* Carlos Drummond de Andrade
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que estereliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
partilhado por cecília barata
Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
segunda-feira, 27 de abril de 2015
domingo, 26 de abril de 2015
As chuvas de Maio e as lojas gourmet
“As lojas gourmet são as perfumarias de outrora, discretas, cheias de luxos sugestivos, cobertas de auras misteriosas”
Por António Sousa Homem
As primeiras chuvas de Maio foram já tépidas e não obrigaram à alteração no guarda-roupa de Moledo, que é geralmente sensato. Ao contrário dos hábitos do velho Doutor Homem, meu pai, a "roupa de meia estação" (um eufemismo para falar das transições entre as sucessivas guerras dos Elementos) caiu hoje em desuso. A minha sobrinha Maria Luísa, com pesar e algum drama, atribui a catástrofe às alterações climáticas; esquecia-me de dizer que ela pensa que se trata de uma catástrofe. Tem alguma razão: houve peças que saíram do guarda-roupa e nunca mais foram guardadas de ano para ano, não só porque as pessoas desejaram vestuário mais "prático" (um absurdo) mas também porque as estações do ano dão saltos abruptos para o colo umas das outras até se confundirem ou até se separarem definitivamente. Com isso, as pessoas perderam bastante – as ‘toilettes’ de antigamente desapareceram, a pose de antigamente (estudada, frívola, ‘snob’, geralmente elegante) também desapareceu, e o clima perdeu importância desde que deixámos de usar chapéu, abafos irregulares e fazendas de alfaiate.
De qualquer modo, a minha sobrinha chegou a Moledo na semana passada acompanhada de um ligeiro granizo das serras – que lembrou o descontrole da nossa atmosfera e a desconfiança eterna a que em casa eram votados os cavalheiros da meteorologia, sisudos e de voz grave, esclarecida. Ela trouxe produtos de uma loja gourmet de Braga – fumados escolhidos, compotas perfumadas, bolachas de latitudes longínquas, um vinho húngaro, entre outras primícias. Parecia a chegada do meu Tio Alberto, no regresso das suas viagens misteriosas. O vinho húngaro, o Tokai, pertence à nossa memória, e os seus atributos prendiam-se sempre com a suspeita de amores imaginários com princesas longínquas ou com a existência de paixões mirabolantes que nunca teriam romance escrito à altura. ~
As lojas gourmet são as perfumarias de outrora, discretas, cheias de luxos sugestivos, cobertas de auras misteriosas. Dona Elaine desconfia, naturalmente; ela acha que a compota de groselha é uma invenção hostil à nossa compota de amoras, carregada de uma saudável carga de açúcares amarelos transformados em xarope perfumado. Os fumados de arenque parecem-lhe sardinha de barrica, a comida para pobres dos seus primos dos Arcos; e quanto aos vinhos doces, de sobremesa, ela sugere que o vinho abafado ou as ginjas seculares de Ponte da Barca cumprem perfeitamente a sua função. Por mim, contive-me. À falta de roupa de meia estação e de um boné de ‘tweed’, a ideia de uma loja gourmet não estava mal. Era falsa, sim; mas compensava...
Ler mais em: http://www.cmjornal.xl.pt/domingo/detalhe/as-chuvas-de-maio-e-as-lojas-gourmet.html
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Crónica
segunda-feira, 20 de abril de 2015
Alberto Pimenta – “Civilidade”
* Alberto Pimenta
não tussa madame
reprima a tosse
não espirre madame
reprima o espirro
não soluce madame
reprima o soluço
não cante madame
reprima o canto
não arrote madame
reprima o arroto
não cague madame
reprima a merda
e quando estourar
que seja devagarinho
e sem incomodar, ok madame?
ok, monsieur.
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Poesia
quinta-feira, 16 de abril de 2015
Oscar Wilde - O Príncipe Feliz
Tradução - Sandra Cristina da Costa Luna
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63 Elevando-se bem acima da cidade, numa coluna alta, erguia-se a estátua do
Príncipe Feliz. Era toda revestida de finas folhas de ouro puro, nos olhos
tinha duas safiras brilhantes, e um grande rubi vermelho cintilava no punho da
sua espada. De facto, o Príncipe Feliz1 era muito admirado. “É bonito como um
cata-vento,” comentou um dos conselheiros municipais que queria ganhar
reputação por ter gostos artísticos; “só não é assim tão útil,” acrescentou,
receando que o considerassem pouco prático, o que realmente ele não era.
“Porque não podes ser como o Príncipe Feliz?” perguntou uma mãe sensata ao
filho que lhe pedia a lua.2 “ O Príncipe Feliz nem sequer sonha em chorar por
alguma coisa.” “Ainda bem que há alguém no mundo que está tão feliz,” murmurou
um homem desiludido enquanto fitava a maravilhosa estátua. “Parece mesmo um
anjo,” disse uma das crianças do orfanato quando saíam da catedral nas suas
capas escarlate vivo e nos seus bibes imaculados.3 “Como sabeis?”4 disse o
Professor de Matemática, “nunca vistes um.” 5 “Ah! Isso é que vimos, em
sonhos!” responderam as crianças; então o professor de matemática franziu o
sobrolho e pôs um ar muito severo, pois não aprovava que as crianças sonhassem.
Uma noite voou sobre a cidade uma pequena andorinha. 6 As suas amigas tinham
ido para o Egipto seis semanas antes, mas ela tinha ficado para trás, pois
estava apaixonada por um junco belíssimo.7 Tinha-o conhecido no início da
Primavera enquanto voava rio abaixo atrás de uma grande mariposa amarela, e
tinha ficado tão atraída pela sua cintura fina que tinha parado para falar com ele.8
“Posso amar-te?” disse a andorinha, que gostava de ir direita ao assunto, e o
junco fez-lhe uma vénia profunda. Então voou de roda dele, tocando a água com
as suas asas e fazendo círculos prateados.9 E foi assim a sua corte ao longo de
todo o Verão
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_________________ 64 “É uma relação ridícula,” censuravam as outras andorinhas.10 “ele não tem dinheiro e tem demasiados parentes”. E de facto o rio estava repleto de juncos. Depois, quando o Outono chegou, todas voaram para longe. Após terem partido a andorinha sentiu-se sozinha e começou a ficar cansada do seu amado. “ Não tem conversa,” disse ela, e temo que seja um dandi, sempre a namoriscar com o vento.” E era certo, quando o vento soprava, o junco fazia as mais graciosas reverências. “Admito que é caseiro,” continuou, “mas adoro viajar, e por isso, o meu marido deveria também adorar viajar.” “Vens embora comigo?”, disse-lhe finalmente; mas o junco abanou a cabeça, estava tão agarrado à sua casa. “Tens andado a brincar comigo,” exclamou. “Vou-me embora para as pirâmides. Adeus!” e voou para longe. Todo dia voou e à noite chegou à cidade. “Onde irei hospedar-me?” disse; “Espero que a cidade tenha feito preparativos.” Depois viu a estátua na coluna alta. “Vou hospedar-me aqui,” disse; “tem uma óptima situação, com muito ar fresco.” E lá pousou ela mesmo aos pés do Príncipe Feliz. “Tenho um quarto dourado,” disse suavemente para si mesma ao olhar em volta e preparando-se para adormecer; mas, quando estava mesmo a pôr a cabeça debaixo da asa, uma grande gota de água caiu-lhe em cima. “Que coisa estranha!” exclamou; “não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão muito nítidas e brilhantes e, porém, está a chover. O clima no norte da Europa é realmente desagradável. O junco costumava gostar da chuva, mas era só egoísmo seu.” Então caiu outra gota. “Qual a utilidade duma estátua se não consegue manter a chuva afastada?” disse; “Tenho de procurar um bom tubo de chaminé,” e decidiu voar para longe. Mas antes de ter aberto as asas, uma terceira gota caiu e ela olhou para cima e viu… Ah! 11 O que é que ela viu?
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_________________ 64 “É uma relação ridícula,” censuravam as outras andorinhas.10 “ele não tem dinheiro e tem demasiados parentes”. E de facto o rio estava repleto de juncos. Depois, quando o Outono chegou, todas voaram para longe. Após terem partido a andorinha sentiu-se sozinha e começou a ficar cansada do seu amado. “ Não tem conversa,” disse ela, e temo que seja um dandi, sempre a namoriscar com o vento.” E era certo, quando o vento soprava, o junco fazia as mais graciosas reverências. “Admito que é caseiro,” continuou, “mas adoro viajar, e por isso, o meu marido deveria também adorar viajar.” “Vens embora comigo?”, disse-lhe finalmente; mas o junco abanou a cabeça, estava tão agarrado à sua casa. “Tens andado a brincar comigo,” exclamou. “Vou-me embora para as pirâmides. Adeus!” e voou para longe. Todo dia voou e à noite chegou à cidade. “Onde irei hospedar-me?” disse; “Espero que a cidade tenha feito preparativos.” Depois viu a estátua na coluna alta. “Vou hospedar-me aqui,” disse; “tem uma óptima situação, com muito ar fresco.” E lá pousou ela mesmo aos pés do Príncipe Feliz. “Tenho um quarto dourado,” disse suavemente para si mesma ao olhar em volta e preparando-se para adormecer; mas, quando estava mesmo a pôr a cabeça debaixo da asa, uma grande gota de água caiu-lhe em cima. “Que coisa estranha!” exclamou; “não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão muito nítidas e brilhantes e, porém, está a chover. O clima no norte da Europa é realmente desagradável. O junco costumava gostar da chuva, mas era só egoísmo seu.” Então caiu outra gota. “Qual a utilidade duma estátua se não consegue manter a chuva afastada?” disse; “Tenho de procurar um bom tubo de chaminé,” e decidiu voar para longe. Mas antes de ter aberto as asas, uma terceira gota caiu e ela olhou para cima e viu… Ah! 11 O que é que ela viu?
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65 Os olhos do Príncipe Feliz estavam cheios de lágrimas, lágrimas que lhe
corriam pelas faces douradas abaixo. O seu rosto era tão belo ao luar que a
pequena Andorinha ficou cheia de pena. 12 “Quem és tu?”, perguntou. “Eu sou o
Príncipe Feliz.” “Então porque choras?”13, perguntou a Andorinha;
“Encharcaste-me completamente.”14 “Quando era vivo e tinha um coração humano,”
respondeu a estátua, “não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no Palácio
Sans-Soussi, onde a dor não está autorizada a entrar.15 Durante o dia brincava
com os meus companheiros no jardim e à noite abria o baile no Salão Nobre.16 A
toda a volta do jardim erguia-se um muro altivo, mas nunca me dei ao trabalho
de perguntar o que estava para lá dele, tudo à minha volta era tão bonito. Os
meus cortesãos chamavam-me o Príncipe Feliz, pois eu era verdadeiramente feliz,
se prazer é felicidade.17 Assim vivi e assim morri. Agora que estou morto,
ergueram-me18 aqui tão alto que consigo ver toda a fealdade e miséria da minha
cidade e, apesar de o meu coração ser de chumbo, não posso deixar de chorar.”
“O quê? Não é de ouro maciço?” perguntou a andorinha de si para si. Era
demasiado educada para fazer qualquer comentário pessoal em voz alta. “Lá
longe,” continuou a estátua numa voz baixa e musical, “lá longe, numa ruela, há
uma casa pobre. Uma das janelas está aberta e através dela consigo ver uma
mulher sentada a uma mesa. Tem o rosto magro e gasto, e as mãos vermelhas,
ásperas, todas picadas pela agulha, pois trata-se de uma costureira. Está a
bordar passifloras19 num vestido de cetim para a mais encantadora das damas de
honor da rainha usar no próximo baile da corte. Numa cama ao canto da sala, o
filho está doente de cama. Tem febre e está a pedir laranjas. A mãe não tem
nada para lhe dar a não ser água do rio, por isso ele está a chorar. Andorinha,
andorinha, pequena andorinha20, por que não lhe levas o rubi do punho da minha
espada? Tenho os pés atados a este pedestal e não consigo mexer-me.” “Estão à
minha espera no Egipto,” disse a andorinha. “As minhas amigas já voam Nilo
acima, Nilo abaixo e falam com as grandes flores de lótus. Em breve irão dormir
no túmulo do grande rei. O próprio rei lá está no seu caixão pintado. Está
envolto em linho
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66 amarelecido e embalsamado com especiarias.21 À volta do pescoço tem um colar
de jade verde-pálido e as suas mãos são como folhas secas.” “Andorinha,
andorinha, pequena andorinha,” disse o Príncipe, “não ficas comigo uma noite e
és minha mensageira? O rapaz está sequioso e a mãe tão triste.” “Acho que não
gosto de rapazes,” respondeu a andorinha. “No verão passado, junto ao rio,
havia dois rapazes malcriados, os filhos do moleiro, que estavam sempre a
atirar-me pedras. Nunca me acertaram, é claro; nós andorinhas voamos bem demais
para que isso aconteça e, além disso, venho de uma família famosa pela sua
agilidade; mesmo assim, foi um sinal de desrespeito.” Mas o Príncipe Feliz
tinha um ar tão triste que a pequena andorinha sentiu pena. “Está muito frio
aqui,” disse; “mas ficarei contigo por uma noite e serei tua mensageira.”
“Obrigada, pequena andorinha,” disse o Príncipe. Então a andorinha pegou no
grande rubi da espada do Príncipe e voou para longe com ele no bico por cima
dos telhados da cidade. Passou pela torre da catedral, onde estavam esculpidos
anjos de mármore branco. Passou pelo palácio e ouviu o som de dança. Uma bela
rapariga saía para a varanda com o seu apaixonado. “Como são maravilhosas as
estrelas,” disse-lhe ele, “e como é maravilhoso o poder do amor!” “Espero que o
meu vestido esteja pronto a tempo do baile de gala,” respondeu ela; “Mandei
bordar passifloras; mas as costureiras são tão preguiçosas.” A andorinha passou
pelo rio e viu as candeias penduradas nos mastros dos navios. Passou por cima
do gueto e viu os velhos judeus a regatear uns com os outros e a pesar dinheiro
em balanças de cobre. Finalmente, chegou ao casebre e espreitou para dentro. O
rapaz contorcia-se febril na cama e a mãe tinha adormecido, de tão cansada que
estava. Saltitou para dentro e pousou o grande rubi na mesa junto ao dedal da
mulher. Depois esvoaçou à volta do quarto, refrescando a testa do rapaz com as
suas asas. 22 “Sinto-me tão fresco,” disse o rapaz, “Devo estar a ficar
melhor”; e caiu num sono delicioso.23 Depois, a andorinha voou de volta para o
Príncipe Feliz e contou-lhe o que tinha feito. “É estranho,” observou, “mas até
me sinto quente agora, apesar de estar tanto frio _______________________________________________________________________________
67 “É porque fizeste uma boa acção,” disse o Príncipe. E a pequena andorinha
pôs-se a pensar e logo depois adormeceu. Pensar sempre lhe dava sono. Quando o
dia nasceu, voou até ao rio e tomou banho. “Que fenómeno singular,” disse o
professor de ornitologia enquanto atravessava a ponte. “Uma andorinha no
Inverno!” E escreveu uma longa carta sobre isso ao jornal local. Toda a gente a
citava, estava tão cheia de palavras que ninguém conseguia perceber. “Esta
noite vou para o Egipto,” disse a andorinha, animada com a ideia. Visitou todos
os monumentos públicos e ficou pousada durante muito tempo no topo do
campanário da igreja. Por onde quer que andasse, os pardais chilreavam e diziam
uns aos outros, “Que distinta, esta estranha!” portanto divertiu-se imenso.
Quando a lua surgiu, ela voou de volta para o Príncipe Feliz. “Tens algum
recado para o Egipto?” exclamou; “Vou pôr-me a caminho.” “Andorinha, andorinha,
pequena andorinha,” disse o Príncipe, “porque não ficas comigo mais uma noite?”
“Estão à minha espera no Egipto,” respondeu a andorinha. “Amanhã as minhas
amigas voarão para lá da Segunda Catarata.24 O hipopótamo aninha-se no meio do
canavial e o Deus Mémnon senta-se no grande trono de granito. 25 Durante toda a
noite ele observa as estrelas e, quando a estrela da manhã brilha, solta um
grito de alegria, para depois voltar ao silêncio. Ao meio dia, os leões
amarelos aproximam-se da beira da água para beber. Têm olhos como berilos
verdes26 e rugem ainda mais alto do que a catarata. “Andorinha, andorinha,
pequena andorinha,” disse o Príncipe, “ lá longe do outro lado da cidade vejo
um jovem numa mansarda. Está curvado sobre uma secretária coberta com papéis, e
num vaso a seu lado há um ramo de violetas murchas. Tem cabelo castanho e
crespo, lábios vermelhos como romãs e olhos grandes e sonhadores. Está a tentar
acabar uma peça para o director do teatro, mas tem demasiado frio para poder
continuar a escrever. Não há fogo na lareira e enfraqueceu de fome.” “Ficarei
contigo mais uma noite,” disse a andorinha, que realmente tinha bom coração.
“Levo-lhe outro rubi?” “Ai de mim! Já não tenho nenhum rubi,” disse o Príncipe;
“os meus olhos são tudo o que me resta. São feitos de safiras raras, trazidas
da Índia há mil anos. Arranca um deles
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68 e leva-lho. Há-de vendê-lo ao joalheiro para comprar comida e lenha e
terminar a sua peça.” “Querido Príncipe,” disse a andorinha, “eu não posso
fazer isso”; e começou a chorar. “Andorinha, andorinha, pequena andorinha,”
disse o Príncipe, “faz o que te mando.” Então a andorinha arrancou o olho do
Príncipe e voou para a mansarda do estudante. Foi fácil entrar, já que havia um
buraco no telhado. Lançou-se por ele fora e entrou no quarto. O jovem tinha a
cabeça enterrada nas mãos, por isso não ouviu o bater das asas do pássaro, mas
quando ergueu os olhos encontrou a bela safira pousada nas violetas murchas.
“Começo a ser reconhecido,” exclamou; “isto é de um grande admirador. Agora
posso acabar a minha peça,” e ficou todo contente. No dia seguinte a andorinha
voou até ao porto. Pousou no mastro de uma grande embarcação e observou os
marinheiros a içar grandes arcas para o porão com cordas. “Ooupa!”27 gritavam à
medida que cada arca subia. “Vou para o Egipto!” exclamou a andorinha, mas
ninguém lhe prestava atenção; e quando a lua subiu, voou de volta para o
Príncipe Feliz. “Vim dizer-te adeus,” exclamou. “Andorinha, andorinha, pequena
andorinha,” disse o Príncipe, “porque não ficas comigo mais uma noite?” “É
Inverno,” respondeu a andorinha, “e a neve gelada estará aqui em breve. No
Egipto o sol é quente nas palmeiras verdes e os crocodilos estão deitados na
lama com um ar muito preguiçoso. As minhas companheiras estão a construir um
ninho no Templo de Baal, e as pombas cor-de-rosa e brancas observam-nas
arrulhando umas para as outras.28 Querido Príncipe, tenho de te deixar mas
nunca te esquecerei, e na próxima Primavera heide trazer-te duas belas jóias
para o lugar das que ofereceste. O rubi será mais vermelho que uma rosa
vermelha e a safira será tão azul como o imenso mar.”
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69 “Na praça aqui em baixo,” disse o Príncipe Feliz, “está uma pequena
vendedora de fósforos.29 Deixou cair os fósforos na sarjeta e estão todos
estragados. O pai vai bater-lhe se ela não levar para casa algum dinheiro, e
ela está a chorar. Não tem sapatos nem meias, e tem a cabecinha descoberta.
Arranca o meu outro olho e dá-lho, para que o pai não lhe bata.” “Ficarei
contigo mais uma noite,” disse a andorinha, “mas não posso arrancar-te o outro
olho. Ficarias completamente cego.” “Andorinha, andorinha, pequena andorinha,”
disse o Príncipe, “faz o que te mando.” Então ela arrancou o outro olho ao
Príncipe e partiu dali com ele.30 Passou em voo rasante pela vendedora de
fósforos e meteu-lhe a jóia na palma da mão.31 “Que lindo pedaço de vidro,”
exclamou a menina; e correu para casa, rindo. Depois a andorinha regressou ao
Príncipe. “Estás cego agora,” disse, “por isso, ficarei sempre contigo.” “Não,
pequena andorinha,” disse o pobre Príncipe, “tens de ir embora para o Egipto.”
“Ficarei sempre contigo,” disse a andorinha, e dormiu aos pés do Príncipe.
Passou todo o dia seguinte pousada no ombro do Príncipe, contando-lhe histórias
do que tinha visto em terras estranhas. Falou-lhe das íbis32 vermelhas, que se
alinham ao longo das margens do Nilo e apanham peixinhos dourados com os bicos;
da Esfinge, que é tão velha como o próprio mundo, mora no deserto e tudo sabe;
dos mercadores, que caminham devagar ao lado dos seus camelos transportando nas
mãos contas de âmbar33; do Rei das Montanhas da Lua34, que é tão negro como o
ébano e presta culto a um grande cristal; da grande cobra verde que dorme numa
palmeira e tem vinte sacerdotes alimentando-a com broinhas de mel; e dos
pigmeus que navegam em grandes folhas lisas num grande lago e estão sempre em
guerra com as borboletas
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70 “Querida pequena andorinha,” disse o Príncipe, “falas-me de coisas
maravilhosas, mas mais maravilhoso que tudo é o sofrimento de homens e
mulheres. Não existe mistério tão grande como a miséria. Voa sobre a minha
cidade, andorinha, e conta-me o que lá vês.” Então a andorinha voou sobre a
grande cidade e viu os ricos a divertir-se nas suas belas casas, enquanto os
pobres se sentavam aos portões. Voou por vielas sombrias e viu as caras pálidas
de crianças esfomeadas a olhar com indiferença as ruas negras. Debaixo dos
arcos de uma ponte dois meninos abraçavam-se um ao outro para se manterem
quentes. “Temos tanta fome!” diziam. “Não podeis deitar-vos aqui,” gritou o
vigia, e eles desapareceram na chuva.35 Depois voou de volta para o Príncipe e
contou-lhe o que tinha visto. “Estou coberto de ouro puro,” disse o Príncipe,
“deves retirá-lo, folha por folha, e dá-lo aos meus pobres; os vivos pensam
sempre que o ouro os pode fazer felizes.” Folha após folha do ouro puro a
andorinha foi retirando, até que o Príncipe Feliz ficou sem brilho e cinzento.
Folha após folha do ouro puro foi ela levando aos pobres; os rostos das
crianças foram ficando rosados e elas riam e brincavam na rua. “Já temos pão!”
exclamavam. Depois veio a neve e depois da neve, a geada. As ruas pareciam
feitas de prata, tão brilhantes e reluzentes; longos pingentes de gelo como punhais
de cristal pendiam das goteiras das casas. Toda a gente se vestia de peles, as
crianças usavam gorros vermelhos e patinavam no gelo.36 A pobre pequena
andorinha tinha cada vez mais frio mas não abandonaria o Príncipe, amava-o
tanto. Apanhava migalhas à porta da padaria, quando o padeiro não estava a ver,
e tentava manter-se quente batendo as asas. Mas finalmente soube que iria
morrer. Teve apenas forças para voar para o ombro do Príncipe uma vez mais.
“Adeus, querido Príncipe!” murmurou, “deixas-me beijar-te a mão?” “Fico feliz
por finalmente ires para o Egipto, pequena andorinha,” disse o Príncipe, “ já
cá ficaste demasiado tempo; mas tens de me beijar nos lábios, porque eu amo-te
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71 “Não é para o Egipto que eu vou,” disse a andorinha. “Vou para a casa da
morte. A morte é a irmã do sono, não é?”37 Beijou o Príncipe Feliz nos lábios e
caiu morta a seus pés.38 Nesse momento um curioso estalido soou no interior da
estátua, como se alguma coisa se tivesse partido. A verdade é que o coração de
chumbo se tinha rachado em dois. Sem dúvida que era um Inverno extremamente
rigoroso. 39 Bem cedo na manhã seguinte, o presidente da câmara caminhava em
baixo na praça na companhia dos conselheiros municipais. Ao passar pela coluna
olhou para cima para a estátua: “Valha-me Deus! Que gasto parece o Príncipe
Feliz!” disse. “Que gasto, realmente!” exclamaram os conselheiros municipais,
que concordavam sempre com o presidente da câmara; e foram lá todos acima olhar
para ele. “O rubi caiu da espada, os olhos foram-se e já não é dourado,” disse
o presidente da câmara, “de facto é pouco melhor que um pedinte!” “Pouco melhor
que um pedinte,” disseram os conselheiros municipais. “E até está aqui um
pássaro morto a seus pés!” continuou o presidente da câmara. “Temos mesmo de
fazer um decreto para não permitir aos pássaros morrer aqui.” E o arquivista do
município tomou nota da sugestão. Então deitaram abaixo a estátua do Príncipe
Feliz. “Como já não é belo, já não é útil,” disse o professor de arte na
universidade. Depois derreteram a estátua numa fornalha, e o presidente da
câmara teve uma reunião da Assembleia para decidir o que fazer com o metal.40
“Temos de ter outra estátua, é claro,” disse, “e será uma estátua de mim
próprio.” “De mim,” disseram cada um dos conselheiros municipais, e discutiram.
Da última vez que ouvi falar deles ainda estavam a discutir.
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72 “Que coisa estranha!” disse o encarregado dos operários na fundição. “Este
coração de chumbo partido não derrete na fornalha. Temos de o deitar fora.”
Então deitaram-no para um monte de lixo onde também a andorinha jazia morta.
“Traz-me as duas coisas mais valiosas da cidade,” disse Deus a um dos seus
anjos; e o anjo levou-Lhe o coração de chumbo e o pássaro morto. “Escolheste
bem,” disse Deus, “pois no meu jardim do Paraíso este passarinho cantará para
todo o sempre e na minha cidade de ouro o Príncipe Feliz louvar-me-á.
http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/55978/2/tesemestsandraluna000127843.pdf
Gravura El Príncipe Feliz y
otros cuentos de Oscar Wilde, ilustrado por Walter Crane y Jacomb
Hood, se publicó en 1888, in
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Oscar Wilde,
Sandra Luna
quinta-feira, 2 de abril de 2015
Cartografia de Ossos (1)
- Sérgio Sousa
N.º 2009
Avante 1.Maio.2012
Avante 1.Maio.2012
Cartografia de Ossos (1)
Música sem Partitura de Domingos Lobo
Música sem Partitura de Domingos Lobo
Um título de imediato inquietante; veremos depois que adequado, justificado.
Cartografia, representação de uma notícia que serve para orientar; ossos, os despojos interiores, estruturais, que restam. (Uma personagem expressará, pág. 133: «Não quero redenção nem castigo, alheamento apenas. Que nem os ossos fiquem para testemunhar a minha passagem pelo mundo...»).
Cartografia, representação de uma notícia que serve para orientar; ossos, os despojos interiores, estruturais, que restam. (Uma personagem expressará, pág. 133: «Não quero redenção nem castigo, alheamento apenas. Que nem os ossos fiquem para testemunhar a minha passagem pelo mundo...»).
Portugueses, carregamos a memória da descoberta de rotas marítimas, e dos tráficos que nelas empreendemos; o melhor e o pior, a ciência náutica e os negreiros.
E no começo do século XXI, ainda as feridas abertas durante quase metade do anterior por uma repressão atroz, suspensa numa madrugada de Abril, sem de seguida se terem liquidado devidamente as respectivas contas.
Transportamos igualmente os referentes culturais que sobreviveram aos seus criadores.
Tudo ocorrências passadas, de que persistem resquícios, enterrados, desenterrados.
E vivemos num mundo onde alguns vaticinam – e não só vaticinam, nisso efectivamente se empenham – que um«lodo» alastrante acabará por submergir muitos outros, pág. 131: «sobretudo aos ingénuos..., aos idealistas que acreditam nas madrugadas que cantam.»
Percursos, não por completo desvendados, nem reabilitados, nem terminados.
Romance, inquestionável: personagens, com passado, presente, consistência complexa, evoluindo por diferentes espaços e ao longo do tempo, não cronologicamente, peripécias. Escorreito e exuberante, adjectivo este que no prefácio do livro Urbano Tavares Rodrigues utiliza para qualificar o talento de Domingos Lobo.
Romance onde afluem as dimensões de poeta e de dramaturgo do seu autor; de poeta, na catadupa das metáforas e alegorias urdidas com vocabulário versátil e de precioso recorte frásico; de dramaturgo, nos cenários invocados pelas personagens, na emotividade das cenas, na estrutura narrativa intensa assente, ainda que subtilmente camuflados, nos solilóquios e diálogos – quanto a estes, mais propriamente, no contracenar –, sem que o narrador se mostre, não obstante esteja do princípio ao fim presente enquanto tal na unidade de estilo, que expresso em diferentes andamentos, aliás consignados no próprio texto/partitura, assegura um distanciamento crítico do autor mesmo quando os temas se revelam cruéis e até tétricos.
Tudo servindo uma panorâmica sócio-cultural e um aprofundar do humano que fazem de «Cartografia de Ossos» um romance maior do nosso tempo.
*
Romance policial?Também, e de espionagem, na intriga de que se serve do desenrolar e desvendar de uma investigação criminal onde não falta, sequer, o confronto entre o detective privado e o bófia, ou chui. Imbricada, com falsas pistas e volte-faces, mas de que aqui apenas cabe elogiar a sua eficácia a captar e a manter presa a atenção do leitor.
Mais essencialmente, policial e de espionagem por imergir nobas-fond.
Desde «Os Navios Negreiro não sobem o Cuando»2, e recentemente em, por exemplo, «A Estranha Guerra do Largo do Intendente»3, encontra-se na prosa de Domingos Lobo, tornou-se nela uma marca de estilo, o ingresso com grande à-vontade na vivência do lumpen, transmitido literariamente pela recriação da viva e variada semântica que lhe é própria.
Diferentemente dos burgueses de Maupassant, e mesmo dos de Fellini, Domingos Lobo não olha «de cima para a canaille, antes como Gorki, ou Goya, no meio dela perscruta «na miséria, na degradação, ainda uma dignidade humana, que» sabe expressar impressivamente, sem sentimentalismo nem demagogia. Não apenas o ritmo desenfreado da saga das personagens esotéricas de «O que diz Molero», Dinis Machado - Livraria Bertrand, 1977 -, não só o convívio em espaços e com gentes marginalizadas de «Memórias de um rufia lisboês», Orlando Neves - Editorial Escritor, 1994 - , para além de tudo isso, uma procura semântica, umreferencial literário e uma perspectiva sociopolítica e cultural.
Não haverá, na focagem de zonas culturais tidas como desqualificadas, que buscar referentes para Domingos Lobo, porque ele sim, assume essa posição na nossa literatura contemporânea, pela desenvoltura com que em tais zonas penetra poeticamente, e de que apenas nos ocorrem paralelos noutras artes, como no cinema de Ettore Scola de «Feios, porcos e maus» [1976], e nalguns quadros de Francis Bacon, e mais até de Paula Rego, usando uma linguagem que superiormente integra gíria, calão, palavrão, ao serviço de um realismo cru, até ao âmago do humano.
Domingos Lobo patenteia-nos a consciência do tecido sócio-cultural da língua, que artisticamente lavra.
*
Falemos um pouco apenas do enredo, tão-só para espicaçar curiosidades:Em Lisboa um velho torcionário e assassino, «oitenta anos, o cancro a devorá-lo, sem esperança», sentado «às tardes no sofá, quando as forças lho permitiam,» «do vasto escritório»onde se espalhava «o espólio de uma vida», que comportava inclusive «uma colecção de obras de arte», o mais do tempo deitado numa cama articulada, assistido por uma«enfermeira, fiel companheira de maleitas e destinos aziagos», contrata um detective privado – que viremos a saber, pág. 198, não ter sido escolhido por acaso – a quem incumbe de lhe encontrar e trazer «um filho de adolescentes desvarios».
O torcionário nascera na miséria, como conta, pág. 132:«...conhecia-a por dentro, bebi-lhe o leite azedo até ao tutano. Precisava evadir-me desse estrume, desse chão viscoso que se alimenta de fezes, ignorância, absurdas crenças, passividade ignara. E consegui...» Relatar-nos-á como.
O detective é um homem – na infância, curiosamente, passou por Nagosela4, pág. 93 – que não preenche o protótipo do profissional sagaz, «de olho vivo» e «bom de briga»; pelo contrário, míope, usa umas lentes «fundo de garrafa» numa armação de macacaúba e, «sensível», pág. 60: «outro mister lhe assentaria: bailarino do Bolshoi; costureiro, poeta romântico dado a sonetos devorados pela tísica.» Na cena de acção magnificamente descrita na pág. 109, acaba sendo do adversário a decisão de «devolver-lhe a dignidade em declínio instável.»
O velho agonizante iniciara a sua carreira como soldado da GNR, limpando os cavalos e removendo estrume nas cavalariças do Quartel do Carmo. «Step by step», como lhe aprazia dizer, fora ascendendo naqueles anos de implantação dos fascismos na Europa e das guerras que desencadearam, legionário em 1938, com dezoito anos de idade – pág. 52 –, guindou-se depois a guarda prisional no Aljube, a agente da Pide, a inspector da mesma casa e, por mor das contingências da negregada profissão, seguiu mesmo um percurso internacional, com especialização em tortura científica na Alemanha, actuação como agente infiltrado e provocador em Paris no Maio de 68, colaborando ainda com outras «secretas» criminosas ao serviço de tristemente conhecidos caudilhos. No trajecto, sempre que se propiciara, fora-se apropriando de alguns pecúlios alheios, como o que «guardava» da decadente prostituta Careca,quando foi «encontrada [morta] pelos almeidas da câmara», o que lhe permitiu, na conjuntura económica «favorável» do salazarismo e também com «bons conhecimentos», realizar os seus primeiros investimentos imobiliários, págs. 69/70. Igualmente, de um amigo especial que assassinou, veio a locupletar-se com valiosas peças de arte.
Capaz dos desempenhos mais selváticos, leia-se, págs. 112/113, o relato do linchamento de um patriota negro, numa noite em Lourenço Marques, este pide não se apresenta um boçal, antes sabe alinhar desculpas para o seu comportamento. «O meio é o homem», diz, e «vindo» ele donde viera...
Enquanto guarda no Aljube cedera a pequenos subornos, pág. 53, «a troco de quase nada; uns lápis, papel, umas cartas passadas sem a vistoria censória do comando», obtivera que «alguns presos, quase todos comunistas», lhe ensinassem «matemática, português, francês», conhecimentos que tivera o discernimento de descobrir quanto lhe seriam úteis. Como reconhece, dirigindo-se ao detective: «Você não imagina o que aquela gente me ensinou».
Não admira que seja na boca deste velho torcionário que Domingos Lobo coloque um discurso terrífico, mas lúcido, sobre o propósito de contrariar a evolução do mundo.
E na cama onde agoniza canceroso, mas ciente de que algum inimigo pode ainda chegar para um derradeiro ajuste de contas, o antigo operacional da repressão profere para o detective, pág. 131:
«A vossa revolução falhou, meu caro. Olhe para os lados, veja o que por aí vai... A vossa revolução está hoje inquinada, os abutres do capital tomaram-na por dentro, a social-democracia é hoje uma patranha desnecessária. O vosso“Estado social”...vai definhando aos poucos de morte natural e gangrenando de iniquidade sórdida: agoniza num charco de corrupção, comandada do alto por capos mafiosos, por uma teia de interesses sinistros que se instalaram na banca, nos ministérios, na justiça, nas estruturas do Estado, nos jornais. O lodo é total e há-de submergir-vos, sobretudo aos ingénuos como você, aos idealistas que acreditam nas madrugadas que cantam.» (Negrito meu.)
Duas mulheres se cruzaram na trajectória do jovem, e então garboso, soldado da GNR; das interferências que nela tiveram, ou vice-versa, saberá quem leia o romance.
O detective, desde a infância carregava a culpa de julgar não ter correspondido às expectativas do pai, militante da esquerda que, após uma passagem pela prisão, se isola de todos, soçobra no alcoolismo e se suicida, enquanto a mulher ensandece.
O velho legionário, torcionário, assassino, encarna o herói negativo; o detective é o seu exacto contrário, o não herói, que nada descobre do que investiga, antes acaba surpreendido pelas revelações dos outros, mesmo quanto ao que de mais íntimo a si apenas respeita.
*
Para desempenhar as tarefas de encontrar e trazer o filho ao torcionário, o detective, de seu nome Rafael, deslocar-se-á de Lisboa ao Porto.Apreciemos a mestria do romancista, acompanhando o amanhecer do domingo da partida na sala de visitas do antigo império, o Rossio de Lisboa, pág. 18:
«O sol, madraço, entre nuvens. Lisboa mansa de monhés cabisbaixos e ajuntamentos crioulos na medina do Rossio, saudosos das bolanhas da Guiné. Os desvalidos do capitalismo em saída pestilenta do papelão, as mãos sujas estendidas à esmola de turistas sonâmbulos na igreja de S. Domingos, o cheiro a ranço cosmopolita do Mc Donald’s, os ardinas a vender sonhos retardados, os graxa com a miséria terceiro-mundista a tiracolo, a ginjinha a sobreviver num gueto a tresandar a século XIX, um teatro nacional definhando na estética untuosa e lorpa do liberalismo de casaca, pomposo nas colunatas helénicas, a armar ao clássico pindérico pós-pombalino, desenquadrado da harmonia simples e geral que o marquês impôs à reconstrução da cidade; restaurantes de labregos, travestidos de empresários hoteleiros, com ementas de bafio e unto, a piscarem o olho ao turista desarmado; argamassa de frango no espeto e bifanas gordurosas em casqueiro de esferovite para o inevitável desarranjo das miudezas.
Lisboa dos domingos capados, tédio sem remisso desde as nevoentas capitulações sebastiânicas, a fazer de capital cosmopolita em pátria estreita e insalubre, ainda com sombras de inquisidores, esbirros e bufos pelas esquinas.»
E o adregar do detective a um Porto Manso5, págs. 39 e seguintes:
«O Largo de Campanhã, com tascas taciturnas e pensões manhosas. Sala para poucas visitas: chegar e andar. Uma chuva redonda, mansa, esboroa o empedrado, a luz aquosa treme nas poças de água, nos néons das lojas, nas montras sujas de excrementos de pássaros vadios e moscas resistindo à cacimba noctívaga.»
«...pátio Fontinha, nome de lugar, de sítio, ilha seria, uma ilha no Porto já rodeada de prédios altos e o camartelo a avançar ameaçador, pátio de velhos que aguardam o último sopro dos frios e de jovens que envelhecem de repente, ao cair do estuque, da caliça, da chuva que se insinua pelas telhas em declive sobre os tanques de lavar roupa, a chuva no musgo dos beirais, nas rugas. Pátio de pobres, ilha de deserdados num Porto que os cerca de prédios altos, de cimento e silêncio, que os esconde na penumbra dos cenários para que se não vejam as mazelas, os rostos, a miséria ao vivo e a cores – o surro das roupas de dentro.»
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Porém, mais do que romance policial e de espionagem, tragédia.Embora oculta, outrossim para servir a táctica de suspense da trama investigatória, mas efectivamente diegese trágica, porque acabamos por descobrir – e os indícios sempre nos tinham sido proporcionados no decurso dela, v. g., a notação da vizinha do prédio em frente, a que no começo não damos atenção, mas que tornada recorrente nos intriga, e só na pág. 156 se enuncia, «lugar sinistro que tem um prédio em frente onde num 2.º andar aberto às suas introspecções de aprendiz de feiticeiro, de anacoreta mórbido, habita um mistério que Rafael desvendará um dia, quando a coragem lhe der ânimo e lhe comandar os gestos e os passo que inseguros andam» – que as personagens têm traçado um destino pela interacção das suas condições sociais, a que não poderão eximir-se, e que a partir daí, da descoberta da pág. 163, revelação, o que no dizer de uma personagem«parece um pouco folhetinesco», na essência verdadeiro reconhecimento, inexoravelmente se cumpre.
O próprio pide dirá, pág. 134: «Os delinquentes são produto do meio social. Aqui tem uma boutade marxista com a qual concordo. Eu, por exemplo, se vivesse outro tempo e uma outra situação social, seria por certo um mecenas, um bom samaritano...».
Assim, o filho do suicida atormentado com o injustificado remorso de não ter correspondido à projecção que, para si, imputa ao pai ter feito, pode num imprevisto confim encontrar uma amante, não a saberá trazer consigo. E o que repudiou um filho, descurou outro, morrerá na inclemência que determinou a vida daqueles.
*
Parábola:Os algozes algum dia perderão o poder e morrerão às mãos das suas antigas vítimas. Destas, as mais inesperadas surgirão no momento de se perpetrar o desfecho.
Romance realista do começo do século XXI.
No século XIX, mesmo quando se denunciava a injustiça social, em regra imperavam móbeis idealistas, e a vida das personagens obedecia a determinismos psicológicos.
A telenovela actual – conteúdo que também se comercializa no suporte livro, dispostos em pilhas a atravancar as entradas dos supermercados – cumpre desenvolvimentos maniqueístas em cenários de caricatura leve da realidade.
Em «Cartografia de Ossos», o cru mundo em que vivemos resulta da luta que lhe subjaz, e que Domingos Lobo eximiamente sintetiza, pág. 118: Um mundo em que uns, são«os vencidos de uma liberdade que se foi aos poucos esboroando por falta de alimento, de oxigénio, da febre dos húmus, deixando perdido em labirintos de ranço um país prostrado, submisso e ausente, com a roupa de dentro a ver-se e o mau cheiro escondido em caves bolorentas.» Os outros, os que «que ficcionaram uma pátria inexistente, uma ficção de plástico, espécie de fábula crioula, folhetim piegas no qual metade do povo fala um dialecto indígena, intraduzível, e não cabe nem se reflecte na fotografia da pompa e circunstância, nessa vacuidade pífia e inchada de ar putrefacto que se masturba entesando o peito para que nele as sumidades desta pátria de eunucos que se “devoram a si mesmos” espetem, a preceito, uma comenda de lata e desvergonha.»
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Notas
1 . – Nova Vega, Lisboa, 2012
2 . – «Mas o capitão tinha seus caprichos, é natural. Teimava que aquilo era uma guerra e tinha de haver disciplina senão era do caraças, o caos, a anarquia, com a consequente falência moral das tropas: o r.d.m. era para cumprir. E o r.d.m. era o r.d.m. catano, não era o kamasutra, isto não é bordel nem estância balnear, seus tansos, e a partir de agora quem não cumprir o que vem nos buques, tem como prémio um extenso rol de passatempos que vai desde a limpeza das fossas…
…
Como se a presença destes destemidos marinheiros não bastasse para garantir a segurança e bem estar dos mancebos – todos não somos bastantes, botas dixit –, lá estava o destacamento atento, venerando e obrigado da pide, a interrogar peixes, a arrancar unhas aos crocodilos mais subversivos, a espancar sobas e mainatos fugidos à fome, a insultar a lua e a dor de corno, a coçar os colhões e a flor-do-congo até o sangue subir à cabeça da picha, a palitar dentes podres, a encher o ar de vermes e mau cheiro.»
«Os navios negreiros não sobem o Cuando», Nova Veja, 2.ª edição 2005, pág. 20.
3. – A exuberância de «A estranha guerra do Largo do Intendente»:
Pág. 15: «Naquela noite as prostitutas de entre Martim Moniz e Intendente, andavam em roda polideira entre o basto assustadas e o ligeiramente inquietas, era conforme a idade e o tempo gasto em criar musgo e manha para contornar os apertos da bófia e os ataques dos chulos.
…
Pág. 27: O mundo estava cada vez mais igual e enfadonho: uma choldra. Era urgente uma nova revolução cultural. Este país não tem emenda. Desandemos, disse imperioso Stanley. Embarcaram, nessa noite, num cacilheiro trôpego rumo a Xangai. Com eles seguiu Micolinacoçacudedo, cuja escapara, dada a vetusta idade, à saga reformista.
Este país é só relaxações e devassidão capitalista. Sempre afirmei, desde que vi o Afonso bater na Teresinha, que este país não tinha futuro. Micolinacoçacudedo deleitava-se em filosofias de pataco catando piolho vesgo na careca de Stanley Ho, enquanto o luar de Janeiro entrava pela escotilha e lhe acirrava a urticária no caruncho das coxas.»
In «Território Inimigo», Edições Cosmos, 2009.
4 . – Domingos Lobo nasceu em Nagozela.
5. – Título redoliano, como se sabe. Um dia, de uma tese de doutoramento constará uma extensíssima lista das referências literárias contidas nesta, e noutras obras de Domingos Lobo, ainda que se restrinja o inventário à menção de títulos.
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