segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Ernest Hemingway, o mestre das palavras

3 de julho de 2015 - 17h00 


Esta quinta-feira (2) marcou os 54 anos da morte do escritor Ernest Hemingway. E neste ano o Campeonato de Pesca de Peixe Agulha Ernest Hemingway, realizado em Cuba, foi o maior dos últimos tempos. O principal hobby do mestre das palavras era a pesca esportiva e foi, em primeiro lugar, o mar cubano que o seduziu, não a Revolução, apesar de ser um apoiador declarado da investida do jovem Fidel Castro contra o ditador Fulgêncio Batista. 

Por Mariana Serafini


Reprodução
 O Velho e o Mar rendeu a Hemingway, além do Nobel, um Pulitzer
Hemingway e Fidel, nunca foram amigos, na verdade só se viram uma vez, quando o jovem revolucionário venceu o concurso de pesca. Porém, a admiração era mútua. Anos depois da revolução o líder cubano confessou que, durante a batalha na Sierra Maestra estava lendo, Por quem os sinos dobram, e disse ter aprendido muito com a obra sobre táticas de guerrilha. Em tom também de admiração, o escritor disse certa vez em uma entrevista no aeroporto de Havana que a Revolução havia sido o melhor acontecimento em Cuba. Dois mestres, cada um em seu front. 


Apesar de nunca ter tido um forte engajamento político, era nítida a simpatia de Hemingway pelo comunismo, iniciada durante a guerra Civil Espanhola, que ele acompanhou de perto. 

Um escritor genial e um pescador beberrão, talvez em vida tenha sido famoso mais pela segunda característica. Autor de uma obra vasta, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1954, dois anos depois de publicar sua obra-prima O Velho e o Mar

Nesse livro, os valores e a consciência política de Hemingway são expressados com maestria. A obra relata as dificuldades de um velho pescador ao se lançar sozinho no mar em busca de seu sustento. De forma sagaz e intensa, o escritor destrincha a relação do homem com o trabalho na sociedade moderna onde vale entregar a própria vida para fazer valer a máxima de que “o trabalho dignifica o homem”. Não, este trecho não se trata de “spoiler” da obra. O personagem Santiago não morre. 

Santiago, que lutou contra tubarões, se lança ao mar em busca não só do sustento, mas de uma prova capaz de fazê-lo sentir-se digno diante dos demais pescadores, e orgulhoso de seu trabalho. O Velho e o Mar talvez seja a melhor metáfora, ainda hoje, sobre esta relação do homem com o trabalho. 



Foto do fotógrafo da Revolução, Alberto Korda


Uma vida agitada por torneios de pesca, porres homéricos e infinitas discussões com cada uma de suas quatro esposas levaram Hemingway a cometer suicídio. Aos 61 anos, enfrentando hipertensão, diabetes, perda de memória e depressão, Hemingway disparou contra si a mesma arma que seu pai usou para se matar em 1929. Deixou para trás sua última esposa, Mary, sua casa em Habana Vieja com mais de dez mil livros e seu prazer pela pesca.

Hoje os amantes da literatura de Hemingway podem facilmente reconstruir a rotina do escritor por entre as ruas de Havana. Sua casa se tornou um museu, com a organização interna intacta, como ele e Mary deixaram, incluindo todos os livros e manuscritos. Os bares da região também preservam os lugares exatos onde ele costumava se sentar e o famoso mojito, que lhe causou muitas ressacas.

Considerado de uma “geração perdida” de escritores, todos com uma forte relação com a Europa, Hemingway se destacou não só pelo seu temperamento excêntrico, mas principalmente por sua linguagem acessível. Talvez sua relação com os pescadores da região o tenha ajudado a desenvolver este estilo, ao mesmo tempo simples e perspicaz. 

Há apenas uma obra sobre Hemingway no cinema, trata-se do filme Hemingway & Gellhorn, que retrata sua vida desde o fim do casamento com sua segunda esposa, Pauline, e a parceria intensa com a jornalista Marta Gellhorn, com quem iniciou um relacionamento durante a Guerra Civil Espanhola. 

Assista ao trailer de Hemingway & Gellhorn:


um poema de pablo neruda

* Pablo Neruda

Já não se encantarão os meus olhos nos teus olhos,
já não se adoçará junto a ti a minha dor.
Mas para onde vá levarei o teu olhar
e para onde caminhes levarás a minha dor.
Fui teu, foste minha. O que mais? Juntos fizemos
uma curva na rota por onde o amor passou.
Fui teu, foste minha. Tu serás daquele que te ame,
daquele que corte na tua chácara o que semeei eu.
Vou-me embora. Estou triste: mas sempre estou triste.
Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.
...Do teu coração me diz adeus uma criança.
E eu lhe digo adeus.

domingo, 30 de agosto de 2015

William Faulkner - Quando a literatura reconstrói a realidade

28 de agosto de 2015 - 10h12 


Não são poucos os clássicos da literatura que narram histórias reais, exatamente como estas aconteceram. Mas obra de Faulkner destaca-se justamente por reconstruir a realidade e explorar com profundidade características comportamentais de sua sociedade imaginária. Com personagens complexos, expostos a situações extremas, o escritor desafia os limites da capacidade humana. 

Por Mariana Serafini


Arquivo
Faulkner recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1950
Faulkner recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1950

Considerado um dos maiores escritores estadunidenses do século 20, Willian Faulkner (1897 – 1962), traz em sua obra os conflitos e as capacidade humanas em seus extremos, sem recontar a realidade. Por meio da técnica chamada de “fluxo de consciência” – muito utilizada por Virgínia Woolf – o autor narrou a decadência do sul dos Estados Unidos, onde nasceu, com personagens fictícios vivendo situações desesperadoras no condado imaginário de Yoknapatawpha. 


Apesar de ter crescido em uma família influente, com avô banqueiro, pai comerciante e diversos parentes destacados na política, Faulkner levou uma vida simples. Chegou a trabalhar como carpinteiro, pintor de paredes e chefe dos Correios. Quando recebeu a notícia de que havia ganhado o Nobel de Literatura, em 1950, estava arando a terra em sua fazenda. Dizia que preferia a companhia de seus amigos caçadores e da gente simples de sua região, às conceituadas rodas literárias. O escritor recebeu ainda dois prêmios Pulitzer – em 1955 pela obra Uma Fábula, e em 1962 por Os Desgarrados –, e dois National Book Awards. 


Pelas características do cenário imaginário Yoknapatawpha, acredita-se que a obra de Faulkner transcorre na região ao extremo norte do estado de Mississippi, área correspondente ao Condado de Lafayette, cuja principal cidade é Oxford, lugar onde o escritor passou boa parte da vida. A narrativa faulkneriana é considerada hermética e desafiadora porque muitas vezes descreve múltiplos pontos de vista simultaneamente e impõe mudanças bruscas de tempo narrativo. 


A escrita complexa, marcada por longos parágrafos compostos de períodos grandes com pontuação irregular, esparsa ou inexistente, intercalados muitas vezes por parênteses e travessões exige uma profunda cumplicidade do leitor com a obra, além de entrega e concentração. Os desgarrados, última obra de Faulkner, é considerado um dos livros menos complexos. A crítica aponta como as melhores produções do autor O Som e a Fúria (1929), Luz em Agosto (1932),Palmeiras Selvagens (1939). 



A obra costuma ser dividida em três períodos, onde o mais importante é este iniciado em 1929 com O Som e a Fúria, quando o autor apresenta narrativas violentas, austeras, cheias de horror, com pitadas de comicidade exacerbada e ironia fina ao evidenciar a decadência da sociedade estadunidense sem detalhar fatos ou períodos históricos marcantes. 


A primeira parte é composta basicamente por contos muito inspirados no século 19. Já a terceira começa em 1940 com A Aldeia, e segue até o fim da vida do autor, com sua última obra, Os Desgarrados, publicado em 1962. Nesta fase Faulkner vislumbra alguma esperança para a condição humana ao narrar episódios de benevolência e evolução no comportamento de personagens submetidos a situações extremas. 



Neste especial sobre os EUA, Prosa, Poesia & Arte traz o primeiro capítulo da obra Luz em AgostoLeia a íntegra no arquivo em PDF.



Para não restar dúvidas sobre a pronúncia do nome pitoresco do condado de Yoknapatawpha, segue um vídeo onde o próprio Faulkner soletra a palavra e "ensina" a forma correta como deve ser dita. Assista. 











dois sonetos de antónio ferreira

* António Ferreira


Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Rosto, que entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso:

Dum Angélico ar, de um amoroso
Meneio, de um esprito peregrino
Se acendeu em mim o fogo, de que indigno
Me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Não cabe em mim tal bem-aventurança.
É pouco uma alma só, pouco uma vida,
Quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Contente a alma dos olhos água lança
Pelo em si mais deter, mas é vencida
Do doce ardor, que não obedece a rogo.

António Ferreira, in 'Poemas Lusitanos'

Soneto XXXIII  

Eu vi em vossos olhos novo lume,
qu’apartando dos meus a névoa escura,
viram outra escondida formosura,
fora da sorte, e do geral costume.

Em vão seu arco Amor armar presume,
que esse alto esp´rito, essa constância dura,
a outro mais alto Amor guarda a fé pura,
em mais divino fogo se consume.

Nesta desconfiança inda s’acende
em mim um vão desejo de aprazer-vos,
e para isso só busco engenho, e arte.

Senhora, que al fará quem chega a ver-vos,
(já que o desejo a mais se não estende)

que dar-vos de su’alma toda parte?

sábado, 29 de agosto de 2015

Fernando Pessoa - o quinto império

* Fernando Pessoa

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raíz --
Ter por vida sepultura.

Eras sobre eras se somen
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa -- os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

               Fernando Pessoa, in Mensagem



Fitzgerald ou A farsa do “sonho americano”

A farsa do “sonho americano”

Fitzgerald frequentou as festas mais cobiçadas, circulou entre a elite intelectual e se destacou na high society estadunidense. Os hábitos extravagantes lhe deram subsídio para criticar com propriedade a futilidade deste estilo de vida. De modo que, em sua obra, o escritor escancarou a decadência que o materialismo sem limites e a falta de moral desta classe atingiram. 

Por Mariana Serafini


Arquivo

Fitzgerald é considerado um dos maiores escritores do século 20

F. Scott Fitzgerald (1896 – 1940) foi escritor, roteirista e poeta americano. Considerado um dos maiores de seu tempo, a obra mais conhecida, O Grande Gatsby, é uma das mais representativas do romance americano e foi classificada em segundo lugar no top 100 das melhores novelas do século 20.

Todo o conjunto de sua obra é uma crítica aguda ao “sonho americano”. O Grande Gatsby evidencia uma sociedade decadente pós Primeira Guerra Mundial. Fitzgerald faz uma reflexão crítica à socialite estadunidense. 

Ainda muito jovem, o escritor alistou-se como voluntário para a Primeira Guerra Mundial e começou sua carreira literária em 1920 com o romance Este Lado do Paraíso, que lhe rendeu grande popularidade e abriu espaço em publicações de prestígio como The Saturday Evening Post. Em seguida publicou Os Belos e Malditos

Seu último livro lançado em vida foi Suave é a Noite, romance pungente que foi considerado pelo próprio Fitzgerald sua melhor obra. Publicado postumamente, em 1941, O Último Magnata, foi a última tentativa do autor de retratar a farsa do sonho americano. 



Cena do filme O Curioso Caso de Benjamin Button

O conto O Estranho Caso de Benjamin Button (disponível no final do artigo para download em PDF) integrou a primeira obra do autor, intitulada Contos da Era do Jazz. A narrativa traz a história chocante de Benjamin Button, que nasceu velho e rejuvenesceu com o passar dos anos, até não existir mais. 


O sucesso da obra foi tanto que em 2008 ganhou uma adaptação para o cinema. Sob o título de O Curioso Caso de Benjamin Button (no Brasil), o filme dirigido por David Fincher que trouxe Brad Pitt, Cate Blanchett e Tilda Switon no elenco, ganhou três Oscares nas categorias de direção de arte, maquiagem e efeitos especiais. 

Assista ao trailler: 


 


Prosa, Poesia & Arte traz na íntegra o primeiro capítulo do O Grande Gastby

O Grande Gastby

Capítulo primeiro

Quando eu era mais jovem e mais vulnerável, meu pai me deu um conselho que muitas vezes volta à minha mente.


– Sempre que tiver vontade de criticar alguém – recomendou-me –, lembre primeiro que nem todas as pessoas do mundo tiveram as vantagens que você teve.

Ele não falou mais nada a respeito desse assunto, mas durante toda a vida nós sempre mantivemos um nível de relacionamento muito acima da média, embora guardássemos uma certa reserva com relação aos sentimentos; e eu compreendi que ele queria dizer muito mais do que as palavras significavam à primeira vista. Em consequência, sou inclinado a adiar meus julgamentos até conhecer melhor as pessoas, um hábito que me desvendou muitas naturezas interessantes, mas também fez com que eu me transformasse em vítima de um certo número de pessoas especializadas na arte de aborrecer os outros. A mente anormal rapidamente detecta e se prende a esta qualidade quando ela surge em uma pessoa normal, e o que aconteceu foi que, na universidade, muitas vezes me acusaram injustamente de agir como um político, somente porque eu tinha acesso às mágoas secretas de homens desconhecidos, que encontrava ao acaso nas conversas. A maior parte destas confidências eram espontâneas... Seguidamente eu fingia que estava com sono ou preocupado com outras coisas; assumia até mesmo uma ironia hostil ao perceber, por meio de alguns sinais indisfarçáveis, que uma revelação íntima estava tremulando no horizonte; isto porque as revelações íntimas dos jovens, ou pelo menos os termos em que eles as expressam, são em geral repetições evidentes de trechos encontrados em suas leituras, obviamente mutiladas pela supressão dos fatos que lhes são desfavoráveis. Reservar um julgamento é uma atitude que dá margem ao surgimento de esperanças infinitas. Ainda tenho medo de perder alguma coisa se esquecer o que meu pai falou certa vez, com um certo ar de superioridade e menosprezo. Ele disse, e eu repito com a mesma pretensão, que um fato fundamental da vida é que qualidades como decência e dignidade são distribuídas aos homens com grande desigualdade ao nascerem.

Porém, depois de me gabar deste modo de minha tolerância, devo admitir que ela tem seus limites. A conduta de um homem pode ser alicerçada em rocha sólida ou em um pântano pegajoso, mas depois de um certo ponto eu não dou a mínima para os fundamentos sobre os quais ela foi estabelecida. Quando voltei da Costa Leste no último outono, descobri que desejava que o mundo todo estivesse sempre uniformizado e permanecesse em uma espécie de posição de sentido moral; não queria saber de mais investigações escandalosas sobre os meandros e sutilezas do coração humano. Somente Gatsby, o homem que empresta seu nome para esse livro, estava isento dessa minha reação, justamente Gatsby, que representava tudo aquilo que eu desprezava. Se a personalidade é uma série ininterrupta de atitudes bem-sucedidas, então existia alguma coisa de grande beleza nele, uma espécie de sensibilidade aguda para as possibilidades de prazer que a vida oferece, tal como se ele estivesse ligado a uma daquelas máquinas complexas que registram terremotos a quinze mil quilômetros de distância. Essa capacidade de reação aos estímulos não tinha nada a ver com aquela volúvel inconstância que costuma ser dignificada pelo nome de "temperamento criativo"... Era um dom extraordinário para o otimismo, uma presteza romântica tal como nunca encontrei em qualquer outra pessoa e que provavelmente nunca mais encontrarei. Não – Gatsby demonstrou-se correto no final; aquilo que o perseguiu – uma poeira imunda que flutuava na esteira de seus sonhos – foi a mesma coisa que, por um tempo, fez com que eu me desinteressasse por infelicidades fortuitas e pelos entusiasmos temporários dos outros homens.

Minha família descendia de pessoas importantes e abastadas que tinham vivido numa cidade do Centro-Oeste dos Estados Unidos durante três gerações. Os Carraway compõem uma espécie de clã, e temos uma tradição familiar de que descendemos dos duques de Buccleuch, mas o verdadeiro fundador de minha linhagem foi o irmão de meu avô, que veio para cá no ano de 1851, enviou um substituto para combater no exército em seu lugar durante a Guerra da Secessão e fundou a empresa atacadista de ferragens que meu pai administra até hoje.

Eu nunca conheci este tio-avô, mas dizem que sou parecido com ele. Esse julgamento significa principalmente uma referência ao retrato a óleo de um homem de traços fisionômicos bastante fortes e vigorosos que está pendurado no escritório de meu pai. Formei-me na Universidade de New Haven em 1915, exatamente um quarto de século depois dele, e um pouco mais tarde participei daquela última migração das hordas de bárbaros teutônicos, que é em geral conhecida como a Grande Guerra. Gostei tanto dos contra-ataques promovidos pelos Estados Unidos que retornei bastante inquieto. Em vez de ser o cálido centro do mundo, o Centro-Oeste agora me parecia a beira esfarrapada do universo... Assim, decidi ir para o Leste e aprender o ofício de corretor de ações. Todas as pessoas que eu conhecia estavam trabalhando com ações, de tal modo que julguei que o mercado era capaz de sustentar mais um jovem solteiro. Todas as minhas tias e tios conversaram durante dias sobre minhas intenções, tal como se estivessem escolhendo uma escola preparatória que me fosse adequada, e finalmente disseram: "Bem, está certo...", com fisionomias muito graves e hesitantes. Meu pai concordou em financiar-me durante um ano e, depois de vários atrasos, vim para a Costa Leste, na primavera de 1922, acreditando que a mudança tivesse caráter permanente.

A coisa mais prática a fazer era encontrar acomodações na cidade, mas na época fazia muito calor e eu acabara de deixar uma região de extensos gramados e árvores amigas; deste modo, quando um rapaz do escritório sugeriu que alugássemos uma casa juntos em uma das cidades-dormitório próximas a Nova York, a ideia me pareceu bastante interessante. Ele até mesmo encontrou a casa, um sobradinho de madeira, com divisórias de compensado e bastante maltratado pelo tempo, ao preço de oitenta dólares por mês; mas no último minuto a firma ordenou que ele se transferisse para a filial de Washington, o que me levou a assumir o aluguel completo e a partir sozinho para o campo. Eu tinha um cachorro (ou pelo menos tive por alguns dias, até que ele fugisse), além de um automóvel Dodge e uma faxineira de origem finlandesa, que fazia minha cama e preparava o café da manhã enquanto resmungava conselhos e provérbios em finlandês sobre o fogão elétrico.
Eu me senti meio sozinho por um dia ou dois até que, certa manhã, um homem que havia se mudado para o bairro um pouco depois de mim fez-me parar enquanto eu caminhava pela rua.

– Como é que vou até a aldeia de West Egg? – perguntou, com um certo ar de desamparo.

Indiquei-lhe o caminho. E assim que comecei a caminhar já não me sentia mais sozinho. Agora eu me transformara em um guia, um desbravador de caminhos, um autêntico colonizador. Com a maior naturalidade, ele presumiu que eu conhecia perfeitamente a região e começou a percorrer o bairro em total liberdade.

E assim, com o sol brilhando e vendo uma imensa quantidade de folhas brotando nos galhos das árvores, no mesmo ritmo espantoso daqueles filmes em câmera acelerada, senti aquela familiar convicção de que, junto com o verão, a vida recomeçava.

Para início de conversa, eu tinha muito material para ler a respeito de minha nova profissão, e o ar transmitia tanta saúde e vigor que era impossível permanecer deprimido por muito tempo. Tinha comprado uma dúzia de livros sobre operações bancárias, administração de crédito e investimentos em ações da Bolsa, e eles erguiam-se em minha prateleira, em vermelho e ouro, como se fossem notas de banco recém-saídas da Casa da Moeda, prometendo revelar-me os brilhantes segredos que somente Midas, Morgan e Mecenas conheciam. E eu tinha a melhor das intenções de ler muitos outros livros além destes. Eu era bastante ligado à literatura quando estava na universidade... Houve até um ano em que escrevi uma série de editoriais muito solenes e bastante óbvios para o Yale News . Agora pretendia trazer toda essa cultura de volta à minha vida e tornar-me o mais limitado dos especialistas, o "homem bem-informado". E isso não é para ser apenas um epigrama: a experiência demonstra que a vida é usufruída com muito maior sucesso quando contemplada através de uma única janela.

Foi simplesmente obra do acaso que eu tivesse alugado uma casa em uma das comunidades mais estranhas da América do Norte. Ficava naquela ilha estreita e barulhenta que se localiza justamente a leste de Nova York... e na qual existem, entre outras curiosidades da natureza, duas formações geológicas bastante incomuns. A uns trinta quilômetros da cidade, ergue-se um par de enormes ovos de pedra, idênticos em contorno e separados somente por uma baía estreita, que se projetam para o alto junto à massa de água salgada mais mansa e tranquila do hemisfério ocidental, o grande caminho úmido conhecido como o Estreito de Long Island. Não são perfeitamente ovais: assim como o ovo na história que contam a respeito de Colombo, os dois estão achatados no ponto de contato com as respectivas bases; mas sua semelhança física com ovos verdadeiros deve ser um motivo de assombro perpétuo para as gaivotas que voam sobre eles. Para nós, que não temos asas, um fenômeno mais interessante é sua falta de semelhança em todos os aspectos, salvo o formato e o tamanho.

Eu morava em West Egg, que era, digamos, a área que na época se encontrava menos na moda, embora este seja um rótulo muito superficial para expressar o contraste bizarro e não pouco sinistro que existia entre eles. Minha casa ficava bem na ponta do ovo, a menos de cinquenta metros do Estreito, apertada entre duas mansões imensas, que eram alugadas por doze ou quinze mil dólares por estação. Aquela que ficava à minha direita seria considerada um prédio colossal, qualquer que fosse o critério adotado pelo observador: uma imitação bastante aproximada do hotel de ville de alguma cidade da Normandia, com uma torre de um dos lados que parecia estranhamente nova sob a barba fina da hera que havia crescido recentemente ao redor dela e uma piscina de mármore, além de mais de vinte hectares de gramado e jardins. Era a mansão de Gatsby. Quer dizer, como eu ainda não conhecia o sr. Gatsby, era uma mansão habitada por um cavalheiro que tinha esse nome. Minha casa era uma monstruosidade, mas uma monstruosidade muito pequena, que não chamava a atenção, e tinha as vantagens de uma vista para o mar, um panorama parcial do gramado de meu vizinho e a proximidade consoladora de milionários... tudo por oitenta dólares ao mês.

Do outro lado da pequena enseada, os palácios brancos da elegante aldeia de East Egg brilhavam ao longo da praia, e a história desse verão realmente começou na noite em que dirigi meu carro até lá para jantar com Tom Buchanan e a esposa. Daisy era minha prima em segundo ou terceiro grau, e Tom e eu nos conhecemos na faculdade. E logo depois da guerra eu tinha passado dois dias na casa deles, em Chicago.

O marido de Daisy, dentre várias outras proezas físicas, tinha sido um dos melhores jogadores que já haviam passado pelo time amador de futebol americano da Universidade de New Haven... Sua atuação na equipe tinha sido tão importante que ele tornara-se conhecido em todo o país. Era um daqueles homens que atingem um grau tal de excelência aos 21 de idade que tudo que lhes acontece depois tem um sabor de anticlímax. Sua família era extremamente rica. De fato, enquanto estava na faculdade, sua liberalidade com o dinheiro tinha sido até motivo de reprovação pelos colegas... Mas agora ele tinha saído de Chicago e vindo para o Leste em um estilo que chegava a tirar o fôlego; por exemplo, tinha trazido com ele uma tropilha de pôneis treinados para jogar polo, que haviam sido criados no haras da família em Lake Forest. Era difícil de entender que um homem de minha própria geração pudesse ser rico o bastante para desfrutar de um privilégio desses.

A razão que os tinha levado à Costa Leste eu desconhecia. Haviam passado um ano na França, sem nenhum motivo em particular, e depois andaram para cá e para lá sem descanso, parando em todos esses lugares onde as pessoas jogam polo e são ricas. Mas dessa vez a mudança era permanente, dissera Daisy ao telefone, só que eu não acreditava. A minha visão não atingia o íntimo do coração de Daisy, mas sentia que Tom iria vaguear para sempre, buscando, com um tanto de melancolia, a tensão dramática de algum jogo de futebol americano perdido para sempre no passado.

E assim aconteceu que, em uma noite cálida e ventosa, me dirigi até East Egg para ver dois velhos amigos que eu praticamente não conhecia. A casa deles era ainda mais imponente do que eu esperava, uma mansão em estilo georgiano colonial, construída junto à baía, pintada em tons alegres de vermelho e branco. O gramado começava na praia e subia uns quatrocentos metros até a porta da frente, intercalado por relógios de sol, pequenos muros de tijolos e canteiros de flores resplandecentes... Quando finalmente chegava à casa, dividia-se para os dois lados em brilhantes trepadeiras, como se houvesse alcançado o ponto culminante de sua corrida. A fachada da casa era quebrada por uma série de porta-janelas envidraçadas de cima a baixo, em estilo francês, brilhantes ao reflexo dourado do sol e totalmente abertas para receber a brisa cálida da tarde. Tom Buchanan, vestido em roupas de montaria, estava de pé, em frente ao pórtico de entrada, com as pernas bem afastadas uma da outra.

Ele tinha mudado, desde os tempos da Universidade de New Haven. Agora era um homem robusto de trinta anos, com os cabelos cor de palha e uma boca cuja expressão bastante dura era confirmada por seus modos dominadores. Dois olhos luminosos e arrogantes eram a característica mais marcante de seu rosto e lhe davam a aparência de alguém que estava sempre pronto para agredir. Nem mesmo o luxo afeminado de seu traje de montaria podia ocultar a enorme força e energia daquele corpo: ele parecia encher aquelas botas lustrosas até forçar os laços superiores dos cordões, e até mesmo era possível ver o movimento dos grandes músculos quando seus ombros se moviam sob o tecido fino do casaco. Era um corpo capaz de enormes esforços físicos – um corpo cheio de crueldade.

Sua voz de tenor, rouca e forte, aumentava ainda mais a impressão de impaciência e fúria contida que ele transmitia. Havia nela um toque de desprezo paternal até mesmo quando se dirigia às pessoas de quem gostava... e houve homens em New Haven que o odiaram profundamente por isto.

"Ora, não pense que a minha opinião sobre esse assunto é decisiva", ele parecia estar dizendo, "só porque sou mais forte e mais homem do que você". Nós participávamos da mesma sociedade de veteranos acadêmicos e, mesmo que nunca tenhamos sido íntimos, sempre tive a impressão de que ele me aprovava e queria, do seu jeito áspero e desafiador, que eu gostasse dele também.

Ficamos conversando por alguns minutos no alpendre ensolarado.

– Eu tenho uma bela propriedade aqui – disse ele, seus olhos inquietos cintilando ao redor.

Segurou-me por um braço e fez com que me virasse, enquanto movimentava a outra mão, larga e achatada, em um gesto que abrangia toda a vista da frente da casa, incluindo um jardim em estilo italiano, que fora construído em uma parte mais rebaixada do terreno, uns dois mil metros quadrados de roseiras que exalavam um aroma profundo e penetrante, e um barco a motor de proa arredondada que enfrentava a maré junto à praia.

– Pertencia a Demaine, o homem do petróleo – disse ele, fazendo-me virar de novo, com educação, mas depressa. – Vamos entrar.
Atravessamos um saguão de teto alto e entramos em um espaço pintado de um rosa brilhante, ligado fragilmente ao restante da casa por meio de portas envidraçadas de cima a baixo situadas em ambas as extremidades. As portas estavam escancaradas e sua pintura branca brilhava contra a grama fresca do gramado, que parecia prolongar-se casa adentro. A brisa soprava através da sala, fazendo com que as cortinas balançassem de um lado para o outro como pálidas bandeiras, retorcendo-as e fazendo-as subir em direção ao teto, que lembrava o glacê de um bolo de casamento; depois elas caíam sobre o tapete cor de vinho, provocando ondulações e sombras sobre ele, como o vento sobre as ondas do mar.

O único objeto imóvel na sala era um enorme sofá no qual duas mulheres jovens flutuavam como se estivessem sobre um balão ancorado. As duas estavam vestidas de branco e suas roupas drapejavam e balançavam, como se o vento as tivesse levado para um voo rápido ao redor da casa e recém as tivesse trazido de volta. Devo ter ficado parado por alguns momentos escutando o som do vento nas cortinas e os grunhidos de um quadro que roçava a parede. Então houve um estrondo, quando Tom Buchanan fechou as portas envidraçadas do fundo e o vento aprisionado morreu ao redor da peça, e as cortinas, os tapetes e as vestes das duas jovens pousaram lentamente no assoalho.

A mulher mais jovem era desconhecida para mim. Ela estava estendida sobre o divã, completamente imóvel e com o queixo um pouco erguido, como se estivesse equilibrando nele alguma coisa que estava a ponto de cair. Se ela me observava com o canto dos olhos, não deu o menor sinal... e, de fato, a minha surpresa em encontrá-la foi tão grande que quase murmurei uma desculpa por tê-la perturbado com minha entrada.
A outra garota era Daisy, que fez menção de erguer-se: inclinou-se levemente para a frente com uma expressão acanhada e então deu uma risadinha encantadora e absurda, que retribuí enquanto avançava pela sala.

– Estou pa-ra-li-sa-da de felicidade.

Ela riu de novo, como se tivesse dito alguma coisa muito espirituosa, e segurou a minha mão por um momento, erguendo os olhos para meu rosto com uma expressão que parecia significar que não existia nenhuma outra pessoa no mundo que ela tivesse mais vontade de encontrar. Era esse o seu jeito. Ela me informou em um murmúrio que o sobrenome da garota que estava se equilibrando sobre o sofá era Baker. (Algumas pessoas diziam que o murmúrio habitual de Daisy se destinava a fazer com que as pessoas se inclinassem em sua direção. Uma crítica irrelevante que não tornava o maneirismo menos encantador.)

De qualquer maneira, os lábios de Miss Baker se moveram enquanto ela fazia um sinal quase imperceptível com a testa em minha direção e então rapidamente inclinava a cabeça para trás de novo. Provavelmente, o objeto invisível que ela estava equilibrando sobre a cabeça tinha escorregado um pouco e ela levara um pequeno susto. E mais uma vez uma espécie de desculpa subiu aos meus lábios. Quase toda exibição de autossuficiência produz em mim uma sensação de espanto e admiração.

Voltei novamente os olhos para minha prima, que começou a me fazer perguntas em sua voz baixa e emocionante. Tinha o tipo de voz que o ouvido acompanha enquanto flutua em altos e baixos, como se cada fala fosse um arranjo de notas que jamais se repetirão. Seu rosto era triste e encantador e cheio de coisas esfuziantes: seus olhos brilhavam e a boca cintilava apaixonadamente, mas havia um convite excitante em sua voz, algo que os homens que se interessaram por ela achavam muito difícil esquecer; era como uma compulsão para cantar, um "Escute!" sussurrado, uma suspeita de que ela tinha feito coisas alegres e excitantes há poucos minutos e uma promessa de que havia coisas ainda mais alegres e excitantes pairando à espera da próxima hora.

Eu disse a ela que havia passado um dia em Chicago durante minha viagem para a Costa Leste e que uma dúzia de pessoas lhe haviam enviado seu afeto e suas lembranças por meu intermédio.

– Quer dizer que têm saudades de mim? – gritou ela, em êxtase.

– A cidade inteira está arrasada. Todos os automóveis pintaram de preto as rodas traseiras do lado esquerdo como se fossem coroas funerárias e ouvem-se murmúrios de tristeza ao longo da margem setentrional, durante as noites inteiras.

– Ai, que lindo! Vamos voltar, Tom. Amanhã mesmo!

E então ela acrescentou, de uma forma um tanto irrelevante:

– Você tem de conhecer a bebê.

– Gostaria muito.

– Bem, acontece que agora ela está dormindo. Ela tem três anos. Você nunca a viu?

– Nunca.

– Bem, você precisa vê-la. Ela é...

Tom Buchanan, que estava inquieto e caminhava sem parar pela sala, parou e colocou uma das mãos em meu ombro.

– Em que você trabalha, Nick?

– Sou corretor de ações.

– Em que firma?

Eu disse para quem trabalhava.

– Nunca ouvi falar neles – observou com decisão.

Isso me aborreceu.

– Mas vai – respondi com secura. – Vai ouvir, se permanecer aqui na Costa Leste.

– Ah, mas vou permanecer no Leste, não se preocupe – disse ele, olhando rapidamente para Daisy e então de volta para mim, como se estivesse à espera de alguma outra coisa. – Eu seria um idiota se fosse morar em qualquer outro lugar.

Nesse ponto, Miss Baker exclamou: "Está absolutamente certo!", de uma forma tão súbita que me assustei. Eram as primeiras palavras que ela dizia desde que eu entrara no salão. Evidentemente, ela ficou tão surpresa quanto eu, porque bocejou e ergueu-se do sofá com uma série de movimentos rápidos e firmes.

– Estou toda dura – queixou-se. – Estou deitada nesse sofá desde que me conheço por gente...

– Não olhe para mim – disparou Daisy. – Passei a tarde te convidando para dar um passeio até Nova York.

– Não, muito obrigada – disse Miss Baker, olhando na direção dos quatro coquetéis que acabavam de chegar da copa. – Estou fazendo um treinamento rigoroso.

O dono da casa olhou para ela com uma expressão de incredulidade.

– É mesmo? – Ele engoliu o drinque como se fosse uma gota no fundo de um copo. – Simplesmente não posso entender como você consegue encontrar tempo para fazer alguma coisa.

Olhei para Miss Baker, imaginando que coisa era essa que "ela fazia". Gostei de olhar para ela. Era uma garota esguia e de seios pequenos, com um porte ereto, que ela acentuava jogando o corpo para trás na altura dos ombros como se fosse um jovem cadete do exército. Seus olhos cinzentos, apertados por causa da luz do sol, contemplaram-me de volta com uma recíproca e polida curiosidade do alto de um rosto pálido, encantador e descontente. Ocorreu-me então que eu já a tinha visto, ou pelo menos vira uma fotografia dela em algum lugar.

– Você mora em West Egg – observou ela, com desdém. – Eu conheço alguém que mora por lá.

– Eu não conheço uma única...

– Você deve conhecer Gatsby.

– Gatsby? – quis saber Daisy. – Que Gatsby?

Antes que eu pudesse responder que ele era meu vizinho, o jantar foi anunciado; enfiando seu braço robusto por baixo do meu de uma forma imperativa, Tom Buchanan obrigou-me a sair do salão da mesma maneira que moveria uma peça de um jogo de damas para o quadrado seguinte.

Esbelta e languidamente, com as mãos colocadas levemente nos quadris, as duas jovens nos precederam até um alpendre também pintado de rosa que se abria em direção ao pôr do sol, onde quatro velas bruxuleavam levemente sobre a mesa.

– Por que velas ? – objetou Daisy, com o cenho cerrado. Ela apagou uma por uma com a ponta dos dedos. – Dentro de duas semanas chegará o dia mais longo do ano – disse ela, contemplando-nos a todos com uma expressão radiante. – Vocês também ficam esperando uma porção de tempo pelo dia mais longo do ano e então se distraem e não percebem que chegou? Eu sempre espero uns quantos dias pelo dia mais longo do ano... e todos os anos, quando vou me dar conta, o dia já passou.

– Devíamos planejar alguma coisa – disse Miss Baker, bocejando e sentando-se à mesa como se estivesse indo para a cama.

– Tudo bem – falou Daisy. – O que é que nós vamos planejar? – Ela voltou-se para mim como se estivesse desamparada. – O que é que as pessoas planejam para esses dias?

Antes que eu pudesse responder, seus olhos se cravaram com uma expressão de assombro sobre seu dedo mínimo.

– Olhem! – ela se queixou. – Machuquei meu dedinho!

Todos olhamos – a junta estava preta e azulada.

– Foi você que fez isso, Tom – disse ela, em tom acusador. – Eu sei que você não tinha a intenção, mas foiculpa sua . É isso que eu ganho por ter me casado com um brutamontes, um grande espécime puramente físico, enorme e desajeitado...

– Eu odeio essa palavra, "brutamontes" – objetou Tom, mal-humorado –, mesmo que seja só de brincadeira.

– Brutamontes – insistiu Daisy.

Algumas vezes ela e Miss Baker falavam ao mesmo tempo, mas de uma maneira tão natural que nunca chegava às raias da tagarelice, tão fresca como seus vestidos brancos e seus olhos impessoais, dos quais estava ausente toda espécie de desejo. Elas estavam ali e aceitavam Tom e também a mim, fazendo apenas um delicado esforço para entreter ou serem entretidas. Sabiam que passado algum tempo o jantar acabaria e que um pouco mais tarde a noite também terminaria e poderia ser posta de lado com displicência. Tudo era muito diferente do que ocorria no Oeste, onde as reuniões noturnas eram empurradas com pressa de frase em frase até o fim, em uma expectativa continuamente frustrada, quem sabe pelo simples medo do momento propriamente dito.

– Você faz com que eu me sinta pouco civilizado, Daisy – confessei, enquanto tomava meu segundo copo de um clarete cuja qualidade me impressionou bastante, ainda que apresentasse um certo gosto de rolha. – Vocês não podem falar a respeito das plantações ou coisa assim?
Eu não estava querendo dizer nada em particular com essa observação; pretendia apenas que fosse espirituosa, mas foi aceita de maneira inesperada.

– A civilização está caindo aos pedaços – interrompeu Tom. – Eu me transformei em um terrível pessimista a respeito de tudo. Você leu A ascensão dos impérios de cor , desse tal de Goddard?

– Não, não li – respondi, muito surpreso com seu tom de voz.

– Bem, é um ótimo livro e todo mundo deveria lê-lo. A ideia geral é a de que, se não tivermos cuidado, a raça branca vai ser... ora, vai ser totalmente subjugada. Tudo isso é uma questão científica, foi tudo provado.

– Tom está ficando muito profundo – disse Daisy, com uma expressão de tristeza um tanto indiferente. – Ele fica lendo esses livros profundos cheios de palavras difíceis. Qual foi aquela palavra que nós...

– Bem, esses livros são todos científicos – insistiu Tom, lançando-lhe um olhar impaciente. – Este camarada estudou o tema a fundo. A responsabilidade é nossa, porque somos nós que pertencemos à raça dominante. Temos de ficar de olhos bem abertos e ter cuidado com todas essas outras raças, caso contrário eles vão assumir o controle das coisas.

– Nós temos de derrotá-los – murmurou Daisy, piscando furiosamente os olhos por causa da luz muito forte do sol.

– Vocês deveriam morar na Califórnia – começou Miss Baker, porém Tom interrompeu-a, movendo-se desajeitado sobre o assento de sua cadeira.

– A ideia central desse livro é que nós somos nórdicos. Eu sou, você é, você é e... – após uma hesitação infinitesimal, ele incluiu Daisy com um leve sinal de cabeça; e ela piscou para mim de novo. – E fomos nós que produzimos todas as coisas que contribuíram para construir a civilização... ora, a ciência e as artes e tudo o mais. Percebem?

Havia alguma coisa de patético em sua concentração, como se sua complacência, mais aguda agora do que fora antigamente, não lhe bastasse mais. Quase na mesma hora, o telefone tocou dentro da casa e o mordomo saiu do alpendre para atender; Daisy aproveitou a interrupção e inclinou-se em minha direção.

– Vou lhe contar um segredo de família – cochichou, entusiasmada. – É a respeito do nariz do mordomo. Você quer saber qual é o problema com o nariz do mordomo?

– Foi só por isso que vim aqui essa noite.

– Bem, acontece que nem sempre ele foi mordomo; ele costumava polir a prataria para algumas pessoas em Nova York que tinham uma baixela de prata para duzentas pessoas. Ele passava esfregando aquela baixela inteira da manhã à noite, até que finalmente isto começou a afetar-lhe o nariz...

– As coisas foram indo de mal a pior – sugeriu Miss Baker.

– Sim. As coisas foram ficando piores a cada dia que passava até que, finalmente, ele teve de se demitir do emprego.

Por um momento, os derradeiros raios da luz do sol caíram como uma romântica carícia sobre seu rosto; sua voz era tão baixa que compeliu-me a me inclinar para a frente, ansioso, para escutar melhor. Então o brilho empalideceu, cada raio de luz abandonando o seu rosto com uma tristeza insuportável, como crianças saindo de uma rua agradável ao anoitecer.

O mordomo retornou e murmurou alguma coisa junto ao ouvido de Tom. Este franziu o cenho, empurrou para trás a cadeira e entrou na casa sem dizer uma palavra. Como se sua ausência despertasse alguma coisa dentro dela, Daisy inclinou-se de novo em minha direção, a voz ardente, melodiosa.

– Eu adoro vê-lo sentado à minha mesa, Nick. Você me lembra uma... uma rosa, uma rosa absoluta. Ele não a faz lembrar também? – disse ela, voltando-se para Miss Baker em busca de confirmação. – Ele não parece uma rosa absoluta?

Isso não era verdade. Não me pareço nem de leve com uma rosa. Ela estava apenas improvisando, mas uma calidez verdadeira fluía dela, como se seu coração estivesse tentando sair e entregar-se a mim em uma daquelas palavras ofegantes e cheias de emoção. Então, de súbito, ela jogou o guardanapo em cima da mesa, murmurou um pedido de desculpas e entrou na casa.

Miss Baker e eu trocamos um rápido olhar, conscientemente despido de significado. Eu estava a ponto de falar quando ela empertigou-se na cadeira e disse: "Shhh!", em um tom que me recomendava cuidado. Da sala ao lado, ouvia-se um murmúrio abafado de uma calorosa discussão, e Miss Baker inclinou-se nessa direção sem o menor constrangimento, tentando escutar. O murmúrio cresceu, até tornar-se quase compreensível, depois enfraqueceu, então cresceu de novo em um arroubo de excitação, até que cessou completamente.

– Este sr. Gatsby de quem você falou é meu vizinho – comecei.

– Não fale. Eu quero escutar para ficar sabendo o que vai acontecer.

– Está acontecendo alguma coisa? – perguntei inocentemente.

– Quer dizer que você não sabe? – disse Miss Baker, honestamente surpresa. – Eu pensei que todo mundo soubesse.
– Eu não sei.

– Ora – ela disse com um ar hesitante –, Tom arranjou uma mulher em Nova York.

– Arranjou uma mulher? – repeti, quase sem expressão.

Miss Baker concordou com um movimento de cabeça.

– Bem que ela poderia ter a decência de não telefonar na hora do jantar. Você não acha?

Antes mesmo que eu pudesse entender perfeitamente o que ela queria dizer, escutou-se o farfalhar de um vestido e o ruído de botas de couro, e 

Tom e Daisy estavam de volta à mesa.

– Não pude evitar! – disse Daisy, com uma alegria cheia de tensão.

Ela sentou-se, lançou um olhar perscrutador em direção a Miss Baker, depois examinou-me também e continuou:

– Fui dar uma rápida olhada lá fora e está uma atmosfera muito romântica. Há um passarinho no gramado e estou achando que é um rouxinol 
que atravessou o oceano em um dos barcos da Cunard ou da White Star. Ele está lá, cantando, cheio de entusiasmo... – sua voz parecia cantar 
também. – Você não acha isso romântico, Tom?

– Muito romântico – concordou ele. E então dirigiu-se a mim em um tom de voz melancólico: – Se após o jantar ainda estiver claro, quero mostrar-lhe a estrebaria.

O telefone tocou novamente dentro da casa, de uma forma assustadora, e Daisy sacudiu a cabeça de maneira decidida para Tom, fazendo com que o assunto da estrebaria e de fato todos os assuntos se desvanecessem no ar. Entre os fragmentos esparsos dos últimos cinco minutos sentado à mesa, lembro-me de que as velas foram acesas novamente, sem o menor motivo, e de ter uma nítida consciência de que, ao mesmo tempo em que desejava olhar diretamente para o rosto de todos, queria evitar todos os olhares. Não podia adivinhar o que Daisy ou Tom estavam pensando, mas duvido que até mesmo Miss Baker, que parecia haver assumido uma atitude de ceticismo, fosse capaz de afastar de sua mente a urgência metálica e estridente deste quinto conviva. Para um determinado tipo de temperamento, a situação poderia ter parecido até mesmo divertida... mas meus instintos me mandavam telefonar imediatamente para a polícia.

É desnecessário dizer que os cavalos não foram mencionados outra vez. Tom e Miss Baker, caminhando a cerca de um metro e meio de distância um do outro, atravessaram o crepúsculo e se dirigiram para a biblioteca, como se iniciassem o velório de um cadáver perfeitamente tangível, ao mesmo tempo que eu, tentando parecer agradavelmente interessado e um pouco surdo, segui Daisy por uma sucessão de varandas até o pórtico da frente. Envoltos em densas sombras, nos sentamos em um sofá de vime.

Daisy colocou o rosto entre as mãos como se estivesse tateando seu formato encantador, enquanto seu olhar se deslocava lentamente até pousar no crepúsculo aveludado que envolvia o jardim. Percebi as emoções tumultuadas que se debatiam dentro dela, então fiz algumas perguntas sobre sua garotinha, o que me pareceu tranquilizador.

– Nós não nos conhecemos muito bem, Nick – disse ela, subitamente. – Mesmo sendo primos. Você nem veio ao meu casamento.

– Eu não tinha voltado da guerra.

– É verdade... – disse ela, com hesitação. – Bem, eu passei por um mau pedaço, Nick, e fiquei bastante cética em relação a tudo.
Era evidente que ela tinha razões para ser cética. Esperei, mas ela não disse mais nada. Passado um momento, fiz uma tentativa bastante débil de retornar ao assunto de sua filha.

– Suponho que ela já fale e... coma de tudo, e assim por diante.

– Ah, claro! – ela me lançou um olhar ausente. – Escute, Nick: deixe-me contar-lhe o que foi que eu disse quando ela nasceu. Quer ouvir?

– Claro que quero.

– Isso vai lhe demonstrar como é que passei a encarar... certas coisas. Bem, ela ainda não tinha uma hora de vida e só Deus sabe onde estava Tom. Eu acordei da anestesia com um sentimento de completo abandono e imediatamente perguntei à enfermeira se era menino ou menina. Ela me disse que era uma menina e então virei meu rosto para o lado e chorei. "Tudo bem," – eu disse – "estou contente que seja uma menina. Espero que seja uma menina boba: é a melhor coisa que pode acontecer a uma menina neste mundo, ser uma linda bobinha." Sabe, e agora, de qualquer forma, eu acho que as coisas estão horríveis – prosseguiu ela, demonstrando firme convicção. – Todo mundo acha isto, pelo menos as pessoas mais perspicazes. E eu sei que estão . Já estive em toda parte, já vi de tudo e já fiz de tudo.

Seus olhos cintilaram, percorrendo o espaço a seu redor de uma forma desafiadora, lembrando bastante o olhar de Tom, e ela riu com um emocionado desdém:

– Sofisticada... Ah, meu Deus, como eu sou sofisticada!

No instante em que parou de falar, cessando de exigir minha atenção e me obrigar a acreditar no que dizia, percebi que basicamente não existia sinceridade alguma no que ela havia dito. Senti-me bastante desconfortável, como se a noite inteira tivesse sido uma espécie de truque destinado a criar e extrair emoções. Esperei e, passado um momento, ela me olhou com um sorriso debochado em seu rosto lindo, como se estivesse declarando fazerem parte, ela e Tom, de alguma sociedade secreta muito exclusiva.

Dentro da casa, a sala rosada resplendia de luz. Tom e Miss Baker estavam sentados cada um em uma ponta do longo sofá e ela lia alguma coisa para ele no Saturday Evening Post . As palavras eram murmúrios sem inflexão e corriam juntas como se fossem uma tranquilizante melodia. As luzes das lâmpadas, brilhantes nas botas dele e foscas no amarelo de folhas de outono dos cabelos dela, reluziram contra o papel acetinado quando ela virou uma página da revista com um movimento que provocou uma rápida vibração dos músculos delicados do seu braço.
Quando entramos, ela nos pediu silêncio por um momento com a mão erguida.

– Continua – disse ela, jogando a revista sobre a mesa – exatamente no próximo número.

Com um movimento ágil, ela firmou os joelhos e levantou-se.

– Dez horas – comentou, aparentemente enxergando as horas no teto. – Hora de uma boa menina ir para a cama.

– Jordan vai jogar o torneio de amanhã – explicou Daisy. – Lá em Westchester.

– Ora... Então você é Jordan Baker.

Agora eu sabia por que seu rosto me parecia familiar... Sua agradável expressão de desdém me contemplara do fundo de muitas fotografias em 
rotogravura sobre a vida esportiva em Asheville, Hot Springs e Palm Beach. Ouvira também uma história a seu respeito, uma história maldosa e desagradável, mas fora há muito tempo e eu não lembrava mais o que era.

– Boa noite – disse ela, baixinho. – Acordem-me às oito, por favor.

– Se você levantar...

– Levanto, sim. Boa noite, sr. Carraway. Vamos nos ver outra vez.

– É claro que vão – confirmou Daisy. – De fato, acho que vou arranjar o casamento de vocês. Venha nos visitar com frequência, Nick... e eu acho que vou... bem... empurrar vocês um para o outro. Vocês sabem como se faz... Acidentalmente, tranco vocês juntos num armário ou empurro os dois em um barco mar adentro, esse tipo de coisa...

– Boa noite! – repetiu Miss Baker, subindo a escada. – Não escutei nem uma só palavra que você disse.

– Ela é uma ótima moça – disse Tom, após um momento. – Não deviam deixar que ela viajasse assim sozinha por todo o país.

– Quem não devia? – indagou Daisy, friamente.

– A família dela, ora essa!

– A família dela consiste de uma tia que tem mais ou menos mil anos de idade. Além disso, Nick vai começar a cuidar dela, não vai, Nick? Ela 
vai passar vários finais de semana aqui em casa durante este verão. Acho que a influência do lar vai lhe fazer muito bem.
Daisy e Tom olharam um para o outro em silêncio por um momento.

– Ela é de Nova York? – perguntei rapidamente.

– Veio de Louisville. Passamos juntas nossa infância de meninas brancas. Nossa linda e imaculada...

– Você abriu seu coração a Nick enquanto estavam na varanda? – Tom indagou subitamente.

– Será que abri? – falou ela, enquanto me olhava. – Não consigo lembrar, mas a impressão que tenho é de que conversamos sobre a raça nórdica. Sim, tenho certeza de que o tema era esse. É o tipo de assunto que toma conta da gente, e quando a gente menos percebe...

– Não acredite em tudo o que ouve, Nick – aconselhou-me ele.
Respondi com delicadeza que não havia escutado nada e, alguns minutos depois, levantei-me para ir embora. Eles me acompanharam até a porta e permaneceram lado a lado, emoldurados por um alegre retângulo de luz. Quando eu estava ligando o motor, Daisy gritou, peremptoriamente:

– Espere! Esqueci de lhe perguntar uma coisa importante. Ouvimos dizer que você estava noivo de uma garota no Oeste.

– É verdade ! – corroborou Tom, com gentileza. – Ouvimos dizer que você estava noivo.

– É uma calúnia. Sou pobre demais.

– Mas nós ouvimos dizer – insistiu Daisy, abrindo-se novamente como uma flor, de uma maneira que me surpreendeu. – Três pessoas diferentes nos contaram, portanto deve ser verdade.

É claro que eu sabia a que eles estavam se referindo, mas não estava sequer vagamente comprometido. O fato de que os fofoqueiros tinham anunciado os proclamas era uma das razões por que eu tinha vindo para o Leste. Você simplesmente não pode deixar de sair com uma velha amiga só porque certas pessoas estão falando e, obviamente, eu não iria me casar só por causa desta boataria.

Aquele interesse me comoveu e fez com que eles parecessem menos ricos e distantes. Mas mesmo assim eu me sentia confuso e um pouco aborrecido enquanto me afastava da casa. A impressão que eu tinha era a de que Daisy deveria abandonar tudo e fugir com a criança nos braços... embora tudo levasse a crer que ela não tinha a menor intenção de fazê-lo. Quanto a Tom, o fato de que ele "tinha uma mulher em Nova York" era muito menos surpreendente do que ele ter ficado deprimido pela leitura de um livro. Alguma coisa estava fazendo com que ele mordiscasse as beiradas de velhas ideias, como se seu robusto egotismo físico não conseguisse mais alimentar seu coração arrogante.

Já parecia ser pleno verão nos telhados das casas e em frente às garagens construídas à beira da estrada, em que novas bombas vermelhas de gasolina se erguiam no meio de poças de luz, e quando cheguei à minha propriedade em West Egg, coloquei o carro na garagem e fiquei sentado durante algum tempo em um cortador de grama esquecido no pátio. O vento tinha parado, deixando atrás de si uma noite brilhante e cheia de ruídos, em que os pássaros batiam as asas nos galhos das árvores e os sapos faziam um som contínuo que lembrava o de um órgão, enquanto a força da terra os enchia de vida como se fosse um grande fole. A silhueta de um gato se movendo tremulou contra a luz da lua e, ao virar a cabeça para observá-lo, percebi que não estava sozinho. A mais ou menos uns quinze metros de distância, uma figura emergira das sombras da mansão de meu vizinho e estava parada, com as mãos nos bolsos, contemplando a poeira prateada das estrelas. Alguma coisa em seus movimentos tranquilos e a posição firme de seus pés sobre o gramado sugeria que era o próprio sr. Gatsby, que havia saído de casa para determinar qual porção do céu lhe pertencia.

Decidi chamá-lo. Miss Baker havia mencionado seu nome no jantar, e isso serviria como apresentação. Mas não o interpelei de imediato, porque ele subitamente demonstrou que estava satisfeito por estar sozinho – esticou os braços em direção às águas escuras de uma maneira muito curiosa e, mesmo estando longe dele, pude perceber que todo o seu corpo tremia. Sem querer, olhei para o mar, sem distinguir nada, exceto uma única luz verde, minúscula e distante, que poderia ser a ponta de um ancoradouro. Quando olhei outra vez na direção de Gatsby, ele havia desaparecido, e eu me encontrava novamente a sós na escuridão inquieta.

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