Raul Brandão
reeditado nos 150 anos do seu nascimento
Entre as edições previstas para os
próximos meses estão alguns inéditos e um novo volume reunindo as Memórias do grande escritor português.
LUSA
11 de Março
de 2017, 14:39
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Os 150 anos do nascimento de Raul Brandão, que se assinalam este domingo,
serão celebrados com a publicação de três obras do escritor, uma delas com
textos inéditos. A segunda edição do Festival Húmus, que lhe é
totalmente dedicado, também decorre em Guimarães até domingo, assim encerrando
o Ano Raul Brandão promovido por aquela autarquia.UB
Nascido no Porto a 12 de Março de 1867, Raul Brandão ficou conhecido por
obras como Húmus, Os Pobres, A Morte do Palhaço
e o Mistério da Árvore ou Os Pescadores.
Para assinalar o aniversário do seu nascimento, a editora Ponto de Fuga vai
publicar no dia 7 de Abril O pobre de pedir, o último livro que
Raul Brandão escreveu e que há mais de 30 anos não era editado. Publicado
postumamente, o volume revela um "escritor assombrado pela ideia da
morte".
Através da ficção, o autor "faz um balanço da sua vida", explicou
à Lusa Vladimiro Nunes, editor da Ponto de Fuga: "Raul Brandão estava
muito doente desde 1923. Sabia que a qualquer momento podia morrer e isso ficou
muito presente na obra dele", acrescentou. O livro inclui ainda a
reprodução de alguns manuscritos do escritor, um texto de enquadramento dos
seus últimos meses de vida e um prefácio de João de Melo.
Pela editora E-Primatur, sairá em Maio A Vida e o Sonho – Inéditos,
Antologia e Guia de Leitura, organizado por Vasco Rosa. Além de textos nunca antes
publicados, inclui uma introdução biográfica e de contexto ao autor e à obra,
bem como um guia de leitura. Segundo Hugo Xavier, editor da E-Primatur, será
"uma grande antologia de Raul Brandão", cobrindo toda a sua produção,
tanto jornalística quanto literária. Além dos inéditos, incluem-se "alguns
textos publicados na imprensa da altura e que nunca tinham sido reunidos em
livro, como notícias, crónicas e outros", precisou.
Antes, a 24 de Março, a Quetzal lança as Memórias de Raul
Brandão. "Publicadas originalmente em três volumes, as Memórias de
Raul Brandão constituem um dos exemplos maiores da nossa literatura
memorialística", refere a editora.
Raul Brandão é considerado um dos maiores escritores portugueses, embora
pouco lido. Segundo os especialistas em literatura Fernando Pinto do Amaral e
Helder Macedo, foi "um dos escritores de vanguarda" portugueses que
ficaram ensombrados pela presença de Fernando Pessoa no panorama literário da
época.
Raul Brandão já não está disperso
12/03/2013 - 00:00
Raul Brandão e a sua
mulher, Maria Angelina, com quem manteve uma grande cumplicidade criativa. Na
página seguinte, imagem de O Gebo e a Sombra, de Manoel de Oliveira DR
Está
completa a reunião dos textos dispersos que Raul Brandão escreveu ao longo de
mais de 40 anos de produção literária. A Pedra ainda Espera Dar Flor (Quetzal)
são 500 páginas, resultado de dez anos de pesquisa de Vasco Rosa
Foram precisos quase dez anos para
chegar a estas 500 páginas que reúnem os textos dispersos de Raul Brandão, o
escritor português que faria hoje 146 anos e que deixou uma das obras mais
diversificadas na história da literatura portuguesa. Jornalismo, romance,
viagem, teatro, história e sempre uma atenção ao efeito estético da palavra.
"É profundamente injusta a desatenção de que tem sido alvo um autor tão
marcante da literatura portuguesa", desabafa ao PÚBLICO Vasco Rosa, o
investigador literário e organizador do volume que a Quetzal acaba de lançar
com o título A Pedra ainda Espera Dar Flor. "É uma frase dele,
um título mágico, perfeito, que é um elogio extraordinário à vida, a vida que
custa, e à qual ele sempre esteve muito atento em todas as suas
manifestações."
Vasco Rosa não sabe falar de Raul
Brandão de forma desapaixonada. Autor de antologias de textos de Alexandre
O"Neill e, mais recentemente, de Vitorino Nemésio - em concreto a produção
literária publicada pelo escritor açoriano quando tinha 20 anos e a ser editado
em breve -, Rosa aponta o dedo à academia que, afirma ele, "não se ocupa
com um trabalho de fundo que contemple aqueles que se podem chamar os autores
do cânone". "Há um trabalho de interpretação, mas não um trabalho que
abrace toda a obra." Foi neste quase vazio que em 2004 se pôs à procura de
tudo o que Brandão escreveu e que andava disperso pelos jornais, meio perdido
para a leitura, naquele a que chama um trabalho de "arqueologia
literária" com o qual quer ajudar a entender a biografia literária do escritor.
Como grande auxiliar, apenas Vida e Obra de Raul Brandão, a
biografia que em 1979 Guilherme de Castilho dedicou ao homem natural da Foz do
Douro, no Porto, que viveu parte da vida numa aldeia chamada Nespereira, em
Guimarães, e morreria em Lisboa em 1930. "Não há nada mais recente que
possa substituir essa biografia", lamenta o investigador, que desde então
já publicou dois livros resultado de uma longa busca por jornais velhos e
arquivos microfilmados: Lume sob Cinzas e Paisagens
com Figuras (Ambar, 2006).
Os dois títulos são "os
pais", como lhe chama, deste A Pedra ainda Espera Dar Flor, a
colectânea que culmina a sua investigação brandoniana ("sabe-se lá, à
procura de outras coisas ainda posso dar com um texto de Brandão", ri
Vasco Rosa), acrescenta 50 "novos textos velhos" e é um exemplo da
diversidade de escrita do autor de Húmus (1917) - romance a
partir do qual Herberto Helder haveria de construir um poema (Húmus Poema
Contínuo) tendo como inspiração palavras, frases, imagens e metáforas
usadas por Brandão - ou As Ilhas Desconhecidas, o título publicado
em 1926 que resultou de uma viagem feita aos Açores e à Madeira em 1924 e que é
considerado um dos mais originais exemplares da escrita de viagem. Uma
diversidade não apenas temática, de género ou estilo, mas também geográfica.
"Ele publicou em quase todos os jornais, não importa de onde eram,
regionais, locais, nacionais." Fez apenas uma pausa. Dez anos em que se
dedicou à Seara Nova, um movimento que quis "refundar" e no qual se
dedicou quase em exclusivo á investigação histórica.
Coca-bichinhos
Em cerca de 40 publicações, com
datas entre 1891 - ano da estreia literária - e 1930 - o ano da morte -, Vasco
Rosa encontrou memórias, cartas, crítica literária, esboços de peças de teatro,
textos onde se pode encontrar uma proximidade com a reportagem, todos a
evidenciarem, por um lado, a atenção à condição humana, mas também um lirismo
marcante. "Nele, estas duas características são perfeitamente
compatíveis", conclui Vasco Rosa, que fala de um autor difícil de
catalogar. "Acho que há uma dificuldade em abordá-lo. Às vezes é muito
pesado, muito duro. Veja-se o Húmus. Mas ao mesmo tempo tem aquilo
que a literatura deve ter: impacto sobre as pessoas, e esse impacto foi tendo
variantes conforme as estéticas de cada leitor e resistiu." Como pôde,
acrescenta-se, numa altura em que Brandão volta a ser falado e relido, ainda
que quase nunca tenha deixado de ser visto no teatro.
"Não é fácil", nota Vasco
Rosa, mas há sempre a descoberta de um "enorme humanismo e isso é muito
recompensador", sublinha. Não é fácil também digerir o capítulo a que
chamou Lisboa Negra, com textos sobre a dureza da vida na chamada
cidade branca. Em Setembro de 1902, escreve para O Dia:
"Lisboa, à noite, oferece libertinagens boémias, desperta ao noctâmbulo
prazeres de vagabundo e acorda delírios misteriosos de observação flagrante.
Sob o clarão do sol, pelos bairros pobres, há máscaras doentias, arrastando-se,
tonturas, embriaguez de luz, que pervertem os bustos, derreando-os, e lhes tira
a insaciável, perversa ânsia de uivarem a desgraça."
Numa Lisboa diferente, mas com a
luz também a escassear, Vasco Rosa fala desse negrume para dizer que Brandão
também tem luz, e que o trabalho de recolha de textos não foi depressivo. Ao
contrário. Quando muito obsessivo, tal como "Brandão era obsessivo, fosse
na descrição de uma paisagem ou na reconstituição da vida numa viela". Diz
também que o modo como construiu o livro seguiu os preceitos de Raul Brandão,
ou seja: "Na distribuição dos capítulos, tentei ser o máximo possível fiel
aos temas fulcrais dele. Tentei jogar o jogo dele para que as pessoas percebam
que tudo se encaixa na obra em todos os seus cambiantes. Por exemplo, no capítulo
a que chamei A Voz do Homem - que é também uma expressão dele
- destaco um texto sobre o sacerdócio católico, escrito numa época em que os
padres viviam como banqueiros, de uma maneira totalmente não espiritual. Ele
vem dizer que a espiritualidade faz parte da vida."
Como no capítulo Os
Pescadores está toda a génese do que viria a ser o livro com o mesmo
título, uma relação com o mar muito próxima e sempre presente. Raul Brandão
nasceu e cresceu na Foz, já se disse, e, filho "de gente do mar",
descreveu a vida de quem partilhava com ele esse universo, "a atracção por
essa vastidão", como salienta Vasco Rosa. "Ele foi, de certeza, quem
trouxe o mar para a literatura portuguesa nesse sentido, a vida no mar."
Muda de tom quando é para pôr em
evidência a relação do escritor com os jovens poetas do Porto, outro capítulo,
onde cultiva uma poética que haveria de o contaminar desde o início, desde que
escreveu com eles o manifesto Nefelibatas (ou habitantes das
nuvens), para definir o simbolismo e o decadentismo. Entre esses poetas estava
António Nobre, como Brandão natural da Foz. "O que o impressiona
arrepia-lhe a alma até o dolorir - dum arrepio histérico, próprio dos que vivem
uma vida interior, a seguir uma Ilusão, curvados. Tudo o fere: é um tímido, sem
nada de expansivo, e deve estar mal diante do seu Amigo: a sós respira, e
dobrado, a olhar para dentro, vive com o seu sonho", escreve em Só,
por António Nobre, uma das crónicas desta colectânea onde fica clara também
a admiração por Camilo Castelo Branco num texto que começa de forma imperativa,
dirigido aos alunos da então 4.ª classe e que faz parte do Livro de
Leitura para as escolas de instrução primária (1903). "Decora
este nome. Pertence a um dos maiores escritores do teu país. Poucos, raríssimos
como ele, manejaram, nos tempos modernos, a língua portuguesa; nenhum como ele
encheu as páginas dos seus livros de tanto riso, de tantas lágrimas."
Numa perspectiva estética
colocou-se ao lado de pintores. Escreveu e falou e conviveu de perto com
Columbano Bordalo Pinheiro. Não deixou de se irritar com alguma da sua pintura,
ele que também pintava, e chegou a comparar a sua escrita a pinceladas. Vasco
Rosa pega na ideia e diz que este é um livro onde convergem todas as pinceladas
das suas grandes obras.
Durante os mais de 40 anos da
produção literária de Brandão são raras as citações, a referência a
inspirações, embora seja notória a influência de Dostoiésvki, ou mesmo "de
Goya", conforme lembra Vasco Rosa que sublinha, no entanto, a
singularidade como grande marca de Brandão, o escritor que viveu "numa
época de gigantes" - Eça, Garrett, Camilo. E que se inconformou com o
teatro. Primeiro na crítica, depois passando à prática, com a escrita de peças
que levavam ao palco o seu olhar sobre uma sociedade "dura para com o
homem", uma das quais a meias com Teixeira de Pascoaes, escritor com quem
conviveu de perto, e outra recentemente adaptada ao cinema por Manoel de
Oliveira, O Gebo e a Sombra, onde mais uma vez é notório o seu
questionar dos modos de representar o real. Essa é outra marca de Brandão.
"Pegando nesse texto, Oliveira mostrou como se pode falar de uma forma
contemporânea de um autor intemporal, injustamente remetido para um plano
secundário", salienta o responsável por esta colectânea que não se
pretende substituir a nenhuma leitura de Brandão. "Não é esse o objectivo.
Apenas o de ajudar a entender um homem e a sua obra, situando-os no seu
tempo."