Preso 2ª vez pela PIDE em 9 de Fevereiro de 1955,
Agostinho Neto
Biografia
Poemas:
- Quitandeira
- Voz de sangue
- Mussunda amigo
- Contratados
- Aspiração
- Poesia africana
- Fogo e ritmo
- Kinaxixi
- Noite
- Consciencialização
- Civilização ocidental
- Adeus à hora da largada
Biografia
Nasceu em Catete, Angola, em 1922, faleceu em 1979. Estudos primários e secundários em Angola, licenciado em Medicina pela Universidade de Lisboa. Em Portugal, sempre esteve ligado à actividade política, onde com Lúcio Lara e Orlando de Albuquerque fundou a revista Momento, em 1950. Como aconteceu a outros escritores africanos foi preso e desterrado para Cabo Verde, tendo mais tarde conseguido a fuga para o continente. Presidente do MPLA, foi o primeiro presidente de Angola.
Obra Poética: Quatro Poemas de Agostinho Neto, 1957, Póvoa do Varzim, e.a.;
Poemas, 1961, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império;
Sagrada Esperança, 1974, Lisboa, Sá da Costa (inclui os poemas dos dois primeiros livros);
A Renúncia Impossível, 1982, Luanda, INALD (edição póstuma).
Quitandeira
A quitanda. Muito sol e a quitandeira à sombra da mulemba. - Laranja, minha senhora, laranjinha boa! A luz brinca na cidade o seu quente jogo de claros e escuros e a vida brinca em corações aflitos o jogo da cabra-cega. A quitandeira que vende fruta vende-se. - Minha senhora laranja, laranjinha boa! Compra laranja doces compra-me também o amargo desta tortura da vida sem vida. Compra-me a infância do espírito este botão de rosa que não abriu princípio impelido ainda para um início. Laranja, minha senhora! Esgotaram-se os sorrisos com que chorava eu já não choro. E aí vão as minhas esperanças como foi o sangue dos meus filhos amassado no pó das estradas enterrado nas roças e o meu suor embebido nos fios de algodão que me cobrem. Como o esforço foi oferecido à segurança das máquinas à beleza das ruas asfaltadas de prédios de vários andares à comodidade de senhores ricos à alegria dispersa por cidades e eu me fui confundindo com os próprios problemas da existência. Aí vão as laranjas como eu me ofereci ao álcool para me anestesiar e me entreguei às religiões para me insensibilizar e me atordoei para viver. Tudo tenho dado. Até mesmo a minha dor e a poesia dos meus seios nus entreguei-as aos poetas. Agora vendo-me eu própria. - Compra laranjas minha senhora! Leva-me para as quitandas da Vida o meu preço é único: - sangue. Talvez vendendo-me eu me possua. - Compra laranjas! (Sagrada esperança)
Voz do sangue
Palpitam-me os sons do batuque e os ritmos melancólicos do blue Ó negro esfarrapado do Harlem ó dançarino de Chicago ó negro servidor do South Ó negro de África negros de todo o mundo eu junto ao vosso canto a minha pobre voz os meus humildes ritmos. Eu vos acompanho pelas emaranhadas áfricas do nosso Rumo Eu vos sinto negros de todo o mundo eu vivo a vossa Dor meus irmãos. (A renúncia impossível)
Mussunda amigo
Para aqui estou eu Mussunda amigo Para aqui estou eu Contigo Com a firme vitória da tua alegria e da tua consciência O ió kalunga ua mu bangele! O ió kalunga ua mu bangele-lé-leleé... Lembras-te? Da tristeza daqueles tempos em que íamos comprar mangas e lastimar o destino das mulheres da Funda dos nossos cantos de lamento dos nossos desesperos e das nuvens dos nossos olhos Lembras-te? Para aqui estou eu Mussunda amigo A vida a ti a devo à mesma dedicação ao mesmo amor com que me salvaste do abraço da jibóia à tua força que transforma os destinos dos homens A ti Mussunda amigo a ti devo a vida E escrevo versos que não entendes compreendes a minha angústia? Para aqui estou eu Mussunda amigo escrevendo versos que tu não entendes Não era isto o que nós queríamos, bem sei Mas no espírito e na inteligência nós somos! Nós somos Mussunda amigo Nós somos Inseparáveis e caminhando ainda para o nosso sonho No meu caminho e no teu caminho os corações batem ritmos de noites fogueirentas os pés dançam sobre palcos de místicas tropicais Os sons não se apagam dos ouvidos O ió kalunga ua mu bangele... Nós somos! (Sagrada esperança)
Contratados
Longa fila de carregadores domina a estrada com os passos rápidos Sobre o dorso levam pesadas cargas Vão olhares longínquos corações medrosos braços fortes sorrisos profundos como águas profundas Largos meses os separam dos seus e vão cheios de saudades e de receio mas cantam Fatigados esgotados de trabalhos mas cantam Cheios de injustiças calados no imo das suas almas e cantam Com gritos de protesto mergulhados nas lágrimas do coração e cantam Lá vão perdem-se na distância na distância se perdem os seus cantos tristes Ah! eles cantam... (Sagrada esperança)
Aspiração
Ainda o meu canto dolente e a minha tristeza no Congo, na Geórgia, no Amazonas Ainda o meu sonho de batuque em noites de luar ainda os meus braços ainda os meus olhos ainda os meus gritos Ainda o dorso vergastado o coração abandonado a alma entregue à fé ainda a dúvida E sobre os meus cantos os meus sonhos os meus olhos os meus gritos sobre o meu mundo isolado o tempo parado Ainda o meu espírito ainda o quissange a marimba a viola o saxofone ainda os meus ritmos de ritual orgíaco Ainda a minha vida oferecida à Vida ainda o meu desejo Ainda o meu sonho o meu grito o meu braço a sustentar o meu Querer E nas sanzalas nas casas no subúrbios das cidades para lá das linhas nos recantos escuros das casas ricas onde os negros murmuram: ainda O meu desejo transformado em força inspirando as consciências desesperadas. (Sagrada esperança)
Poesia Africana
Lá no horizonte o fogo e as silhuetas escuras dos imbondeiros de braços erguidos No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas Poesia africana Na estrada a fila de carregadores bailundos gemendo sob o peso da crueira No quarto a mulatinha dos olhos meigos retocando o rosto com rouge e pó de arroz A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas Na cama o homem insone pensando em comprar garfos e facas para comer à mesa No céu o reflexo do fogo e as silhuetas dos negros batucando de braços erguidos No ar a melodia quente das marimbas Poesia africana E na estrada os carregadores no quarto a mulatinha na cama o homem insone Os braseiros consumindo consumindo a terra quente dos horizontes em fogo. (No reino de Caliban II - antologia panorâmica de poesia africana de ex- pressão portuguesa)
Fogo e ritmo
Sons de grilhetas nas estradas cantos de pássaros sob a verdura úmida das florestas frescura na sinfonia adocicada dos coqueirais fogo fogo no capim fogo sobre o quente das chapas do Cayatte. Caminhos largos cheios de gente cheios de gente em êxodo de toda a parte caminhos largos para os horizontes fechados mas caminhos caminhos abertos por cima da impossibilidade dos braços. Fogueiras dança tamtam ritmo Ritmo na luz ritmo na cor ritmo no movimento ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços ritmo nas unhas descarnadas Mas ritmo ritmo. Ó vozes dolorosas de África! (Sagrada esperança)Fire and rhythm
The sound of chains on the roads the songs of birds under the humid greenery of the forest freshness in the smooth symphony of the palm trees fire fire on the grass fire on the heat of the Cayatte plains Wide paths full of people full of people an exodus from everywhere wide paths to closed horizons but paths paths open atop the impossibility of arm fire dance tum tum rhythm Rhythm in light rhythm in color rhythm in movement rhythm in the bloody cracks of bare feerhythm on torn nails yet rhythm rhythm Oh painful African voices (Sacred hope)
kinaxixi
Gostava de estar sentado num banco do kinaxixi às seis horas duma tarde muito quente e ficar... Alguém viria talvez sentar-se sentar-se ao meu lado E veria as faces negras da gente a subir a calçada vagarosamente exprimindo ausência no kimbundu mestiço das conversas Veria os passos fatigados dos servos de pais também servos buscando aqui amor ali glória além uma embriagues em cada álcool Nem felicidade nem ódio Depois do sol posto acenderiam as luzes e eu iria sem rumo a pensar que a nossa vida é simples afinal demasiado simples para quem está cansado e precisa de marchar. (Sagrada esperança)
Noite
Eu vivo nos bairros escuros do mundo sem luz nem vida. Vou pelas ruas às apalpadelas encostado aos meus informes sonhos tropeçando na escravidão ao meu desejo de ser. São bairros de escravos mundos de miséria bairros escuros. Onde as vontades se diluíram e os homens se confundiram com as coisas. Ando aos trambolhões pelas ruas sem luz desconhecidas pejadas de mística e terror de braço dado com fantasmas. Também a noite é escura. (Sagrada esperança)Noche
yo vivo en los barrios oscuros del mundo sin luz ni vida. voy por las calles a tientas apoyado en mis informes sueños tropezando con la esclavitud a mi deseo de ser. barrios oscuros mundos de miseria donde las voluntades se diluyeron con las cosas. ando a los tropezones por las calles sin luz desconocidas impregnadas de mística y terror del brazo con fantasmas. también la noche es oscura. (Sagrada esperanza)
Consciencialização
Medo no ar! Em cada esquina sentinelas vigilantes incendeiam olhares em cada casa se substituem apressadamente os fechos velhos das portas e em cada consciência fervilha o temor de se ouvir a si mesma A historia está a ser contada de novo Medo no ar! Acontece que eu homem humilde ainda mais humilde na pele negra me regresso África para mim com os olhos secos. (Sagrada esperança)
Civilização ocidental
Latas pregadas em paus fixados na terra fazem a casa Os farrapos completam a paisagem íntima O sol atravessando as frestas acorda o seu habitante Depois as doze horas de trabalho Escravo Britar pedra acarretar pedra britar pedra acarretar pedra ao sol à chuva britar pedra acarretar pedra A velhice vem cedo Uma esteira nas noites escuras basta para ele morrer grato e de fome. (Sagrada esperança)
Adeus à hora da largada
Minha Mãe (todas as mães negras cujos filhos partiram) tu me ensinaste a esperar como esperaste nas horas difíceis Mas a vida matou em mim essa mística esperança Eu já não espero sou aquele por quem se espera Sou eu minha Mãe a esperança somos nós os teus filhos partidos para uma fé que alimenta a vida Hoje somos as crianças nuas das sanzalas do mato os garotos sem escola a jogar a bola de trapos nos areais ao meio-dia somos nós mesmos os contratados a queimar vidas nos cafezais os homens negros ignorantes que devem respeitar o homem branco e temer o rico somos os teus filhos dos bairros de pretos além aonde não chega a luz elétrica os homens bêbedos a cair abandonados ao ritmo dum batuque de morte teus filhos com fome com sede com vergonha de te chamarmos Mãe com medo de atravessar as ruas com medo dos homens nós mesmos Amanhã entoaremos hinos à liberdade quando comemorarmos a data da abolição desta escravatura Nós vamos em busca de luz os teus filhos Mãe (todas as mães negras cujos filhos partiram) Vão em busca de vida. (Sagrada esperança) .
in
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