- dentro de mim, dentro de mim -
sobre alguém que ainda não sei que deixei de ser,
sobre aquele que finjo existir, talvez por piedade
- por mim? por quem?
-Mas o outro,
esse que já sou mesmo sem minha licença,
o outro que a vida pôs dentro de mim sem eu ter dado conta,
o outro, Senhor! - que fará ele de tudo o que não sei abandonar
dentro de mim?
Ao outro - quem o fará vencer
dentro de mim?
Adolfo Casais Monteiro
Poesias Completas
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
domingo, 28 de dezembro de 2014
sidónio muralha - natal
* Sidónio Muralha
Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
Em letras grandes e pretas,
Traz versos e historietas
E desenhos bonitinhos,
E traz retratos também
Dois bodos, bodos e bodos,
Em casa de gente bem.
Hoje é dia de Natal.
Mas quando será de todos?
In “Obras Completas do Poeta”
Universitária Editora
Sidónio Muralha
1920 – 1982
Etiquetas:
Natal,
Poesia,
Sidónio Muralha
sábado, 27 de dezembro de 2014
David Mourão-Ferreira - Natal e não Dezembro
* David Mourão-Ferreira
Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido…
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido…
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave…
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave…
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.
Autor: David Mourão-Ferreira | Edição: nicoladavid
Esta entrada foi publicada em Natal, Poemas de Natal. ligação permanente.
Etiquetas:
David Mourão-Ferreira,
Natal,
Poesia
sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
António Feijó - Noite de Natal
* António Feijó
(A um pequenito vendedor de jornais)
Bairro elegante, – e que miséria!
Roto e faminto, à luz sidérea,
O pequenito adormeceu…
Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu.
A noite é fria; a geada cresta;
Em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar…
Todas as portas já encerradas!
Ó almas puras, bem formadas,
Vêde as estrelas a chorar!
Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço,
Sobre os jornais, que não vendeu,
Em plena rua, que miséria,
Roto e faminto à luz sidérea,
O pequenito adormeceu…
Em torno dele – ó dor sagrada!
Ao ver um círculo sem geada
Na sua morna exalação,
Pensei se o frio descaroável
Do pequenito miserável
Teria mágoa e compaixão…
Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
Com o presépio de Belém…
Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora, abriu-lhe as portas
E aos orfãozinhos sem ninguém…
E todo o céu se lhe apresenta
Numa grande árvore que ostenta
Coisas dum vívido esplendor,
Onde Jesus, o Deus Menino,
Ao som dum cântico divino,
Colhe as estrelas do Senhor…
E o pequeno extasiado,
Naquele sonho iluminado
De tantas coisas imortais,
– No céu azul, pobre criança!
Pensa talvez, cheio de esperança,
Vender melhor os seus jornais…
Roto e faminto, à luz sidérea,
O pequenito adormeceu…
Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu.
A noite é fria; a geada cresta;
Em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar…
Todas as portas já encerradas!
Ó almas puras, bem formadas,
Vêde as estrelas a chorar!
Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço,
Sobre os jornais, que não vendeu,
Em plena rua, que miséria,
Roto e faminto à luz sidérea,
O pequenito adormeceu…
Em torno dele – ó dor sagrada!
Ao ver um círculo sem geada
Na sua morna exalação,
Pensei se o frio descaroável
Do pequenito miserável
Teria mágoa e compaixão…
Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
Com o presépio de Belém…
Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora, abriu-lhe as portas
E aos orfãozinhos sem ninguém…
E todo o céu se lhe apresenta
Numa grande árvore que ostenta
Coisas dum vívido esplendor,
Onde Jesus, o Deus Menino,
Ao som dum cântico divino,
Colhe as estrelas do Senhor…
E o pequeno extasiado,
Naquele sonho iluminado
De tantas coisas imortais,
– No céu azul, pobre criança!
Pensa talvez, cheio de esperança,
Vender melhor os seus jornais…
António Feijó
Esta entrada foi publicada em Natal, Poemas de Natal. ligação permanente.
Etiquetas:
António Feijó,
Natal,
Poesia
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
josé afonso - natal dos simples
* José Afonso
Vamos cantar as janeiras
Vamos cantar as janeiras
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas solteiras
Vamos cantar as janeiras
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas solteiras
Vamos cantar orvalhadas
Vamos cantar orvalhadas
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas casadas
Vamos cantar orvalhadas
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas casadas
Vira o vento e muda a sorte
Vira o vento e muda a sorte
Por aqueles olivais perdidos
Foi-se embora o vento norte
Vira o vento e muda a sorte
Por aqueles olivais perdidos
Foi-se embora o vento norte
Muita neve cai na serra
Muita neve cai na serra
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra
Muita neve cai na serra
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra
Quem tem a candeia acesa
Quem tem a candeia acesa
Rabanadas pão e vinho novo
Matava a fome à pobreza
Quem tem a candeia acesa
Rabanadas pão e vinho novo
Matava a fome à pobreza
Já nos cansa esta lonjura
Já nos cansa esta lonjura
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem anda à noite à ventura
Já nos cansa esta lonjura
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem anda à noite à ventura
Etiquetas:
Audição Musical,
Dia de Reis,
José Afonso,
Natal,
Poesia,
Vídeo
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
David Mourão-Ferreira - Litânia de Natal
* David Mourão-Ferreia
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo
Etiquetas:
David Mourão-Ferreira,
Natal,
Poesia
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
João Coelho dos Santos - Haja Natal
* João Coelho dos Santos
Mulheres atarefadas
Tratam do bacalhau,
Do peru, das rabanadas.
– Não esqueças o colorau,
O azeite e o bolo-rei!
- Está bem, eu sei!
- E as garrafas de vinho?
- Já vão a caminho!
- Oh mãe, estou pr’a ver
Que prendas vou ter.
Que prendas terei?
- Não sei, não sei…
Num qualquer lado,
Esquecido, abandonado,
O Deus-Menino
Murmura baixinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Senta-se a família
À volta da mesa.
Não há sinal da cruz,
Nem oração ou reza.
Tilintam copos e talheres.
Crianças, homens e mulheres
Em eufórico ambiente.
Lá fora tão frio,
Cá dentro tão quente!
Algures esquecido,
Ouve-se Jesus dorido:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Rasgam-se embrulhos,
Admiram-se as prendas,
Aumentam os barulhos
Com mais oferendas.
Amontoam-se sacos e papeis
Sem regras nem leis.
E Cristo Menino
A fazer beicinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
O sono está a chegar.
Tantos restos por mesa e chão!
Cada um vai transportar
Bem-estar no coração.
A noite vai terminar
E o Menino, quase a chorar:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Foi a festa do Meu Natal
E, do princípio ao fim,
Quem se lembrou de Mim?
Não tive tecto nem afecto!
Em tudo, tudo, eu medito
E pergunto no fechar da luz:
- Foi este o Natal de Jesus?!!!
João Coelho dos Santos in Lágrima do Mar – 1996
Esta entrada foi publicada em Natal, Poemas de Natal. ligação permanente.
Etiquetas:
João Coelho dos Santos,
Natal,
Poesia
domingo, 14 de dezembro de 2014
adolfo casais monteiro - [eu falo das casas e dos homens]
IV
Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais.
Não me venham dizer que estava matematicamente previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou em profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa e ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa.
Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto.
Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?
Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia.
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada.
Adolfo Casais Monteiro
Europa (1946)
Poesias Completas
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais.
Não me venham dizer que estava matematicamente previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou em profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa e ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa.
Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto.
Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?
Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia.
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada.
Adolfo Casais Monteiro
Europa (1946)
Poesias Completas
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
Etiquetas:
Adolfo Casais Monteiro,
Poesia
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
Alexandre O'Neill - Há Palavras Que Nos Beijam
* Alexandre O'Neill
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes.
Etiquetas:
Alexandre O'Neill,
Poesia
Subscrever:
Mensagens (Atom)