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A viagem de Oxum à Disneylândia: a poesia de Scheila Sodré
A escrita poética de Scheila Sodré apresenta um amplo mosaico temático que inclui desde referências à mitologia afro-brasileira e ao cinema expressionista alemão até reminiscências da infância e das viagens da autora, que viveu na fronteira entre o México e os Estados Unidos.
Por Claudio Daniel
A poeta Scheila Sodré: amplo mosaico temático e caráter de alegoria brutalista A poeta Scheila Sodré: amplo mosaico temático e caráter de alegoria brutalista
São poemas escritos sob o signo da loucura luciferina de uma época regida pela tecnologia, pelo mercado e pela mídia – e que por isso mesmo assumem, por vezes, o caráter de alegoria brutalista, sem perder de vista, porém, o lirismo.
Os textos poéticos da autora refletem o impacto da leitura de seus poetas de cabeceira, como Haroldo de Campos, mas há uma voz singular aqui: a poeta assimila e reelabora técnicas e procedimentos da tradição poética contemporânea em sua partitura poética pessoal em direção a uma fronteira desconhecida, e por isso mesmo fascinante.
Há faíscas do neobarroco e do surrealismo em sua escritura, na luxúria semântica (“Desdêmona desrégia à beira-rio / desfiladeiro descida de lápides”), nas imagens inusitadas (“olhos correm com pernas de aranha”), na miscigenação de elementos de várias culturas e repertórios (“Oxum / dança-luz / na gira / asas-dragão / escamas / de pétalas”), mas a arquitetura poética se afasta da proliferação e do maravilhoso, elementos citados por Severo Sarduy como constituintes do barroco: há um construtivismo minimalista nos poemas de Scheila Sodré, com ênfase nas linhas concisas, elípticas, nas imagens recortadas e no olhar inusitado sobre o cotidiano, que comparece em algumas composições que recordam sequencias cinematográficas, como aqui: “livros flutuantes / peixes-cascudos / saltando da lama / tempestades / crianças a cavalo / subindo beliches / crianças vazantes / luas crescentes / em seu quarto / a inquietude / nos dedos perfurados”. Em linhas breves e substantivas, à maneira do objetivismo de William Carlos Williams, a autora constrói uma pequena narrativa fragmentária que apresenta ao leitor apenas a essência do relato, ao mesmo tempo delicado e doloroso.
Em outra composição, que também remete a um universo paradoxalmente íntimo e social, lemos: “pés descalços correm / matam um sapo / chove facas / lâminas e línguas / subindo telhados / chafariz de pedra / memória de um córrego / que ecoa e silencia / gritos do rio sujo / o rio começa / o rio termina / pessoas dançam / crianças riem / sem saber das perdas / esculpindo lama / anjos sujos / asas / molhadas / chuvas de escorpião”. A recuperação de memórias da infância, com todo o entorno social de carência e exclusão, acontece pela sucessão de imagens, similares a planos de cinema, que dispensam legendas explicativas ou exclamações emotivas: as imagens são conceitos nessa lírica imprevista e desconcertante, que se aproxima também da sátira e do humor negro (“no consultório do Dr. Caligari / aguarda prescrição/ tarja preta / PHD em TDHC / com TOC / de luvas de pelica / e óculos aro de tartaruga”).
O retrato crítico de nossa triste época, marcada pela violência de um fascismo futurista, se faz presente nos poemas de Scheila Sodré, em linhas de intensa força expressiva, que nos fazem pensar, por vezes, em Augusto dos Anjos e em Gottfried Benn: “Demônios vendem suas almas a preço de banana / Promoção-relâmpago: blackfriday / esperam por Legba driving / Corvette de vidros metálicos / com prostitutas de lábios crus / cheirando a cocaine das pontas de garras de um louva-a-deus”. Em outra peça contundente, a autora escreve: “A língua da serpente / embala o sono / dos inocentes / a atmosfera ácida mata os frutos / dizima as sementes. / Não há futuro / trevas rítmicas que nos apertam/ e trituram ossos”. As linhas iniciais do poema podem nos fazer lembrar de certas cenas macabras de Hellraiser, mas ela finaliza o tecido poético situando onde acontece o filme de terror: “Era uma vez / a terra de Santa Cruz / Solo de corrupção, injustiças, / escravos crucificados”.
A denúncia política e social obtém seu ponto máximo de ebulição no poema Jaulas de Moreau, cujo título remete ao livro de ficção científica de H. G. Wells, que imaginou uma ilha habitada por animais transformados em seres quase humanos por meio de experimentos científicos. No poema de Scheila Sodré, porém, encontramos seres humanos convertidos a um estado quase animal pelo poder invisível do grande capital financeiro: o poema se refere às crianças brasileiras separadas dos pais e aprisionadas em jaulas pelo regime neocolonial de Donald Trump, em sua cruzada contra os imigrantes ilegais que ousam ingressar nas fronteiras Império. Oxum foi impedida de entrar na Disneylândia. Vale a pena citarmos o poema aqui na íntegra:
JAULAS DE MOREAU
mandíbulas de crocodilo
abocanham
pequenos ossos
no fim do arco íris negro
um muro árido
cortes de arames
fios de navalha
unhas roídas
de querubins
ratoeira americana
raiva contida em cápsulas
e papel metálico
crianças dormem
invisíveis
como elementos químicos
nos pulmões: medo
fábrica de terror
Mickey Mouse morto
na Disneylândia
dezenas de rosários,
terços e velas
mães anônimas
#mickeymousemorto
A poesia de Scheila Sodré encontra-se publicada em uma plaquete, Hemicrânia (palavra que remete ao terrível espectro da dor de cabeça, que persegue a autora), publicada em 2018 pela editora Leonella, na antologia A Noite Dentro da Ostra, publicada pela Lumme Editor, e em algumas revistas eletrônicas, como a Zunái, Revista de Poesia e Debates. É uma poesia em processo de maturação, mas que já revela a veia inventiva, a dicção poética inusitada e a mitologia pessoal de uma autora inconformista.
* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.
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