domingo, 29 de janeiro de 2017

Poesia em torno dos gatos

 *   Pablo Neruda - Ode ao gato

Os animais foram
imperfeitos,
compridos  de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, vôo.
O gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa só
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa
de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogara as moedas da noite

Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na imterpérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundissimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insignia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma
na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertence
ao habitante menos misterioso,
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
díscipulos ou amigos
do seu gato.

Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalcullável,
a botânica,
o gineceu com os seus extrávios,
o pôr e o mesnos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casaca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos tem números de ouro.

(Navegaciones y Regresos, 1959)


* Mário Quintana - Onírica

Os gatos moles de sono 
rolam laranjas de lã.


* António Gedeão - Poema do Gato

Quem há-de abrir a porta ao gato 
quando eu morrer?
Sempre que pode 
foge prá rua, 
cheira o passeio 
e volta pra trás, mas ao defrontar-se com a porta fechada 
(pobre do gato!) 
mia com raiva desesperada.
Deixo-o sofrer 
que o sofrimento tem sua paga, 
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre pra mim 
como acorre a mulher aos braços do amante. 
Pego-lhe ao colo e acaricio-o 
num gesto lento, 
vagarosamente, 
do alto da cabeça até ao fim da cauda. 
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos, 
olhos semi-cerrados, em êxtase, 
ronronando.
Repito a festa, 
vagarosamente. 
do alto da cabeça até ao fim da cauda. 
Ele aperta as maxilas, 
cerra os olhos, 
abre as narinas. 
e rosna. 
Rosna, deliquescente, 
abraça-me
e adormece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse


quem lhe abriria a porta quando eu morresse?


* Bocage - Os dois gatos


Dois bichanos se encontraram 
Sobre uma trapeira um dia: 
(Creio que não foi no tempo 
Da amorosa gritaria).
De um deles todo o conchego 
Era dormir no borralho; 
O outro em leito de senhora 
Tinha mimoso agasalho.

Ao primeiro o dono humilde 
Espinhas apenas dava; 
Com esquisitos manjares 
O segundo se engordava.

Miou, e lambeu-o aquele 
Por o ver da sua casta; 
Eis que o brutinho orgulhoso 
De si com desdém o afasta.

Aguda unha vibrando 
Lhe diz: ''Gato vil e pobre, 
Tens semelhante ousadia 
Comigo, opulento, e nobre?

Cuidas que sou como tu? 
Asneirão, quanto te enganas! 
Entendes que me sustento 
De espinhas, ou barbatanas?

Logro tudo o que desejo, 
Dão-me de comer na mão; 
Tu lazeras, e dormimos 
Eu na cama, e tu no chão.

Poderás dizer-me a isto 
Que nunca te conheci; 
Mas para ver que não minto 
Basta-me olhar para ti.''

''Ui! (responde-lhe o gatorro, 
Mostrando um ar de estranheza) 
És mais que eu? Que distinção 
Pôs em nós a Natureza?

Tens mais valor? Eis aqui 
A ocasião de o provar.'' 
''Nada (acode o cavalheiro) 
Eu não costumo brigar.''

''Então (torna-lhe enfadado 
O nosso vilão ruim) 
Se tu não és mais valente, 
Em que és sup'rior a mim?

Tu não mias?'' - ''Mio.'' - ''E sentes 
Gosto em pilhar algum rato?'' 
''Sim.'' - Eo comes?'' - ''Oh! Se como!...'' 
''Logo não passa de um gato.

Abate, pois, esse orgulho, 
Intratável criatura: 
Não tens mais nobreza que eu; 
O que tens é mais ventura.''

                                                     

in BOCAGE Poemas, Editora Nova Fronteira S/A, 1987 
Envio: Sérgio Gerônimo



* Millôr Fernandes

Gato ao crepúsculo
Poeminha de louvor ao pior inimigo do cão

Gato manso, branco, 
Vadia pela casa, 
Sensual, silencioso, sem função.

Gato raro, amarelado, 
Feroz se o irritam, 
Suficiente na caça à alimentação.

Gato preto, pressago, 
Surgindo inesperado 
Das esquinas da superstição.

Cai o sol sobre o mar.

E nas sombras de mais uma noite, 
Enquanto no céu os aviões 
Acendem experimentalmente suas luzes verde-vermelho-verde, 
Terminam as diferenças raciais.

Da janela da tarde olho os banhistas tardos 
Enquanto, junto ao muro do quintal, 
Os gatos todos vão ficando pardos.


*   Ferreira Gullar - O ronron do gatinho

O gato é uma maquininha 
que a natureza inventou; 
tem pêlo, bigode, unhas 
e dentro tem um motor.
Mas um motor diferente 
desses que tem nos bonecos 
porque o motor do gato 
não é um motor elétrico. 

É um motor afetivo 
que bate em seu coração 
por isso faz ronron 
para mostrar gratidão.

No passado se dizia 
que esse ronron tão doce 
era causa de alergia 
pra quem sofria de tosse.

Tudo bobagem, despeito, 
calúnias contra o bichinho: 
esse ronron em seu peito 
não é doença - é carinho.

     
* Charles Baudelaire - O Gato (Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux)


   Vem cá, meu gato, aqui no meu regaço; 
   Guarda essas garras devagar, 
   E nos teus belos olhos de ágata e aço 
   Deixa-me aos poucos mergulhar.
   Quando meus dedos cobrem de carícias 
   Tua cabeça e o dócil torso, 
   E minha mão se embriaga nas delícias 
   De afagar-te o elétrico dorso,

   Em sonho a vejo. Seu olhar, profundo 
   Como o teu, amável felino, 
   Qual dardo dilacera e fere fundo,

   E, dos pés a cabeca, um fino 
   Ar sutil, um perfume que envenena 
   Envolvem-lhe a carne morena. 
  


Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux; 
Retiens les griffes de ta patte, 
Et laisse-moi plonger dans tes beaux yeux, 
Mêlés de métal et d'agate.
Lorsque mes doigts caressent à loisir 
Ta tête et ton dos élastique, 
Et que ma main s'enivre du plaisir 
De palper ton corps électrique,

Je vois ma femme en esprit. Son regard, 
Comme le tien, aimable bête, 
Profond et froid, coupe et fend comme un dard,

Et des pieds jusques à la tête, 
Un air subtil, un dangereux parfum, 
Nagent autour de ton corps brun.



* Charles Baudelaire - Le Chat (Dans ma cervelle se promène) 


Dans ma cervelle se promène, 
Ainsi qu'en son appartement, 
Un beau chat, fort, doux et charmant. 
Quand il miaule on l'entend à peine,

Tant son timbre est tendre et discret; 
Mais que sa voix s'apaise ou gronde, 
Elle est toujours riche et profonde. 
C'est là son charme et son secret.

Cette voix, qui perle et qui filtre, 
Dans mon fonds le plus ténébreux, 
Me remplit comme un vers nombreux 
Et me réjouis comme un philtre.

Elle endort les plus cruels maux 
Et contient toutes les extases; 
Pour dire les plus longues phrases, 
Elle n'a pas besoin de mots;

Non, il n'est pas d'archet qui morde 
Sur mon coeur, parfait instrument, 
Et fasse plus royalement 
Chanter sa plus vibrante corde,

Que ta voix, chat mystérieux, 
Chat séraphique, chat étrange, 
En qui tout est, comme en un ange, 
Aussi subtil qu'harmonieux!

- De sa fourrure blonde et brune 
Sort un parfum si doux, qu'un soir 
J'en fus embaumé, pour l'avoir 
Caressée une fois, rien qu'une.

C'est l'esprit familier du lieu; 
Il juge, il préside, il inspire 
Toutes choses dans son empire; 
Peut-être est-il fée est-il dieu?

Quand mes yeux, vers ce chat que j'aime 
Tirés comme par un aimant, 
Se retournent docilement 
Et que je regarde en moi-même,

Je vois avec étonnement 
Le feu de ses prunelles pâles, 
Clairs fanaux, vivantes opales, 
Qui me contemplent fixement.

                                                                  *                

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