sábado, 29 de junho de 2019

José Pacheco Pereira - Os espectadores activos contra os espetadores ativos




OPINIÃO
Os políticos preocupam-se muito com as beatas no chão, mas nada pela riqueza ortográfica do português, na sua memória nas palavras antigas que são o solo que pisamos.

29 de Junho de 2019, 6:35
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À memória do Vasco Graça Moura.
Se pensam que este artigo é duro, imaginem o que ele escreveria.

Prometi a mim próprio escrever um ou dois artigos por ano contra o chamado acordo ortográfico. E fiz essa promessa para não pecar do mesmo mal da inércia, que é a principal força que mantém este acordo vivo. Na verdade, são duas forças conjugadas, uma, a inércia, e a outra o desprezo pela língua portuguesa. São duas forças muito poderosas e, conjugadas entre si, ainda mais poderosas são. Mas são forças negativas, que misturam preguiça, indiferença, incultura, desprezo pela memória e irresponsabilização pelo desastre e fracasso diplomático que representou o acordo.

O resultado é que todos os anos o português escrito em Portugal se afasta do do Brasil, de Angola, Cabo Verde, onde o acordo ou não existe ou não é aplicado. Ficamos com um português de ortografia pobre, menos resistente a estrangeirismos e menos expressivo, em nome de um objectivo falhado: o de fazer a engenharia da língua de forma artificial. E não me venham com o “pharmácia” e farmácia, porque o contexto deste acordo inútil é muito diferente dos anteriores, porque foi feito num momento em que tudo aconselharia prudência em mexer numa língua cujas ameaças principais não vêm da falta de unificação ortográfica, mas da correlação entre a perda de dinamismo social e a riqueza da língua, ortografia, léxico, gramática e oralidade. E aqui Portugal fica sempre a perder com o Brasil.

E não me venham também com o facto de ser apenas um acordo na ortografia, que não afecta a oralidade, nem a riqueza lexical. Afecta e muito porque lemos com os olhos, e para lá dos olhos é a imagem das palavras que fica, e uma coisa é ser “espetador” e outra ser espectador, apesar da inútil dupla grafia. Por detrás do espetador, como diria o Napoleão diante das pirâmides, mais de dois mil anos de civilização contemplam os infelizes do acordo, sem pai nem mãe latina e grega. Mas quem é que quer saber disso?

Este é um dos casos em que fico populista e atiro em cima “deles”, os políticos. “Eles” preocupam-se muito com as beatas no chão, mas nada pela riqueza ortográfica do português, na sua memória nas palavras antigas que são o solo que pisamos. E é por isso que o acordo serve a ignorância, dos políticos do PS e do PSD e do CDS, que deixaram à suposta geração designada de “a mais preparada de sempre” um dos mitos com que alimentamos a nossa mediocridade colectiva. Sim, uma geração que faz cursos universitários sem ler um livro, e que fala com a expressividade dos SMS e do Twitter numa linguagem gutural e pobre, que o acordo ajuda a consolidar.

Big Brother de Orwell eliminava do vocabulário todos os anos algumas palavras. Para ele a linguagem patológica dos escassos caracteres do Twitter, onde não passa um argumento racional, mas passa com facilidade um insulto, seria um ideal a conseguir. Falar com vocabulário variado e rico, algo que só se tem lendo, dá poder. O Big Brother queria retirar poder e não tenho dúvidas que gostaria do acordo ortográfico, para eliminar a memória das palavras vindas dos dias de cor e passar ao cinzento da farda.

Na verdade, é um problema maior do que a ortografia, é o problema da cultura e da democracia, onde todos os dias os parâmetros de mínima exigência são baixados, pelos pais, pelos professores, pelas instituições e, como o peixe apodrece pela cabeça, pela nonchalance dos nossos políticos pelas coisas importantes. E se há comparação que me honra é com o “velho do Restelo”. Na verdade, o velho do Restelo é uma das personagens mais interessantes e criativas dos Lusíadas. E tinha razão.

E deixem-me lá as excepções. A regra é que os mais velhos traíram a memória da língua, e os mais novos vivem bem no mundo do Big Brother. O tecido cultural do país, agredido pelo acordo, não é feito de excepções mas sim da regra, e a contínua enunciação das excepções só serve para esconder a regra. Pode-se ser culto sem saber quem era Ulisses, ou Electra, ou Lear, ou Otelo, ou Bloom? Não, não pode. Como não se pode ser culto sem perceber a inércia, ou o princípio de Arquimedes. E, no caso português, sem ter lido umas frases de Vieira, ou saber quem eram Simão Botelho, Acácio, o sr. Joãozinho das Perdizes, ou Ricardo Reis, ele mesmo. E não me venham dizer que sabem outras coisas. Sabem, mas não chega, são menos, são diferentes e não tem o mesmo papel de nos fazer melhores, mais donos de nós próprios e mais livres. Sim, livres, porque é de liberdade que se está a falar.

Colunista



quarta-feira, 5 de junho de 2019

Frederico Garcia Lorca – O Poeta Pede a Seu Amor que lhe Escreva

* Frederico Garcia Lorca

Meu entranhado amor, morte que é vida,
tua palavra escrita em vão espero
e penso, com a flor que se emurchece
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem a sombra conhece nem a evita.
Coração interior não necessita
do mel gelado que a lua derrama.

Porém eu te suportei. Rasguei-me as veias,
sobre a tua cintura, tigre e pomba,
em duelo de mordidas e açucenas.

Enche minha loucura de palavras
ou deixa-me viver na minha calma
e para sempre escura noite d'alma.

Federico García Lorca, in 'Poemas Esparsos'
Tradução de Oscar Mendes

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Poemas a Estalinegrado

Novo Canto de Amor a Stalingrado  (Pablo Neruda)

Escrevi sobre a água e sobre o tempo,
descrevi o luto e seu metal acobreado,
escrevi sobre o céu e a maçã,
agora escrevo sobre Stalingrado.

As noivas já guardam no seu lenço
raios de meu amor enamorado,
meu coração agora está no solo,
na fumaça e na luz de Stalingrado.

Já toquei com as mãos a camisa
do crepúsculo azul e derrotado:
agora toco a própria luz da vida
nascendo com o sol de Stalingrado.

Sinto que o velho-jovem transitório
de pluma, como os cisnes adornado,
despe a roupagem de seu mal notório
por meu grito de amor a Stalingrado.

Ponho minh`alma onde quero.
E não me nutro de papel cansado
temperado de tinta e de tinteiro.
Nasci para cantar a Stalingrado.

Minha voz esteve com teus inúmeros mortos
contra teus próprios muros esmagados,
minha voz soou como o sino e o vento
vendo-te morrer, Stalingrado.

Agora americanos combatentes
brancos e escuros como a romã,
matam no deserto a serpente.
Já não estás a sós, Stalingrado.

França volta às velhas barricadas
com pavilhão de fúria hasteado
sobre as lágrimas recém derramadas.
Já não estás a sós, Stalingrado.

E os grandes leões da Inglaterra
voando sobre o mar de furacões
cravam as garras na parda terra.
Já não estás a sós, Stalingrado.

Hoje abaixo de suas montanhas de escarmento
não estão apenas os teus enterrados:
tremendo está a carne de teus mortos
que tocaram tua frente, Stalingrado.

Teu aço azul de orgulho construído,
seu cabelo de planetas coroados,
teu baluarte de pães divididos,
tua fronteira sombria, Stalingrado.

Tua Pátria de louros e martírios,
o sangue no teu esplendor nevado,
o olhar de Stalin sobre a neve
tingida com teu sangue, Stalingrado.

As condecorações que teus mortos
colocaram sobre o peito transpassado
da terra, o estremecimento
da morte e da vida, Stalingrado.

O sal profundo que de novo traz
ao coração do homem estremecido
com a rama de vermelhos capitães
saídos de teu sangue, Stalingrado.

A esperança que se rompe em seus jardins
como a flor da árvore esperada,
a página gravada de fuzis,
as letras de sua luz, Stalingrado.

A torre que concebes nas alturas,
os altares de pedra ensanguentados,
os defensores de tua idade madura,
os filhos de tua pele, Stalingrado.

As águias ardentes de tuas pedras,
os metais por tua alma amamentados,
os adeus de lágrimas imensas
e as ondas de amor, Stalingrado.

Os ossos dos assassinos feridos,
os invasores de pálpebras fechadas
e os conquistadores fugitivos
atrás de sua centelha, Stalingrado.
Os que humilharam a curva do Arco
e as águas do Sena transpuseram
com o consentimento do escravo,
se detiveram em Stalingrado.

Os que a bela Praga sobre lágrimas,
sobre o emudecido e o traído,
passaram pisoteando suas feridas,
morreram em Stalingrado.

Os que na gruta grega esculpiram
a estalactite de cristal quebrado
em seu clássico azul escasso,
agora onde estão, Stalingrado?

Os que a Espanha incediaram e dividiram
deixando o coração encarcerado
dessa mãe de ensinos e guerreiros,
se puseram a seus pés, Stalingrado.

Os que na Holanda, água e tulipas
salpicaram no lodo ensanguentado
e derramaram o açoite e a espada,
agora dormem em Stalingrado.

Os que na branca noite da Noruega
Um uivo de chacal soltaram
incendiando esta gelada primavera,
emudeceram em Stalingrado.

Horror a ti pelo que o ar traz,
o que se há de cantar e o cantado,
horror por tuas mães e teus filhos
e teus netos, Stalingrado.
Horror ao combatente da névoa,
horror ao comissário e ao soldado,
horror ao céu por traz da tua lua,
horror ao sol de Stalingrado.

Guarda-me um pedaço de violenta espuma,
guarda-me um rifle, guarda-me um arado,
e que o coloquem em minha sepultura
com uma espiga vermelha de teu estado,
para que saibam, se há alguma dúvida,
que morri amando-te e que me tens amado,
e se não estive combatendo em tua cintura
deixo em tua honra esta granada escura,
este canto de amor a Stalingrado.


Stalingrado - (Carlos Drummond de Andrade)

Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.



Do Portal Vermelho

http://www.vermelho.org.br/noticia/263636-11


Portal Vermelho Dia: 08/05/2015 às 15:07:00
   
Konstantin Simonov: Espere por mim

Espere por mim é o mais famoso poema de Konstantin Simonov, poeta e dramaturgo da União Soviética, foi correspondente durante a Grande Guerra Patriótica, contra a Alemanha Nazista. Prosa, Poesia & Arte desta semana faz um especial com obras sobre a vitória do povo soviético e destaca a obra de Simonov
.
Leia o poema na íntegra:


Espere por mim, que eu retornarei - só espere com muito ardor; 
Espere da mesma forma quando você sentia-se triste pela chegada da chuva amarela; 
Espere quando o vento varrer os flocos de neve; espere no mais intenso calor; 
Espere quando os outros, esquecendo-se dos seus dias anteriores, pararam de esperar; 
Espere mesmo quando de longe não mais chegarem cartas para você; 
Espere mesmo quando os outros já cansaram de esperar; 
Espere mesmo quando a minha mãe e o meu filho pensarem que eu não existo mais; 
E quando os amigos sentados ao redor do fogo brindarem à minha memória, 
Espere, e não te apresses também em beber com eles pela minha memória; 
Espere, pelo meu retorno, a despeito de todas as mortes; 
E deixe aqueles que não me esperaram dizer depois que eu tive sorte; 
Eles nunca vão entender isso, pois em meio a tanta morte, 
Tu, com a tua espera, conseguiste me salvar; 
Somente você e eu sabemos como eu sobrevivi - 
É porque você me esperou quando ninguém mais o fazia."


Do Portal Vermelho

domingo, 2 de junho de 2019

Quando os grandes romances nasciam nos jornais


Catarina Pires

25 Maio 2019 — 06:21


"Não há nada mais poderoso do que uma boa história", disse Tyrion, o anão de A Guerra dos Tronos, no último episódio da série que há oito anos prende milhões de espectadores. Os jornais perceberam isso há dois séculos e foi assim que nasceram os folhetins e muitos dos grandes romances dos séculos XIX e XX. É o caso de O Mistério da Estrada de Sintra, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, engendrado nas páginas do Diário de Notícias.

A ideia chegou-lhes numa noite de verão, no passeio público [atual Avenida da Liberdade, em Lisboa], em frente de duas chávenas de café. Os dois amigos, Eça de Queirós, então com 24 anos, e Ramalho Ortigão, de 33, estavam aborrecidos, "penetrados pela tristeza da grande cidade que cabeceava de sono".

Vai daí deliberaram reagir e "acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa das alturas do Diário de Notícias" [que à época se situava no Bairro Alto], contam eles no prefácio à terceira edição do folhetim em livro.

Um em Leiria (Eça), outro em Lisboa (Ramalho), munidos apenas da sua imaginação, de uma resma de papel, da sua alegria e da sua audácia, puseram mãos à obra e ter-se-ão divertido à brava naqueles dois meses em que enganaram o bom povo que lia o jornal e avidamente acompanhava as cartas ao "Sr. redator do Diário de Notícias", publicadas a partir de 24 de julho de 1870.

Estas, provenientes de diferentes protagonistas da aventura, todos anónimos, narravam misteriosos acontecimentos passados algures entre Sintra e a capital, que envolviam um oficial inglês morto com ópio, e iam formando um puzzle deslindado apenas a 27 de setembro, data em que os autores se deram a conhecer e revelaram a natureza ficcional do folhetim.

A trama, urdida para criar suspense dia após dia, obedecia à lógica folhetinesca, mas ao mesmo tempo subvertia-a na medida em que durante os dois meses em que foi publicada, só os autores e Eduardo Coelho, diretor do jornal e amigo de Ramalho Ortigão, saberiam que tudo aquilo existia apenas na imaginação dos dois escritores. Uma carta, assinada por Z. e antecedida de uma nota do próprio Diário de Notícias, é particularmente deliciosa, se lida a esta luz.

"Senhor redator do Diário de Notícias. - Lisboa, 30 de Julho de 1870. - Escrevo-lhe profundamente indignado. Principiei a ler, como quase toda a gente em Lisboa, as cartas publicadas na sua folha, em que o doutor anónimo conta o caso que essa redação intitulou O Mistério da Estrada de Sintra. Interessava-me essa narrativa e (...) ia-me parecendo ter diante de mim o ideal mais perfeito, o tipo mais acabado do roman-feuilleton, quando inesperadamente encontro no folhetim publicado hoje as iniciais do nome de um homem - A.M.C. - acrescentando-se que a pessoa designada por estas letras é estudante de Medicina e natural de Viseu! O acaso não podia reunir tudo isto. Havia, portanto, o intuito de fazer cobardemente uma insinuação infamíssima. Isto não é lícito a romancista nenhum.

"A primeira impressão que senti foi a da repulsão e do tédio. Saindo de casa pouco depois da leitura do seu periódico, procurei o meu amigo, para lhe ler a passagem que lhe dizia respeito, e pôr-me à sua disposição no caso de que precisasse de mim para pedir, quanto antes, à redação do Diário de Notícias a satisfação de honra, que homens de educação e de brio não poderiam decerto recusar a semelhante agravo. Em casa do meu amigo acabo, porém, de saber, cheio de confusão e de surpresa, que ele desapareceu e que é ignorado o seu destino!"

Era ao povo e à burguesia - às massas - que os folhetins se dirigiam. Eram estas que os jornais queriam atrair, não só para ganharem leitores - e ganhavam - como para as influenciarem, educarem, entreterem, prenderem. Nelas estava o futuro dos jornais.

A.M.C., que na verdade era tão inventado como Z., andava nas bolandas que fariam dele personagem fulcral para o desfecho da história de amor, ciúme, adultério e morte que apaixonou (e fez crescer) os leitores do Diário de Notícias. Uma história sem vilões, apenas trágicos e humanos enganos, na qual, pelo meio, Eça e Ramalho - é também um mistério quem escreveu o quê - vão já espetando umasFarpas, quando dão voz ao estudante de Medicina, e até teorizando sobre a volatilidade feminina e as (evitáveis?) fatalidades da paixão, fazendo lembrar Flaubert e a sua Madame Bovary, também ela publicada primeiro em folhetim - na revista Revue de Paris, em 1856 -, quando a condessa de W faz a sua confissão.

Era ao povo e à burguesia - às massas - que os folhetins se dirigiam. Eram estas que os jornais queriam atrair, não só para ganharem leitores - e ganhavam - como para as influenciarem, educarem, entreterem, prenderem. Nelas estava o futuro dos jornais.

Assim, o rodapé da primeira página, designado de folhetim, onde iam parar os assuntos mundanos, as piadas, as receitas e os diz-que-diz, passou a ser ocupado por romances em série, os tais romans-feuilletons de que falava Z. na sua carta ao senhor redator do Diário de Notícias.

Honoré de Balzac foi um dos pioneiros do género, no jornal La Presse, em 1836, com A Solteirona, Alexandre Dumas fez render a sua pena com O Conde Monte CristoOsTrês Mosqueteiros, entre outros, mas o grande fenómeno aconteceu com Os Mistérios de Paris, de Eugène Sue, publicado no Journal des Débats entre junho de 1842 e outubro de 1843.

O escritor, filho do médico de Napoleão e frequentador dos salões da alta burguesia, desce ao bas fond parisiense e as histórias que resultam dessa incursão são de tal forma poderosas que não só atraem a atenção de milhares de leitores como o transformam também a ele, que de aspirante a dandy passa a ativista na defesa dos direitos do povo. O jornal ganhou leitores, a fórmula espalhou-se mundo fora - Inglaterra, Estados Unidos, Rússia, Brasil - e o folhetim conquistou um lugar de destaque na literatura mundial.

É certo que muita da produção literária impressa em páginas de jornal não ficou para a história, mas também tornou possível romances intemporais, como "Crime e Castigo".

Na senda de Os Mistérios de Paris, e ainda antes do disruptivo Mistério da Estrada de Sintra, Camilo Castelo Branco publicou, no diário portuense O NacionalOs Mistérios de Lisboa, em 1853, e muitas cidades e jornais do mundo tiveram os seus mistérios, atrás do sucesso de Eugène Sue.

É certo que muita da produção literária impressa em páginas de jornal não ficou para a história, mas o facto de permitir aos escritores uma renda regular, que lhes dava tempo e espaço para escrever, tornou possível romances intemporais, como Crime e Castigo, de Dostoievski, ouAnna Karénina, de Tolstoi; Ulisses, de James Joyce, ou os vários Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle; todos os romances de Charles Dickens ou A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe; A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, ou As Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, entre muitos outros.

No século XX, ao contrário do que talvez se possa pensar, o aparecimento da rádio e depois da televisão não mataram os folhetins. Um Adeus às Armas, de Heming­way,Terna É a Noite, de Scott Fitzgerald, ou A Sangue Frio, de Truman Capote, foram impressos primeiro em jornais ou revistas. E, enfim, as tramas seriadas foram conquistadas pelos microfones radiofónicos e ecrãs de televisão. As novelas e séries, que continuam a prender-nos, não são mais do que descendentes dos velhos folhetins.