quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Helder Moura - (561) O desvelar das tendências militaristas atuais

 

 

O direito, de acordo com o que se passa no mundo, apenas se discute entre os que são igualmente poderosos, porquanto os mais fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que têm de sofrer, Tucídides.

 

Quando em 1945 os Estados Unidos ocuparam o Japão, não se preocuparam especialmente em desenraizar a cultura do militarismo.

            

Diversos altos funcionários presos por crimes de guerraretomaram discretamente os seus cargos no Estado japonês.

 

Na Alemanha, negar o Holocausto é crime. No Japão, é política de governo.

 

A revista Time escolheu Hitler para figurar na sua capa, como “homem do ano 1938”, entendendo que devia ser o candidato ao Prémio Nobel da Paz.

 

 

 

Quando apenas um mês depois de ter sido eleita como a 104ª primeira-ministra do Japão (21 de outubro de 2025), Sanae Takaichi, presidente do Partido Liberal Democrático (PLD), logo no seu primeiro discurso no parlamento ter afirmado que o Japão poderia envolver-se militarmente num conflito entre a China e Taiwan (“an attack on Taiwan could trigger the deployment of her country’s self-defence forces if the conflict posed an existential threat to Japan”), alterando radicalmente toda a política externa seguida até então pelo Japão, tal não fez mais que confirmar as tendências militaristas presentes não só no Japão mas que se têm vindo a apoderar das nossas sociedades.        

Uma das várias explicações para a emergência destas tendências, tem que ver com o que se passou na Segunda Guerra, particularmente com a forma como o pós-guerra que se lhe seguiu foi resolvido.

 

Quando em 1945 os Estados Unidos ocuparam o Japão, não se preocuparam especialmente em desenraizar a cultura do militarismo. Washington debateu se deveria destituir o imperador, figura central do projeto imperial, mas, seguindo o conselho da antropóloga Ruth Benedict, optou por manter o imperador e outros símbolos do militarismo. Isto incluía o Santuário Yasukuni, dedicado aos mortos de guerra, fundado em 1869 e que ainda hoje alberga os restos mortais de mais de mil criminosos de guerra condenados.

 

Diversos altos funcionários presos por crimes de guerra, mas nunca julgados, retomaram discretamente os seus cargos no Estado japonês. Entre eles estavam Yoshida Shigeru, diplomata de alto nível durante a guerra e primeiro-ministro do Japão durante a maior parte do período entre 1946 e 1954; Nobusuke Kishi, burocrata no nordeste da China durante a ocupação, ministro no gabinete de guerra e, mais tarde, primeiro-ministro de 1957 a 1960; Shigemitsu Mamoru, ministro dos Negócios Estrangeiros no gabinete de guerra, julgado como criminoso de guerra de Classe A pelo seu papel na Coreia e preso, e mais tarde ministro dos Negócios Estrangeiros na década de 1950; Okazaki Katsuo, diplomata durante os anos da guerra e mais tarde ministro dos Negócios Estrangeiros de 1952 a 1954; Ikeda Hayato, funcionário do Ministério das Finanças durante os anos da guerra e, mais tarde, primeiro-ministro de 1960 a 1964; e Sato Eisaku, funcionário do Ministério dos Transportes durante os anos da guerra e mais tarde primeiro-ministro de 1964 a 1972. Neste caso, todos eles fizeram parte da chamada "máfia manchu" que liderou a ocupação na China, manteve-se no poder.

 

Para que conste, Nobusuke Kishi foi o avô de Shinzo Abe, primeiro-ministro do Japão de 2006 a 2007 e novamente de 2012 a 2020. Muitas vezes é omitido o facto de Kishi ter sido o arquiteto da ocupação japonesa do nordeste da China e responsável pelo regime de trabalho forçado na China e na Coreia. Após a guerra, Kishi foi brevemente preso em Sugamo como suspeito de ser um criminoso de guerra de Classe A, sendo libertado sem julgamento em 1948. Esperou alguns anos antes de regressar à política com um objetivo fundamental: rever a Constituição de 1947 para remover o Artigo 9, que impunha restrições à militarização no Japão.

 

Em 1952, os EUA reabilitaram formalmente muitos oficiais japoneses que serviram durante a guerra, abrindo caminho para que homens como Kishi entrassem na política ativa e pavimentando o terreno para a formação do Partido Liberal Democrático (PLD) em 1955. Este partido é atualmente liderado por Sanae Takaichi, que nasceu em 1961 e que é a atual primeira-ministra do Japão.

 

Desde que entrou na política, Takaichi tem sido uma figura de destaque na direita chauvinista do Japão, tendo emergido por intermédio do seu mentor, Shinzo Abe. Tal como o avô de Abe, Kishi, Takaichi deseja rever a Constituição japonesa para que o Japão possa reconstruir as suas forças armadas. Em diversas ocasiões, demonstrou reverência pelo período anterior a 1945: visitou o Santuário Yasukuni, defende a conduta do Japão durante a guerra, questiona a natureza coerciva do sistema das "mulheres de conforto" e apoia a ideia de "restauração do orgulho" no passado imperialista. Afirmou que deseja que os manuais japoneses deixem de ser "autodepreciativos" e questionou a veracidade dos crimes de guerra cometidos em Nanquim. As opiniões de Takaichi, que nasceu após a guerra, ilustram que a ocupação americana não só falhou em erradicar a essência do fascismo da sociedade japonesa, como também lhe permitiu florescer.

 

 

Segundo o extenso artigo sobre “Os crimes de guerra do Japão”, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, Império do Japão cometeu inúmeros crimes de guerra e crimes contra a humanidade em diversas nações da Ásia-Pacífico, nomeadamente durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa e a Guerra do Pacífico. Estes crimes ocorreram durante o reinado do Imperador Hirohito.

Exército Imperial Japonês (IJA) e a Marinha Imperial Japonesa (IJN) foram responsáveis ​​por crimes de guerra entre 1927 e 1945, que levaram a 19 milhões a 30 milhões de mortes, desde assassinatos em massa, terrorismo, limpeza étnica, genocídio, escravatura sexual, massacres, experimentação em humanos, tortura, fome e trabalho forçado.

 

A liderança política e militar japonesa tinha conhecimento dos crimes das suas forças armadas, mas continuou a permiti-los e até a apoiá-los, com a maioria das tropas japonesas estacionadas na Ásia a participar ou a apoiar os assassinatos.

Embora não seja claro se o Imperador Hirohito foi informado da extensão total desses crimes, o irmão mais novo do Imperador, o Príncipe Mikasa, serviu como oficial no Exército Imperial Japonês estacionado na China, escreveu nas suas memórias que os oficiais utilizavam prisioneiros de guerra chineses para o treino com baioneta, a fim de fortalecer a determinação dos soldados japoneses. Além disso, observou que os prisioneiros de guerra eram asfixiados e fuzilados em grande número.

Serviço Aéreo do Exército Imperial Japonês participou em ataques químicos e biológicos contra civis durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa e a Segunda Guerra Mundial, violando acordos internacionais que o Japão tinha assinado, incluindo as Convenções de Haia, que proibiam o uso de "veneno ou armas envenenadas" nas guerras.

 

Após a Guerra, foram emitidos inúmeros pedidos de desculpas pelos crimes de guerra por parte de altos funcionários do governo japonês. O Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão reconheceu o papel do país em causar "tremendos danos e sofrimento" antes e durante a Segunda Guerra Mundial, particularmente o massacre e violação de civis em Nanquim pelo Exército Imperial Japonês.

No entanto, a questão continua a estar pronta a ser reaberta, com alguns membros do governo japonês, incluindo os ex-primeiros-ministros Junichiro Koizumi e Shinzō Abe, a terem prestado homenagem no Santuário Yasukuni, que honra todos os mortos de guerra japoneses, incluindo criminosos de guerra de Classe A condenados.

Segundo Shinzö Abe, o Japão aceitou o Tribunal de Tóquio e os seus julgamentos como condição para acabar a guerra, mas as suas sentenças não têm qualquer relação com as leis do Japão: assim, os condenados em crimes de guerra não são criminosos segundo a lei japonesa.

Além disso, alguns manuais de história japoneses fornecem apenas breves referências aos crimes de guerra, e certos membros do Partido Liberal Democrático negaram algumas das atrocidades, como o envolvimento do governo no rapto de mulheres para servirem como "mulheres de conforto", um eufemismo para escravas sexuais.

 

Quanto a assassinatos em massa, o historiador britânico Mark Felton afirma que foram mortas até 30 milhões de pessoas, a maioria civis:

 

Os japoneses assassinaram 30 milhões de civis enquanto "libertavam" do domínio colonial aquilo a que chamavam a Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental. Cerca de 23 milhões destas pessoas eram de etnia chinesa. É um crime que, em números absolutos, é muito maior do que o Holocausto naziNa Alemanha, negar o Holocausto é crime. No Japão, é política de governo.”

 

Quanto a experimentação em humanos e guerra biológica, unidades militares especiais japonesas realizaram experiências em civis e prisioneiros de guerra na China. O objetivo da experimentação era desenvolver armas biológicas que pudessem ser utilizadas para a guerra. Agentes biológicos e gases desenvolvidos a partir destas experiências foram utilizados contra o Exército Chinês e a população civil. Isto incluiu a Unidade 731 sob o comando de Shirō Ishii. As vítimas foram submetidas a experiências que incluíram, entre outras, vivissecção, amputações sem anestesia, testes de armas biológicas, transfusões de sangue de cavalo e injeção de sangue animal nos seus cadáveres. A anestesia não era utilizada porque se acreditava que os anestésicos afetariam adversamente os resultados das experiências:

 

Para determinar o tratamento da hipotermia, os prisioneiros eram levados para o exterior com um tempo gelado e deixados com os braços expostos, sendo periodicamente encharcados com água até congelarem completamente. O braço era posteriormente amputado; o médico repetia o processo na parte superior do braço da vítima até ao ombro. Depois de ambos os braços serem amputados, os médicos passavam para as pernas até que restassem apenas a cabeça e o tronco. A vítima era então utilizada para experiências com peste e agentes patogénicos”.

 

Do artigo referido, consta uma listagem que pode ser consultada respeitante a definições dos crimes de guerra japoneses, a lei internacional e a japonesa, o militarismonacionalismo , imperialismo e racismo japonêsarmas de destruição massivatortura de prisioneiros de guerra, os julgamentos de Tóquio, lista dos maiores crimes e massacres, dos crimes de guerra, e outros.

 

 

É no blog de 27 de setembro de 2017, “Os ovos da serpente”, que podem ler:

“[…] Ainda antes do fim da II Guerra já centenas de milhar de prisioneiros dos exércitos nazis capturados e para os quais não havia campos de internamento em quantidade suficiente, foram colocados nos navios de carga que regressavam vazios aos EUA depois de terem descarregado todo o material na Europa. E por lá ficaram.

 É sempre bom recordar que em 1939 os nazis contavam com mais de duzentos mil seguidores e simpatizantes nos EUA, que a revista Time escolheu Hitler para figurar na sua capa, como “homem do ano 1938”, entendendo que devia ser o candidato ao Prémio Nobel da Paz, e que entre os seus admiradores se encontravam o magnate automobilístico Henry Ford e o aviador Charles Lindbergh.

E que na Grã-Bretanha, a abdicação em 1936 do rei Eduardo VIII, Duque de Windsor, ficou certamente mais a dever-se às suas simpatias para com Hitler e o regime nazi do que com o facto de se pretender casar com uma divorciada americana. Eram notórias as simpatias da classe alta e dos aristocratas britânicos para com o regime nazi, o que talvez tenha levado Hitler a cometer o erro estratégico de acreditar que a implantação do seu regime na Grã-Bretanha seria relativamente fácil, não se preocupando muito em dificultar a retirada do exército britânico de Dunquerque.

 Na destruição e na confusão que se seguiu após o fim da II Guerra, a necessidade de se manter a funcionar um mínimo de administração pública nos países derrotados, e até na dificuldade de separar nazis de não nazis fez com que, intencionalmente ou não, muitos deles passassem despercebidos. Vamos acreditar que foram essas as razões e que não foi intencional.

Na realidade, os aliados que ocuparam a República Federal da Alemanha (Estados Unidos, Reino Unido e França) condenaram apenas 6650 ex-nazis, o que só por si era uma pequena parte do total dos membros do partido. E, as elites alemãs da época fizeram o resto.

Um recente estudo denominado “Projeto Rosemburg” apresentado publicamente por Heiko Maas, atual ministro da Justiça alemão, vem confirmar que em 1957, 77% dos funcionários com cargos de responsabilidade no Ministério da Justiça alemão (ou seja, três em cada quatro) eram antigos membros do partido nazi. O que não deixa de ser até curioso, porquanto essa percentagem em 1957 era mais alta do que durante o Terceiro Reich (http://www.dn.pt/mundo/interior/sistema-de-justica-alemao-do-pos-guerra-estava-dominado-por-ex-nazis-5434041.html) […]”.

E por lá estão.

 

E no blog de 1 de fevereiro de 2023, “Crimes de guerra e guerra sem crimes”,  poderão ler sobre o Tribunal de Nuremberga e o Tribunal de Tóquio::

 

“[..]A primeira sessão, sob a presidência do representante soviético, Gen. I.T. Nikitchenko, realizou-se a 18 de outubro de 1945, em Berlim. Foram acusados 24 ex-líderes nazis ​​por perpetuarem crimes de guerra, e ainda vários grupos (como a Gestapo, a polícia secreta nazi) acusados ​​por terem carácter criminoso. A partir de 20 de novembro de 1945, todas as sessões do tribunal passaram a ser realizadas no Palácio da Justiça em Nuremberga.

Após 216 sessões, a 1 de outubro de 1946, foi proferido o veredicto de 22 dos 24 réus originais (Robert Ley cometeu suicídio enquanto estava na prisão, e as condições físicas e mentais de Gustav Krupp von Bohlen und Halbach impediram que ele fosse julgado). Três dos réus foram absolvidos: Hjalmar Schacht, Franz von Papen e Hans Fritzsche. Quatro foram condenados a penas de prisão que variaram de 10 a 20 anosKarl DönitzBaldur von SchirachAlbert Speer e Konstantin von Neurath. Três foram condenados à prisão perpétuaRudolf HessWalther Funk e Erich Raeder. Doze dos réus foram condenados à morte por enforcamento. Dez deles - Hans FrankWilhelm FrickJulius StreicherAlfred RosenbergErnst KaltenbrunnerJoachim von RibbentropFritz SauckelAlfred JodlWilhelm Keitel e Arthur Seyss-Inquart - foram enforcados a 16 de outubro de 1946. Martin Bormann foi julgado e condenado à morte à revelia, e Hermann Göring suicidou-se antes de poder ser executado.

 

Para além deste tribunal, foram ainda constituídos logo de seguida, entre dezembro de 1946 e abril de 1949, outros 12 subsequentes tribunais militares para julgar crimes de guerra cometidos por chefias do partido nazi, médicosindustriaisjuízesministros e outros elementos de organizações nazis. Dos 3.887 casos, 3.400 foram abandonados, tendo sido presentes a tribunal 489, com 1.672 acusados, dos quais 1.416 foram condenados (200 foram executados, 279 condenados a prisão perpétua – embora em 1950 quase todos acabassem por serem soltos ao abrigo de uma amnistia).

 

Particular interesse tem também o caso do tribunal para julgar os crimes dos nazis japoneses (Tribunal de Tóquio) instaurado pelo General Douglas MacArthur, onde, devido ao encobrimento feito pelo próprio governo americano, os principais responsáveis pelos crimes horrendos da Unidade 731 (experiências com armas biológicas e químicas em humanos) não foram presentes à justiça, e onde devido aos então recentes bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui se invocou que os pilotos japoneses não podiam ser punidos por bombardearem cidades dado os pilotos americanos terem feito o mesmo […]”  

 

Na História da Guerra do Peloponeso, começada a escrever já lá vão 2.400 anos (431 a. C.), Tucídides pôs os poderosos Atenienses a explicar aos derrotados e impotentes melitanos, a razão para o genocídio que se lhe seguiu:

 

 “o direito, de acordo com o que se passa no mundo, apenas se discute entre os que são igualmente poderosos, porquanto os mais fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que têm de sofrer”, (capítulo XVII, Décimo sexto Ano da Guerra, A Conferência Melitana, O Destino de Melos).

 

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