sábado, 7 de setembro de 2019

Eduardo Galeano - Porrque escrevo

* Eduardo Galeano
Quero contar a vocês uma história que, para mim, foi muito importante: a primeira vez em que me senti desafiado pelo ofício de escrever.

Aconteceu no povoado boliviano de Llallagua, na zona mineira. No ano anterior, ali esmo tinha acontecido a matança de San Juan. Os mineiros estavam celebrando a noite de San Juan, bebendo, dançando. E lá dos morros que rodeiam o povoado, o ditador Barrientos mandou metralhar todos eles. Uma matança atroz. Cheguei por lá mais ou menos um ano depois, em 68, e lá fiquei por um tempo, graças às minhas habilidades de desenhista. Porque, entre outras coisas, eu sempre quis desenhar – conseguia desenhar retratos, por exemplo. E retratei todas as crianças dos mineiros, e fiz também alguns cartazes do carnaval e outros eventos. Então me adotaram e passei muito bem, naquele mundo gelado e miserável, onde a pobreza era multiplicada pelo frio. Chegou a noite da despedida. Os mineiros meus amigos, armaram uma despedida com muita bebida – bebemos, cantamos, contamos piadas… cada uma pior que a outra. E eu sabia que às cinco ou seis da manhã, soaria a sirene que os chamaria para o trabalho na mina. E seria a hora de dizer adeus. Quando o momento estava chegando, eles me rodearam e me pediram uma coisa. Disseram: – Conta, conta pra gente como é o mar. E eu fiquei atônito porque não me vinha nenhuma ideia. Os mineiros eram homens condenados a uma morte antecipada nas tripas da terra, por causa do pó de sílica. A média de vida era de trinta, trinta e cinco anos, não mais. Eu sabia que eles jamais veriam o mar, que iam morrer muito antes de qualquer possibilidade de ver o mar, porque estavam condenados pela miséria a nunca sair daquele povoado. Então eu tinha a responsabilidade de levar o mar a eles, de encontrar palavras que fossem capazes de molhar todos eles, para que pudessem sentir o gosto e o cheiro do mar. E esse foi meu primeiro desafio de escritor, a partir da certeza de que escrever serve para alguma coisa.

Eduardo Galeano – “O Caçador de Histórias” – Ed. L&PM

http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2019/09/por-que-escrevo.html 

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