OPINIÃO
Coisas para ler: quando Eça
parece Jorge Luís Borges ou vice-versa
É por coisas como estas que
vale a pena ler. Não se fica na mesma. Para a semana há mais.
4 de Abril de 2020, 5:50
Lá porque anda uma pandemia lá
fora, os que estão cá dentro e que são gente com sorte porque não têm que estar
de serviço, como médicos, enfermeiros, auxiliares, farmacêuticos, gente que
trabalha em mercearias e supermercados, carteiros, etc., etc., pode ler. Mais:
deve ler, que é a melhor forma de aproveitar o tempo. E para não sermos mais
monotemáticos, as páginas dos jornais e as televisões e as rádios com overdose de
covid-19, vamos falar de outra coisa. De leituras únicas, rápidas, breves, que
estão em linha, e que mostram o esplendor da língua e da literatura portuguesa.
Quando se pergunta a alguém da
gente pública, semi-pública, “famosos”, o que estão a ler – uma pergunta sempre
cruel e embaraçosa –, o número de respostas de que estão a “reler”
os Maias do Eça é sempre a forma que usam para não dizerem
nada, ou para evitar dizer que só lêem revistas “do coração”. (Pobre coração,
que é um órgão simpático sobre o qual, já de há alguns séculos, alguém resolveu
atirar para cima os sentimentos, ou melhor, a lamechice do sentimento.)
O Eça tem a vantagem de ser dado
no ensino secundário, embora eu tenha as minhas dúvidas quanto à capacidade de
gerações que escrevem e falam de forma gutural e com um vocabulário mínimo
entenderem metade das palavras, e que percebam todas as referências a
personagens históricas, da mitologia ou da Bíblia, incluindo alunos e
professores, pelo menos os da idade do Facebook e do telemóvel “inteligente”.
Mas façamos um esforço para voltar ao Eça
Gravura de um jornal da época DR
António Canovas del Castillo foi
um primeiro-ministro espanhol, que foi assassinado em 1897 numas termas,
corrijo, num spa, no País Basco, por um anarquista italiano. Eça
interessou-se pela história e, menos de um mês depois, publicou na Revista
Moderna um texto magnífico sobre o assassinato, depois coligido
nas Notas Contemporâneas. Eça explora ficcionalmente a
circunstância de Canovas e o seu assassino partilharem o mesmo local durante
cinco dias, repetindo os gestos triviais de um pequeno hotel de província, sem
luxo nem nada de especial. Mas Eça chama ao anarquista a Morte, e faz entrar a
Morte como personagem da coreografia desses dias banais. E aqui Eça e Borges
são muito idênticos, no modo como a narrativa se transforma ela própria numa
metáfora. Tchekov era também capaz de escrever algo semelhante.
Veja-se este excerto (serei
parcimonioso com as citações para as pessoas lerem tudo completo e, já que
estão nas Notas Contemporâneas, há muito mais a ler).
Ao hotel chega um novo hóspede com uma modesta “maleta de lona”:
“Ao passar este homem,
avistando o Presidente do Conselho, o senhor constitucional da Espanha,
poderoso e ilustre, ergue com reverência o seu chapéu mole. E Canovas, na sua
familiaridade fácil, tão grandemente espanhola, saúda logo, com um aceno de
mão, condescendente e afável. A quem acenou assim, risonhamente, D. Antonio
Canovas? À Morte – à sua Morte, que o vem buscar a Santa Agueda. Foi a Morte,
que chegou agora das profundidades do Destino, agasalhada num paletó alvadio,
com a sua foice dentro da maleta de lona. E Canovas, no banco do jardim, junto
de uma moita de flores frágeis que lhe hão-de sobreviver, continua gracejando –
enquanto a Morte, a sua Morte, paga ao cocheiro do ônibus e serenamente sem
pressa, transpõe a porta do hotel.”
Eça não está a fazer jornalismo,
ele não sabe se a maioria dos pormenores da história aconteceram, não sabe se o
anarquista cumprimentou Canovas, não sabe se foi dum banco de jardim, não sabe
os mil e um detalhes que em toda a história ele usa, não sabe o que a “Morte”
comeu, não sabe que quarto ele pediu e as razões porque o pediu, não sabe quase
tudo dos detalhes, embora tenha havido muitas reportagens e notícias sobre o
assassinato. Havia também gravuras, como a que usamos, para substituir as fotos
que não existiam. A forma do realismo fantástico, que é comum a Eça nesta
história e a Borges, dá-lhe uma grande modernidade e torna-a num grande texto
literário. E vê-se melhor o que aconteceu, com um texto que dá uma dimensão
mítica à Morte. Morte para os dois, porque o assassino de Canovas sabia que ia
morrer pelo seu acto, condenado ao garrote vil.
É por coisas como estas que vale
a pena ler. Não se fica na mesma.
Para a semana há mais.
Colunista
1 comentário:
Tendo em atenção o curriculo de Canovas del Castillo,também se poderia dizer que a anarquia,
com a sua maleta de lona, encontrou a morte num banco de jardim e ela lhe acenou afavelmente, na perspectiva de um reencontro auspicioso...
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