sábado, 4 de abril de 2020

José Pacheco Pereira - Coisas para ler: quando Eça parece Jorge Luís Borges ou vice-versa


OPINIÃO
Coisas para ler: quando Eça parece Jorge Luís Borges ou vice-versa
É por coisas como estas que vale a pena ler. Não se fica na mesma. Para a semana há mais.
4 de Abril de 2020, 5:50

Lá porque anda uma pandemia lá fora, os que estão cá dentro e que são gente com sorte porque não têm que estar de serviço, como médicos, enfermeiros, auxiliares, farmacêuticos, gente que trabalha em mercearias e supermercados, carteiros, etc., etc., pode ler. Mais: deve ler, que é a melhor forma de aproveitar o tempo. E para não sermos mais monotemáticos, as páginas dos jornais e as televisões e as rádios com overdose de covid-19, vamos falar de outra coisa. De leituras únicas, rápidas, breves, que estão em linha, e que mostram o esplendor da língua e da literatura portuguesa.

Quando se pergunta a alguém da gente pública, semi-pública, “famosos”, o que estão a ler – uma pergunta sempre cruel e embaraçosa –, o número de respostas de que estão a “reler” os Maias do Eça é sempre a forma que usam para não dizerem nada, ou para evitar dizer que só lêem revistas “do coração”. (Pobre coração, que é um órgão simpático sobre o qual, já de há alguns séculos, alguém resolveu atirar para cima os sentimentos, ou melhor, a lamechice do sentimento.)

O Eça tem a vantagem de ser dado no ensino secundário, embora eu tenha as minhas dúvidas quanto à capacidade de gerações que escrevem e falam de forma gutural e com um vocabulário mínimo entenderem metade das palavras, e que percebam todas as referências a personagens históricas, da mitologia ou da Bíblia, incluindo alunos e professores, pelo menos os da idade do Facebook e do telemóvel “inteligente”. Mas façamos um esforço para voltar ao Eça

Gravura de um jornal da época DR

António Canovas del Castillo foi um primeiro-ministro espanhol, que foi assassinado em 1897 numas termas, corrijo, num spa, no País Basco, por um anarquista italiano. Eça interessou-se pela história e, menos de um mês depois, publicou na Revista Moderna um texto magnífico sobre o assassinato, depois coligido nas Notas Contemporâneas. Eça explora ficcionalmente a circunstância de Canovas e o seu assassino partilharem o mesmo local durante cinco dias, repetindo os gestos triviais de um pequeno hotel de província, sem luxo nem nada de especial. Mas Eça chama ao anarquista a Morte, e faz entrar a Morte como personagem da coreografia desses dias banais. E aqui Eça e Borges são muito idênticos, no modo como a narrativa se transforma ela própria numa metáfora. Tchekov era também capaz de escrever algo semelhante.

Veja-se este excerto (serei parcimonioso com as citações para as pessoas lerem tudo completo e, já que estão nas Notas Contemporâneas, há muito mais a ler). Ao hotel chega um novo hóspede com uma modesta “maleta de lona”:

“Ao passar este homem, avistando o Presidente do Conselho, o senhor constitucional da Espanha, poderoso e ilustre, ergue com reverência o seu chapéu mole. E Canovas, na sua familiaridade fácil, tão grandemente espanhola, saúda logo, com um aceno de mão, condescendente e afável. A quem acenou assim, risonhamente, D. Antonio Canovas? À Morte – à sua Morte, que o vem buscar a Santa Agueda. Foi a Morte, que chegou agora das profundidades do Destino, agasalhada num paletó alvadio, com a sua foice dentro da maleta de lona. E Canovas, no banco do jardim, junto de uma moita de flores frágeis que lhe hão-de sobreviver, continua gracejando – enquanto a Morte, a sua Morte, paga ao cocheiro do ônibus e serenamente sem pressa, transpõe a porta do hotel.”

Eça não está a fazer jornalismo, ele não sabe se a maioria dos pormenores da história aconteceram, não sabe se o anarquista cumprimentou Canovas, não sabe se foi dum banco de jardim, não sabe os mil e um detalhes que em toda a história ele usa, não sabe o que a “Morte” comeu, não sabe que quarto ele pediu e as razões porque o pediu, não sabe quase tudo dos detalhes, embora tenha havido muitas reportagens e notícias sobre o assassinato. Havia também gravuras, como a que usamos, para substituir as fotos que não existiam. A forma do realismo fantástico, que é comum a Eça nesta história e a Borges, dá-lhe uma grande modernidade e torna-a num grande texto literário. E vê-se melhor o que aconteceu, com um texto que dá uma dimensão mítica à Morte. Morte para os dois, porque o assassino de Canovas sabia que ia morrer pelo seu acto, condenado ao garrote vil.
É por coisas como estas que vale a pena ler. Não se fica na mesma.

Para a semana há mais.

Colunista

1 comentário:

Unknown disse...

Tendo em atenção o curriculo de Canovas del Castillo,também se poderia dizer que a anarquia,
com a sua maleta de lona, encontrou a morte num banco de jardim e ela lhe acenou afavelmente, na perspectiva de um reencontro auspicioso...