Depois da paz, só guerra
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Teatro Nacional S. João desceu a Lisboa, ao D. Maria II, para uma curta temporada de “Os Últimos Dias da Humanidade”, uma peça de Karl Kraus encenada por Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso. Kraus, checo (1874-1936), escreveu esta diatribe contra a Primeira Guerra, enquanto os delírios patrióticos santificavam a mortandade. “Os diálogos mais inverosímeis aqui travados foram pronunciados nesta exacta forma; as mais cruéis fantasias são citações”, explica. Metade do texto são citações de tudo, do Estado-Maior, de ministros, da imprensa, da voz popular. A montagem febril mostra-se então como é: uma leitura do horror, em que todos os personagens são irrealmente leves, só têm um leve traço de carácter (o “optimista”, o “eterno descontente”), habituados que estão à fome, à mentira, à manipulação, aos sonhos de purificação e império , portanto, ao deserto das emoções. “Cada som é incomparavelmente autêntico, mas no conjunto deixam-nos perplexos, como os oráculos”, escreveu Walter Benjamim sobre este teatro.
São então sons; fora dos cânones teatrais dessa era, o que aqui temos é uma leitura (Brecht terá sido então dos poucos a perceber o que era esta representação). Ora, para Kraus, como a “indústria da cultura”, a imprensa, era a responsável pela excitação do militarismo e pelo conformismo do ódio, responde-lhe colocando em cena “máscaras do Carnaval trágico”, pois o teatro quer “ensinar a ver abismos ali onde estão lugares-comuns – esta seria a obrigação pedagógica de uma nação que cresceu em pecado; seria a salvação dos bens da vida perante os bandos do jornalismo e as grilhetas da política”. As máscaras falam, nós ouvimos, é a política da guerra.
Com a imensidão da tragédia, o tempo parou e restam os sons. Não sabemos o que vem depois mas, diz-nos Kraus, é só mais guerra, a paz é impossível. Em 1933, ano de Hitler, escrevia “Não me perguntem em que andei ocupado./Mantenho a mudez;/e não digo os porquês./Reina o silêncio num mundo destroçado./Faltou ao verbo alento;/a fala é já sem tento./E sonha-se com um sol que ria sem cessar./Tudo fica para trás;/depois – tanto faz./A palavra morreu, com esse mundo a acordar.” A palavra morreu no meio de tantas palavras, reina o silêncio, é a guerra.
“A Noite da Iguana”, de Tennessee Williams, norte-americano (1911-1983), é encenada por Jorge Silva Melo com os Artistas Unidos (o Teatro do Bolhão representou esta peça há meia dúzia de anos) e, após o S. Luís, vai para o Porto e outras cidades. Duas décadas depois de Kraus e é a guerra seguinte, mas lá longe, os nazis que veraneiam no hotel Costa Verde, no México, festejam os bombardeamentos sobre Londres. Só que, ao contrário dos “Últimos Dias”, esta é uma história de pessoas e não de leituras. Destroçadas, febris, são misteriosas porque imprevisíveis. Só grandes actores podem fazer estes sofridos corpos que se procuram no devaneio do rum, no deus perdido, nos encontros fúteis ou no sexo distraído. N’”A Noite”, correm em frente para ficarem na sua colina, de onde olham para o mar, não sabem para onde vão e se vão. O tempo também aqui parou, mas é porque os personagens mergulham em si mesmos.
O conto foi escrito num “período desesperado da minha vida”, contava Williams, depois de ter feito o percurso da Cidade do México até este hotel, em 1940, tinha 29 anos. Ele é como Shannon, o ex-reverendo alcoólico, dilacerado, que se quer deitar na rede do cenário e falar com Fred, que já morreu. Não se sabe o que fará agora, mas não fará nada. Está cansado.
As duas peças falam-nos portanto de guerras diferentes, mas sempre do perigo do silêncio. Entre sons e emoções, esse silêncio é a guerra que continua, é o sofrimento de dentro de nós. Entretanto, Trump tomou posse. Perguntaria Kraus: “A palavra morreu, com esse mundo a acordar”?
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