quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

hélder moura - (562) Quando as mentiras passam a ser verdades

  •  hélder moura
  •  17.12.25


A repetição, muitas vezes sobrevalorizada por se acreditar na capacidade inferior das massas para a perceber e recordar, é, contudo, importante porque as convence da consistência ao longo do tempo, H. Arendt.

 

O termo “lavagem de cérebro”, apesar de carecer de qualquer fundamentação científica validada, entrou para o imaginário da nossa sociedade como um conjunto de técnicas científicas.

 

O nosso problema é que as pessoas são obedientes quando as prisões estão cheias de pequenos ladrões enquanto os grandes ladrões comandam o país, H. Zinn.

 

 

 

Não é por acaso que nos EUA (não só) a chamada e assumida Direita Cristã tem vindo a impor que o criacionismo, ou o “desígnio inteligente” faça parte dos programas escolares, a ser ensinado em pé de igualdade científica com o evolucionismo. Ela sabe que o descrédito das disciplinas racionais, pilares do Iluminismo, é fundamental para destruir a indagação intelectual honesta e desapaixonada. A partir daí, os factos passam a poder ser intermutáveis com as opiniões.

O conhecimento da realidade não necessita já de ter por base a colheita elaborada de factos e evidências. Só por si, a ideologia é a verdade. Os factos que se interponham no caminho da ideologia podem ser mudados. As mentiras passam a ser verdades.

 

Mais abrangente, Hannah Arendt, explica-nos nas Origens do Totalitarismo, o comportamento de aceitação das massas:

 

Aquilo que convence as massas não são os factos, nem mesmo os inventados, mas apenas a consistência do sistema de que eles presumidamente fazem parte. A repetição, muitas vezes sobrevalorizada por se acreditar na capacidade inferior das massas para a perceber e recordar, é, contudo, importante porque as convence da consistência ao longo do tempo.”

 

 

É a 24 de setembro de 1950 que o Miami News publica um artigo do jornalista americano Edward Hunter em que pela primeira vez aparece o termo “lavagem de cérebro” (brain washing), que apesar de carecer de qualquer fundamentação científica validada, vai entrar para o imaginário da nossa sociedade como o conjunto de técnicas psicológicas que manipulam ações ou pensamentos contra a vontade, o desejo ou o conhecimento de uma pessoa, reduzindo-lhe a capacidade de pensar criticamente ou de forma independente, permitindo a introdução de novos pensamentos e ideias indesejáveis ​​na sua mente.

Segundo Hunter, combinando a teoria Pavloviana com a tecnologia moderna, os psicólogos chineses e russos conseguiram desenvolver técnicas poderosas de manipulação do cérebro das pessoas. Hunter cunhou o termo após entrevistar ex-prisioneiros chineses que foram submetidos a um processo de "reeducação”, bem como às técnicas de interrogatório que o KGB utilizava durante as purgas para extrair confissões de prisioneiros inocentes e, a partir daí, conseguiram variações - controlo da mente, alteração da mente, modificação do comportamento e outras.

Um ano depois, Hunter publica a sua obra base, Brain-Washing in Red China: The calculated Destruction of Men’s Minds, (Internet Archive, pdf), como alerta para o que entendia ser um vasto sistema maoísta de "reeducação" ideológica. A nova terminologia encontrou o seu caminho de aceitação maioritária na nossa sociedade como provam o mais vendido romance O Candidato da Manchúria e os filmes com o mesmo nome de 1962 (de John Franenheimer, com Frank Sinatra) e de 2004 (de Jonathan Demme, com Denzel Washington e Meryl Streep).

Talvez seja importante notar que Hunter fez parte de várias organizações de propaganda da CIA, e durante uma sua deposição perante o Comité de Atividades Antiamericanas da Câmara dos Representantes dos EUA, afirmou que os EUA e a NATO perderam a Guerra Fria devido à vantagem dos comunistas na propaganda e na manipulação psicológica, e que o Ocidente perdera a Guerra da Coreia por não estar disposto a usar a sua vantagem em bombas atómicas. Não via qualquer diferença entre os vários países comunistas e advertiu que tanto a Jugoslávia como a China estavam tão empenhadas na dominação mundial comunista quanto a União Soviética.

 

Estava criado o ambiente social e político para que a partir do início da década de 1950, a Agência Central de Inteligência (CIA) e o Departamento de Defesa dos EUA realizassem pesquisas secretas, incluindo o Projeto MKUltra, para o desenvolvimento de procedimentos e identificação de drogas que pudessem ser usadas para alterarem o comportamento humano. Estas experiências incluíram "desde a terapia de eletrochoques, hipnose, privação sensorial, isolamento, abuso verbal e sexual  a altas doses de LSD e outras formas de tortura, tendo como base experiências em humanos anteriormente efetuadas pelos nazis.

À frente do projeto (que incluía mais de 30 instituições e universidades envolvidas no programa de experimentação de drogas em cidadãos "de todos os níveis sociais, altos e baixos, nativos americanos e estrangeiros" sem o seu conhecimento, e em ainda mais de mil militares voluntários e empregados da CIA, e outros fora dos EUA nos black sites), Sidney Gottlieb e a sua equipa conseguiram "destruir a mente existente" de um ser humano utilizando técnicas de tortura; no entanto, o conseguir a reprogramação, em termos de encontrar "uma forma de inserir uma nova mente neste vazio resultante", não foi alcançada.

Em 1979, John D. Marks escrevia no seu livro "The Search for the Manchurian Candidate" que, até ao encerramento efetivo do programa MKUltra em 1963, os investigadores da agência não tinham encontrado uma forma fiável de fazer uma lavagem cerebral a outra pessoa, uma vez que todas as experiências terminaram sempre em amnésia ou catatonia, tornando impossível qualquer utilização operacional.

 

Mas algo se aproveitou: um relatório bipartidário do Comité de Serviços Armados do Senado, divulgado parcialmente em dezembro de 2008 e na íntegra em abril de 2009, relatou que os instrutores militares dos EUA que estiveram em Guantánamo em dezembro de 2002, basearam um curso de interrogatório num gráfico copiado de um estudo da Força Aérea de 1957 sobre técnicas de lavagem cerebral "comunistas chinesas" utilizadas para obter falsas confissões de prisioneiros de guerra americanos durante a Guerra da Coreia. O relatório mostrou ainda como a autorização do Secretário da Defesa, em 2002, para a utilização destas técnicas agressivas em Guantánamo, levou à sua utilização no Afeganistão e no Iraque, incluindo em Abu Ghraib.

 

 

E tão bem foram estas operações realizadas (servindo apenas para criar a tal “perceção da realidade”), que hoje acabamos a viver num mundo desejado estranhamente obediente. Eis o que Howard Zinn conclui:

 

Sempre que dizemos que o problema é a desobediência civil, estamos a dizer que o nosso problema é a desobediência civil. Esse não é o nosso problema… O nosso problema é a obediência civil. O nosso problema é o número de pessoas em todo o mundo que obedeceram às ordens dos líderes dos seus governos e foram para a guerra, e milhões foram mortos por causa dessa obediência. E o nosso problema é aquela cena em ‘Nada de Novo na Frente Ocidental’, onde os alunos marcham obedientemente em fila para a guerra. O nosso problema é que as pessoas são obedientes em todo o mundo, apesar da pobreza, da fome, da estupidez, da guerra e da crueldade. O nosso problema é que as pessoas são obedientes quando as prisões estão cheias de pequenos ladrões enquanto os grandes ladrões comandam o país. Esse é o nosso problema.”

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/562-quando-as-mentiras-passam-a-ser-224760


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