sábado, 18 de abril de 2020

José Pacheco Pereira - A música venceu Salvatore Quasimodo


OPINIÃO
A música venceu Salvatore Quasimodo
Nestes tempos de peste, leiam o Eugénio de Andrade e, melhor ainda, ouçam as suas músicas.
18 de Abril de 2020, 6:15

Penso que já contei esta história, mas em tempos de peste ouve-se às vezes melhor lá fora do que cá dentro. Algum pássaro a transportará passando por cima do cavaleiro do apocalipse que nos assalta hoje.

Entre o Ostinato Rigore publicado em 1964 e o Obscuro Domínio de 1971, Eugénio de Andrade escreveu muito pouca poesia. Traduziu e editou poetas e preparou várias antologias de prosa para a Inova, a sua editora nos últimos anos de ditadura. Foram também os anos em que o nosso convívio foi mais intenso, partilhado pela Rosa, o José Rodrigues, o Ângelo de Sousa, o Manuel Dias da Fonseca, o Jorge Peixinho e, numa visita memorável e esporádica, pelo Jorge de Sena. Essa visita merece ser contada, mas fica para depois.

O Eugénio estava com aquilo que hoje se chama writer’s block, uma sinistra expressão para um poeta, ou seja, estava com uma crise de escrita. Recordo-me de uma longa conversa com o Eugénio sobre isso que começou na Rua de Palmela, 111, em que no andar de baixo vivia a Rosa e no de cima o Eugénio. Era uma casa bastante modesta e muito pequena, cozinha, sala partilhada entre uma mesa em que escrevia junto à janela e também comia, e uma pequena sala de estar, uma dispensa cheia de livros, e um longo corredor para o quarto de banho e o quarto do lado oposto da casa, virado para as árvores da rua. Os passeios nocturnos começavam muitas vezes aí e tinham uma paragem obrigatória no Café S. Lázaro, junto da Biblioteca Municipal e de um dos mais belos jardins românticos do Porto.

Nesse dia, saímos do Café bastante cedo e seguimos em direcção à Ribeira pela Rua de S. António (que a ditadura impediu que se chamasse 31 de Janeiro), depois pela Rua Mouzinho da Silveira, até ao rio e depois ao longo do rio. Era uma daquelas conversas que incluem muitos silêncios que não incomodavam ninguém, pela sua naturalidade. (Outro poeta que tinha também essa capacidade de silêncio como parte da conversa era o Vasco Graça Moura.) Eugénio dizia que já não conseguia escrever poesia, as suas palavras nos poemas tinham atingido um estado de depuração e contenção, que não conseguia ultrapassar essa forma exígua e contida. Dava o exemplo de Salvatore Quasimodo e dos seus poemas como também tendo chegado a uma forma tão condensada de escrita, “como uma pedra”. Não se podia passar dali. A conversa e o passeio terminou num pequeno estaleiro que havia à beira-rio. Era uma noite escura e os barcos tinham uma sombra sinistra, embora a noite fosse amena. Saídos da Ribeira havia muito pouca gente na rua, a não ser alguns pescadores. Para quem conhece o Porto, sabe que o passeio foi muito longo, e o regresso duplicou-o.


 
Ofereci então ao Eugénio um dos poucos discos que tinha, com quartetos de Haydn e ele comprou um pick up caro, e depois não largava a música. Contava com dois grandes melómanos para o aconselhar, Manuel Dias da Fonseca e Óscar Lopes, antes de ficar quase surdo

Lembrei-me então da música e sabia que o Eugénio ouvia muito pouca música em casa. Não era por falta de referências musicais nos seus poemas, nem pelo convívio semanal com a tertúlia do Manuel Dias da Fonseca em Matosinhos, nem sequer quando Jorge Peixinho e Clotilde Rosa irromperam neste círculo de amizades. Mas o Eugénio era em grande parte um autodidacta, “feito” não só pelo seu génio poético, mas também pelo convívio que desde Coimbra, e ainda mais no Porto, tinha com muita gente da arte, da música, do teatro, da cultura em sentido lato. Era também um grande e selectivo leitor, cujos livros estavam cheios de sublinhados e pontuações, traduzindo o impacto que alguns textos tinham nele. E “feito” também pelas suas paixões, num tempo em que eram proibidas e perseguidas.

Eu tinha muito poucos discos, que eram caros, e ia muitas vezes ouvir música a pretexto de comprar discos numa loja na Rua de S. António. Tinha feito, no Liceu Alexandre Herculano e depois no Rainha S. Isabel, umas sessões de comentário a músicas e estudara piano e composição, embora mais tarde tivesse interrompido as aulas. Ofereci então ao Eugénio um dos poucos discos que tinha, com quartetos de Haydn, e ele comprou um pick up caro, e depois não largava a música. Contava com dois grandes melómanos para o aconselhar, Manuel Dias da Fonseca e Óscar Lopes, antes de ficar quase surdo. Comprava e ouvia essencialmente música de câmara, Haydn, Beethoven, Mozart, e os ciclos de canções de Schubert, Wagner, Strauss. Gostava de Mahler, mas passava pouco daí. Tinha um disco de música electrónica com um poema de Henri Michaux, que o Jorge Peixinho lhe tinha dado, e que ele me fez ouvir, mas era o poema que lhe interessava e não a música.

Mais tarde reconheceu que fora pela música que começara de novo a escrever, e é possível encontrar nalguns poemas posteriores referência muito mais precisas a peças musicais. A música vencera Salvatore Quasimodo. Nestes tempos de peste, leiam o Eugénio de Andrade e, melhor ainda, ouçam as suas músicas.

Como nesta página não entra a covid-19, para a semana há mais.



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