OPINIÃO
A música venceu Salvatore
Quasimodo
Nestes tempos de peste, leiam
o Eugénio de Andrade e, melhor ainda, ouçam as suas músicas.
18 de Abril de 2020, 6:15
Penso que já contei esta
história, mas em tempos de
peste ouve-se às vezes melhor lá fora do que cá dentro. Algum pássaro
a transportará passando por cima do cavaleiro do apocalipse que nos assalta
hoje.
Entre o Ostinato Rigore publicado
em 1964 e o Obscuro Domínio de 1971, Eugénio
de Andrade escreveu muito pouca poesia. Traduziu e editou poetas e
preparou várias antologias de prosa para a Inova, a sua editora nos últimos
anos de ditadura. Foram também os anos em que o nosso convívio foi mais
intenso, partilhado pela Rosa, o José Rodrigues, o Ângelo de Sousa, o Manuel
Dias da Fonseca, o Jorge Peixinho e, numa visita memorável e esporádica, pelo
Jorge de Sena. Essa visita merece ser contada, mas fica para depois.
O Eugénio estava com aquilo que
hoje se chama writer’s block, uma sinistra expressão para um poeta,
ou seja, estava com uma crise de escrita. Recordo-me de uma longa conversa com
o Eugénio sobre isso que começou na Rua de Palmela, 111, em que no andar de
baixo vivia a Rosa e no de cima o Eugénio. Era uma casa bastante modesta e
muito pequena, cozinha, sala partilhada entre uma mesa em que escrevia junto à
janela e também comia, e uma pequena sala de estar, uma dispensa cheia de
livros, e um longo corredor para o quarto de banho e o quarto do lado oposto da
casa, virado para as árvores da rua. Os passeios nocturnos começavam muitas
vezes aí e tinham uma paragem obrigatória no Café S. Lázaro, junto da
Biblioteca Municipal e de um dos mais belos jardins românticos do Porto.
Nesse dia, saímos do Café
bastante cedo e seguimos em direcção à Ribeira pela Rua de S. António (que a
ditadura impediu que se chamasse 31 de Janeiro), depois pela Rua Mouzinho da
Silveira, até ao rio e depois ao longo do rio. Era uma daquelas conversas que
incluem muitos silêncios que não incomodavam ninguém, pela sua naturalidade.
(Outro poeta que tinha também essa capacidade de silêncio como parte da
conversa era o Vasco Graça Moura.) Eugénio dizia que já não conseguia escrever
poesia, as suas palavras nos poemas tinham atingido um estado de depuração e
contenção, que não conseguia ultrapassar essa forma exígua e contida. Dava o
exemplo de Salvatore Quasimodo e dos seus poemas como também tendo chegado a
uma forma tão condensada de escrita, “como uma pedra”. Não se podia passar
dali. A conversa e o passeio terminou num pequeno estaleiro que havia à
beira-rio. Era uma noite escura e os barcos tinham uma sombra sinistra, embora
a noite fosse amena. Saídos da Ribeira havia muito pouca gente na rua, a não
ser alguns pescadores. Para quem conhece o Porto, sabe que o passeio foi muito
longo, e o regresso duplicou-o.
Ofereci então ao Eugénio um
dos poucos discos que tinha, com quartetos de Haydn e ele comprou um pick up
caro, e depois não largava a música. Contava com dois grandes melómanos para o
aconselhar, Manuel Dias da Fonseca e Óscar Lopes, antes de ficar quase surdo
Lembrei-me então da música e
sabia que o Eugénio ouvia muito pouca música em casa. Não era por falta de
referências musicais nos seus poemas, nem pelo convívio semanal com a tertúlia
do Manuel Dias da Fonseca em Matosinhos, nem sequer quando Jorge Peixinho e
Clotilde Rosa irromperam neste círculo de amizades. Mas o Eugénio era em grande
parte um autodidacta, “feito” não só pelo seu génio poético, mas também pelo
convívio que desde Coimbra, e ainda mais no Porto, tinha com muita gente da
arte, da música, do teatro, da cultura em sentido lato. Era também um grande e
selectivo leitor, cujos livros estavam cheios de sublinhados e pontuações,
traduzindo o impacto que alguns textos tinham nele. E “feito” também pelas suas
paixões, num tempo em que eram proibidas e perseguidas.
Eu tinha muito poucos discos, que
eram caros, e ia muitas vezes ouvir música a pretexto de comprar discos numa
loja na Rua de S. António. Tinha feito, no Liceu Alexandre Herculano e depois
no Rainha S. Isabel, umas sessões de comentário a músicas e estudara piano e
composição, embora mais tarde tivesse interrompido as aulas. Ofereci então ao
Eugénio um dos poucos discos que tinha, com quartetos de Haydn, e ele comprou
um pick up caro, e depois não largava a música. Contava com
dois grandes melómanos para o aconselhar, Manuel Dias da Fonseca e Óscar Lopes,
antes de ficar quase surdo. Comprava e ouvia essencialmente música de câmara,
Haydn, Beethoven, Mozart, e os ciclos de canções de Schubert, Wagner, Strauss.
Gostava de Mahler, mas passava pouco daí. Tinha um disco de música electrónica
com um poema de Henri Michaux, que o Jorge Peixinho lhe tinha dado, e que ele
me fez ouvir, mas era o poema que lhe interessava e não a música.
Mais tarde reconheceu que fora
pela música que começara de novo a escrever, e é possível encontrar nalguns
poemas posteriores referência muito mais precisas a peças musicais. A música
vencera Salvatore Quasimodo. Nestes tempos de peste, leiam o Eugénio de Andrade
e, melhor ainda, ouçam as suas músicas.
Como nesta página não entra a
covid-19, para a semana há mais.
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