CORONAVÍRUS - Covid-19. Como as pessoas falam sem saber da ameaça que chegou - 15.03.2020 às 13h40 - LUÍS M. FARIA
Reportagem nas ruas, as conversas sobre o coronavírus em locais públicos, desde cafés a paragens de autocarro, discutem as regras de distanciamento social, o verdadeiro perigo do vírus e as mensagens de voz falsas que circulam no Whatsapp. Em paralelo, há teorias várias sobre a origem não-natural do vírus. O facto de os cientistas as desmentirem, obviamente, não basta como argumento para muita gente
Uma paragem de autocarro numa zona próxima de Lisboa, num sábado à tarde. Enquanto o autocarro não chega, uma mulher jovem fala ao telefone. Outra chega, com luvas descartáveis calçadas, e as pessoas no assento afastam-se para lhe dar lugar. Ela recusa. "Quatro metros", diz, indo-se encostar na ponta da paragem.
Ambas as mulheres estão ao telefone, e, como não falam muito baixo, depressa se percebe que são empregadas domésticas. As conversas são ambas sobre o coronavírus. "Diziam que estavam não sei quantos em observação... Afinal havia mortos, em Santa Maria...", diz uma. "A ministra tem um ar cínico, a mexer no cabelo. Vê-se que está nervosa...".
Uma delas tem o alta-voz com o volume suficientemente elevado para se constatar que está a ouvir um vídeo onde alguém que se reclama de Informação privilegiada diz que já existem milhares de infetados ou mortos. "Pelas coisas que fui convidado a ouvir ontem... Juro-te que preferia não ter ouvido e visto aquilo que vi...". Esse vídeo, que relata uma situação falsa, anda a circular no WhatsApp e tem sido alvo de troça - mas em alguns casos também de receio.
A outra mulher aconselha alguém a controlar a temperatura mas não se preocupar demasiado se houver oscilações, pois na menopausa isso é natural. E queixa-se dos patrões: "Essas pessoas tão egoístas, man, que nem feriado te dão. Não vens hoje, não te pagam. É assim. Nem que eles tenham de guardar os filhos dentro de um quarto, para tu limpares a casa toda. Eu perguntei: mas a senhora não me vê como uma ameaça?".
Na estação onde apanhamos o comboio, um funcionário da CP conversa com outro que se encontra dentro da bilheteira. "Isto é a Terceira Guerra Mundial. Devíamos ficar em casa", "Tu não tens nada?", pergunta o segundo. "Diabetes", responde o primeiro com um sorriso malicioso.
Em Lisboa, o tema das conversas que se ouvem permanece o mesmo em quase todos os casos. "Deixaram esta treta entrar e agora como é que é?", diz um motorista da Carris para um colega. "Deviam ter fechado logo as fronteiras. Tudo. Se chegarem 505 a um hospital, como é que é? Mandam-nos para casa. É a quarentena, como na China. Mandam-nos para casa. Aparecem em público a dizer que morreram cem e está tudo controlado. E os outros mil? Os outros mil estão em casa, mortos".
Mais adiante, o mesmo motorista comenta para o colega, apontando os turistas na rua da Alfândega. "Tu não vês? Andam para aí a passear. Anda cheios de dinheiro. Eu e tu temos de trabalhar, mais nada". O outro responde: "Os que estão a recibo verde é que estão entalados".
O DISTANCIAMENTO E QUEM GANHA COM O SURTO
Num café popular da Margem Sul, um grupo de clientes encostados ao balcão discute os novos protocolos sociais, que parecem não convencer alguns deles, como não os convencem, mesmo agora, as piores previsões sobre os efeitos do vírus. "Deixar de dar apertos de não às pessoas e perder os amigos? Ó pá, eu não acredito nisso", diz um. "Isto há para aí muitos interesses, das farmacêuticas, pá, e para esconder outras coisas", responde outro. "Vi no Facebook que isto foi uma mutação do vírus da Sida", acrescenta um terceiro.
A obsessão com quem "está a ganhar" com o coronavírus é um tema constante, e os suspeitos são vários, incluindo "o Soares dos Santos" e outras empresas de hipermercados. Em paralelo, há teorias várias sobre a origem não-natural do vírus. O facto de os cientistas as desmentirem, obviamente, não basta como argumento para muita gente. Algumas pessoas têm uma teoria concreta (foram os chineses, os americanos, foi deliberado, foi um acidente, foi algo que se escapou...), outras dizem apenas vagamente que o vírus foi fabricado.
Na rua central de Cacilhas, sexta-feira à noite o cenário lembrava o da proverbial bomba de neutrões: prédios de pé, restaurantes abertos, quase ninguém lá dentro, numa altura da semana em que o movimento é sempre intenso. Para funcionários que perderam o emprego literalmente de um dia para o outro, entre quinta e sexta-feira, arranjar trabalho na mesma área vai ser impossível nesta altura. Um bêbado tentava abraçar um conhecido que insistia em afastar-se, explicando que era uma pessoa doente e não podia cumprimentar ninguém. E outro raro cliente com uma cerveja na mão dizia filosoficamente: "Ainda vamos a tempo de cancelar 2020".
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