* João Pedro Grabato Dias
Um silêncio vazio está demasiado perto da loucura.
Temos de ritmá-lo continuamente. E logo
esvaziá-lo dos especialíssimos silencios do remorso
alimentá-lo sem cessar de outros silencios
dar-lhe sempre e sempre o veludo das carícias.
Passeio-me na solidão como a um cão de luxo.
Povôo-a de regularidades e higiene.
Alço a metafísica como uma pesada para trazeira.
E com a possível e muito estudada simplicidade
jorro-me contente nos bocados mais amargos.
Agora cão, mão e dono e cão, passeio. Passo
por entre goivos dominicais em plástico.
Sou o olho vagaroso a deter viúvas, o sapato
a moer érres de saibro no ondular morno da alameda
o cheiro tudo nada pungente da cera.
E cão, mão, dono, olho, sapato, odor, sigo
curva tensa da trela
satisfatóriamente menos, qualquer coisa mais.
Abri, suponho, a porta errada.
E saí para dentro desta calma máquina de moer cristal.
Tateio as engrenagens de mucosa
estou todo fora cá dentro, arranho-me e é bom.
Com extrema doçura amarelece a infância
nas caixas ordenadas em cada visita.
Sem pensamento possível, miro-me.
Reconheço-me: olá, subo à nespereira pela malícia acima
toco o arco das bruxas, e, enforquilhado
tiro a broa das alhadas do bife
e berlindo o Universo com dois olhos contentes
e, óbviamente incontáveis, caroços de nêspera.
Pita branca, pita preta, pinta branca – pinta preta.
À volta do olho redondo imobilizam-se as pintas
num plano de atenção. Dona pedrez roufeja
o convite, e o olho faz-se o pórtico enorme
por onde entro a patinar de barriga e um pouco surdo
no labirinto sem curvas de uma quente ansiedade
e torno a sair à mesa no amarelo do ovo
riso babão reflectido no bojo do candeeiro
a falar baixo da avó, o brilhar dos dentes da avó
o esmalte laranja das caçarolas, o tinir das malgas
o encher lento e morno da barriga a apertar o corção.
(o João pestana entrou agora e cerrou a porta
Avó tenho tosse. Queres um patacão?Toma.)
Do forro pingam bordões da guitarra.
E da boca da guitarra sai um silêncio grosso e contente
como um jorro de sangue que me lava os olhos
me rodeia, me embala e onde navego
no exatíssimo instante que antecede
o grande mergulho no meio do Sol.
Recortada no estanho da hesitação tremeluz a sardinha.
Busca os fundos da memória, fende a carne mais antiga
Desce fresca entre duas águas, crepita num azul de escama
Meigo e seguro bisturi asséptico, a sardinha, revela agora
o pequeno nódulo perlífero que cresce girando
e, subitamente mole, é o branco duro da duna
é o orvalho das camarinhas, é o barulho morno dos pés na caruma
é um besugar sem vento nas canas, um rasquinhar de formigas
é o espantoso silencio do mar, só evidente
no segundo após a vaga quebrada
Buraco movediço na paisagem, borrão preto
elástico, roja a sombra que projecta
e transporta sem custo duas palhetas de hipnose.
Não faz ruidos , não é daqui, só vagueia
pelo presente. Determinado num sem rumo certo
presente-se-lhe a cabeça cheia de esmeraldas
que saiem em pedradas rápidas e se fundem
imediatamente na luz de antemanhã.
Sinto o peso da bola de sombra
o arripio da cerda na orelha
o apunhalar das unhas na coberta de papa
e o roronar desta máquina de meiguice.
Bichinho gato.
Bichinho. Meu gato,
(Poema ou parte do poema premiado no concurso da Câmara Municipal de Lourenço Marques, recuperado em fragmentos do original)
Sonetos de amor e circunstância e uma canção desesperada
João Pedro Grabato Dias
Colecção O Som e o Sentido
Edição de Académica Lda, Lourenço Marques, 1975
IN http://caisdoolhar.blogspot.pt/2017/04/olhar-as-capas_19.html
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