"A Ophelinha pode
preferir quem quiser". Primeira carta de amor de Pessoa faz 100 anos
O poeta português escreveu a sua
primeira carta de amor há um século. No destinatário, um nome: Ofélia Queiroz -
ou, nas suas palavras, "Ophelina".
A vida amorosa de Fernando Pessoa
é uma incógnita, além de Ofélia Queiroz, a namorada que manteve em 1920
01 Março 2020 — 19:08
"Todas as cartas de amor são
ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas". Quem o
escreve é Álvaro Campos, o heterónimo do português Fernando Pessoa. E "se
há amor", dizia, então "tem de ser". A primeira escrita
pelo poeta foi a 1 de março de 1920, dirigida a "Ophelina", uma
menina de 19 anos, Ofélia Queiroz, e celebra este domingo 100 anos de
existência.
Apesar do diminutivo que a evoca
inicialmente, é magoado, ofendido até, que Pessoa se dirige ao seu amor na
primeira destas cartas. "Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a
sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso
tão comprido, nem da série de 'razões' tão pouco sinceras como convincentes,
que me escreveu", lê-se. Falava de um outro "rapaz" na vida da
sua Ofélia, pelo qual demonstra um forte ciúme, mas que diz aceitar, pelo amor
que lhe guarda. "Como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelina pode preferir
quem quiser", remata.
Os restantes versos do documento
são um tratado de lições em que o poeta lembra, afinal, o que é amar.
Leia a carta na íntegra:
Ophelinha
Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a sua indiferença real,
não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da
série de «razões» tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu.
Bastava dizer-mo. Assim, entendo da mesma maneira, mas dói-me mais.
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta
muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem
quiser: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade
(a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos
de advogado. O amor não estuda tanto as coisas, nem trata os outros como réus
que é preciso «entalar».
Porque não é franca para comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem
não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante
a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lha venham acrescentar
criando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que
se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo
de troça.
Reconheço que tudo isto é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo
sou eu.
Eu-próprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo
para pensar em outra coisa que não fosse no sofrimento que tem prazer cm
causar-me sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido, e creio bem que
amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim...
Aí fica o «documento escrito» que me pede. Reconhece a minha assinatura
o tabelião Eugénio Silva.
1.3.1920
Fernando Pessoa
Pouco se sabe sobre a vida
amorosa de Fernando Pessoa. Os seus textos são transparentes, os seus
heterónimos bem definidos, com traços de fácil caracterização, mas aquilo que é
Pessoa permanece uma incógnita, mesmo além da sua vida. A incerteza foi
alimentando diversas teorias ao longo dos anos, com alguns biógrafos a
caracterizá-lo como um homossexual reprimido Uma tese justificada, em parte,
pelo heterónimo Álvaro Campos, que Pessoa imaginou como um homem homossexual,
satírico e insatisfeito, lembra o El Mundo que
neste domingo assinala o centenário da primeira carta de amor do escritor.
Contudo, nada conseguiu provar a ligação que este facto teria com a vida do
autor.
A única certeza dada por aqueles
que se dedicaram a escrever sobre a vida de Pessoa é a namorada Ofélia Queiroz,
sua colega de trabalho num escritório comercial em Lisboa. Ele 32 anos e ela
com 19, separava-os 14 anos. O poeta apaixonou-se e, daí, seguiram-se
várias cartas de amor. Cartas que a própria decidiu tornar públicas na década
de 1970, quase 40 anos após a morte do poeta, em 1935.
Depois destas, seguiram-se
outras, onde é possível decifrar a cumplicidade de ambos e como a mesma se
deteriorou. "Meu bebé travesso", escrevia numa carta de 5 de abril de
1920. Lembra-a que sentia "a boca estranha por não beijar há tanto
tempo". E evocava, no mesmo manuscrito: "Meu bebé, para sentar no
colo! Meu bebé, para te mordiscar!". As cartas são uma viagem pelo que
esta relação entre o poeta e a jovem adulta, se transformou com o decorrer do
tempo, distanciando-os quase definitivamente em novembro deste ano.
Fernando Pessoa nunca casou,
embora tenha tido pelo menos mais dois amores na sua vida antes de morrer,
segundo os biógrafos. Tudo o mais continua ainda por descobrir.
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