SUNDAY, APRIL 19, 2020
Nessa noite sonhou com o mar. Quando acordou não se lembrava de como ali tinha chegado nem de por que razão estava sozinho, a nadar na imensidão nocturna de um oceano tranquilo, a milhas de qualquer rochedo ou batel. Só se lembrava de que nadou durante muito tempo, até perder as forças — e acordar.
Tacteou a mesinha de cabeceira sobrelotada: os medicamentos para a ciática, o copo de água que os acompanham, um livro — a foleiríssima edição Europa-América do Rei Édipo — e, finalmente, o fio do carregador cujo rasto o conduziu ao telemóvel. Ainda eram seis, não que isso importasse e, como o pequeno-almoço só chegava às sete, assim no silêncio se deixou ficar. As cumeeiras das rugas projectando sombras fundas na cara envelhecida, iluminada pelo clarão do ecrã sem mensagens, nem notificações, nem internet, nem rede, nem nada a não ser a data: 24/7. Fazia nesse dia três anos.
Como o borralho que ainda esconde a brasa rubra sob a cinza fria de manhã, invadiu-o a recordação de um ódio antigo. O Carlos, o da comunicação, só com 55 anos e aquele sorriso de atrasado mental, a distribuir abraços cínicos e filosofia dos pacotinhos de açúcar, «Aproveita a vida, Carla! Olha que há mais vida sem ser a vender pneus», como se não quisesse saber da penalização de 60%, 0,5 por cada mês antes da hora, «nem sei por onde começar, há tanta coisa que ainda quero fazer» e ele, a responder-lhe arqueando as sobrancelhas e contraindo os lábios mudos, numa reprovação que o Carlos não era assim tão estúpido que não pudesse entender mas a que retorquiu apenas com uma petulante gargalhada, como se se estivesse a rir dele, como se soubesse que aquela merda ia acontecer.
Sentia-se enganado. Qualquer penalização teria sido melhor do que aquela reforma completa «Aproveita a vida, Carla!». Na verdade, tudo teria sido melhor do que a terrível ironia de passar duas décadas a suspirar pela reforma redentora, a sonhar com a tal casinha na Beira onde ninguém lhe maçasse a aposentação dourada nos píncaros dos escalões «nem sei por onde começar, há tanta coisa que ainda quero fazer» para, na data na santa liberdade, ficar preso num quarto «Olha que há mais vida sem ser a vender pneus» de 12 por 10 metros quadrados.
Foi apagar o brasido do ódio no chuveiro. Durante esses três anos tinha aprendido muito. Foi na paixão pelos gregos antigos que descobriu o antídoto para o ódio e a vacina para a loucura. Os helenos pensavam no tempo de uma forma diferente: imaginavam-se a recuar para o futuro de costas em vez de avançar na sua direcção. A palavra opiso, por exemplo, que significa «atrás», era usada pelos gregos para designar não o passado, mas o futuro. Quando o rei Édipo arranca os cabelos por «não poder ver o que está aqui nem o que está para trás» lamenta-se de não conseguir ver nem o presente nem o futuro porque, convenhamos, o que está à nossa frente é visível. O problema é que nós vamos para o futuro a andar para trás. O truque, ensinavam os gregos, não consistia, portanto, em planear o Cronos, o tempo sequencial, mas em identificar o Kairós, a oportunidade irrepetível de cada momento presente.
Cronos devia encolher os ombros: já não era capaz de dizer de trás para a frente, ou da frente para trás, que medidas de isolamento social se sucederam a que renovações do Estados de Emergência e que novas ordens das autoridades de Saúde se traduziram em que remodelações do quarto de confinamento. Algures no primeiro ano, o filho disse-lhe pelo telecomunicador que o decreto da 15.º renovação do Estado de Emergência proibia permanentemente os idosos com mais de 65 anos de sair do quarto de confinamento e ele, que já não vivia à espera de Cronos mas de Kairós, não fez demasiadas perguntas. Até esse ponto, os quartos de confinamento de idosos haviam sido apenas uma recomendação, mas as famílias aparentemente não respeitavam as instruções das autoridades sanitárias e o número de mortos não parava de aumentar. Para travar a formidável mortandade que grassava na terceira idade, o novo decreto impunha penas de prisão para os familiares dos idosos infectados. Não se importou demasiado: dentro da nova normalidade até era um privilegiado: a requisição generalizada impedia incontáveis famílias de cuidar dos seus idosos confinados e o seu filho, ao menos, nunca falhara uma refeição. Quando, passado uns meses, colapsaram todas as telecomunicações à excepção da rádio, isso também não o perturbou, afinal, num mundo devastado pela pandemia, ele mantinha uma vida segura e confortável, preso num quartinho, é certo, mas nos 20% de idosos sobreviventes que, perdendo o libelo grisalho de peso para a segurança social e grande estorvo em geral, passaram a ser vistos como uma relíquia tão frágil e tão rara que se tornava necessário prendê-los a todos. Só se afligiu quando o filho testou positivo, embora assintomático. O coitado não tinha sintomas nem da vida: aos cinquenta anos nem mulher nem filhos nem carreira nem casa própria nem perspectivas de um dia se reformar, como ele. Já no segundo ano, o filho informou-o de que estavam infectados todos os adultos do país em idade activa. De resto, não guardava rancor à sua prisão, um sacrifício necessário para preservar a vida, e muito menos ao seu pobre carcereiro que, obrigado por requisição civil, continuaria a trabalhar infectado, das 8 às 20 horas de segunda a sexta e enquanto o Estado de Emergência durasse. A culpa de tudo aquilo era do vírus. E o vírus não sabia sequer o que era o rancor.
Saído do duche, prosseguiu a leitura. O rei de Tebas, Laio, e a sua mulher, Jocasta, ouvem do oráculo de Delfos a terrível profecia de que o seu bebé recém-nascido, a que dão o nome de Édipo, um dia matará o pai e casará com a própria mãe. Para evitar a desgraça, Laio e Jocasta abandonam o infante à morte na natureza. A criança, contudo, escapa nos braços de um Pastor ao destino que lhe fora traçado e cresce sem saber quem é. Já um jovem, Édipo cruzar-se-á por coincidência com o séquito de Laio, que viaja em anonimato. Por motivo fútil, literalmente uma cedência de passagem num cruzamento, dá-se um confronto em que Édipo rebenta toda comitiva real à porrada e mata Laio, executando parte da profecia vaticinada à sua nascença. Embora Édipo o ignorasse, o seu futuro recuava.
Fechou o livro e vestiu-se. Sentia-se incomodado com alguma coisa que não podia identificar.
— Estás aí? — gritou ao telecomunicador.
— Sim… — afirmou, soporosa, a voz do filho passados alguns segundos.
— Estás bem?
— Estou, estou — abreviou o filho.
— Acordei-te?
— Não, não… O que se passa? — insistiu o mais novo.
— Não sei, não é nada. Acordei estranho, hoje — começou o progenitor.
— Mas sentes-te bem?
— Sim, sim… Não é isso — continuou contra uma timidez espessa e opaca — Hoje é o aniversário da minha reforma. Três anos, porra. Se calhar foi isso, não sei. Está tudo bem.
O silêncio sepulcral que crescia no altifalante incomodou-o.
— E como estão as coisas lá fora? — perguntou só para que o filho tivesse de falar.
— Iguais. O governo ontem disse na rádio que estão à espera de pelo menos mais cinco vagas até haver imunização — retorquiu o filho.
— E a vacina?
Novamente, o silêncio preencheu-se de estática a ziziar no telecomunicador como as cigarras no Estio. Ainda não havia vacina. O confinamento era potencialmente perpétuo.
E foi então, nesse preciso momento, que aconteceu. O filho continuava a falar sobre uma manifestação ilegal contra a requisição civil para todos os trabalhadores em idade activa, mas ele tinha deixado de o ouvir: olhava fixamente para o ecrã do telemóvel que mostrava as horas como uma sentença: eram oito horas e dez minutos.
— …e eu até concordei com a requisição ao início: se ninguém fosse trabalhar, em vez de morrerem muitos com o vírus morríamos todos de fome, mas não acho bem que…
— Sabes que horas são? — perguntou subitamente. A sua voz soou clara e calma, cortava como um machado. O filho tardou a responder. As cigarras eléctricas reocuparam o imenso espaço entre os dois — Porque não estás a trabalhar?
— Houve um problema de abastecimento — titubeou o filho — Mandaram-nos ficar só hoje em lay-off. Amanhã já…
— Não. Tu disseste-me que já não havia lay-off. Não me disseste que quando uma empresa pára os trabalhadores são automaticamente requisitados para ocupar o lugar dos mortos?
— Eu sei… — a respiração do filho suava — Nós achamos que é por isso que isto vai dar barraca… O patrão não informou o governo que ia parar e agora…
— Ok.
Conhecia o filho há mais de cinquenta anos. Ao poisar o telecomunicador, sentiu uma espuma ácida a formar-se-lhe no estômago, o coração ardia-lhe e o cérebro latejava. Não sabia porquê, mas tinha a certeza de que o filho estava a mentir.
Cirandava pelo quarto como uma fera enjaulada. Se o filho ficava em casa, a requisição civil não existia e se a requisição civil não era real, que mais não conseguia ele ver nas suas costas? Para serenar a aflição, regressou ao livro: após matar todo um cortejo de desconhecidos na sequência de uma discussão no trânsito, Édipo ouve dizer que, infeliz coincidência, o rei de Tebas havia falecido, pelo que a coroa do reino, bem como a mão da viúva Jocasta, pertenceria a quem conseguisse derrotar a esfinge. A esfinge era um terrível monstro que impunha um embargo ao comércio tebano, impedindo de entrar ou sair da cidade-estado quem não soubesse responder a uma adivinha, provação que reiteradamente terminava no estômago da esfinge. Édipo, claro está, decidiu que seria de bom alvitre tentar também a sua sorte na estrada para Tebas. «Qual é coisa, qual é ela, que de manhã caminha em quatro patas, à tarde em duas e à noite em três?», perguntou o medonho monstro com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de águia. Édipo, que, ainda não o dissemos, era tão danado para a porrada como para as adivinhas, sem delongas respondeu: «é o homem! Na infância gatinha, quando é adulto caminha e na velhice apoia-se numa bengalinha». Derrotada por fim, a esfinge precipita-se no abismo, desimpedindo o caminho para Tebas, onde o infeliz leigarraz se casará com Jocasta e se sentará no maldito trono. Estava cumprida a profecia.
Não se conseguia concentrar. Do turbilhão de hipóteses que o zurziam como vespas uma picou-o em cheio no meio da testa: se o filho lhe mentira sobre ir trabalhar, talvez também lhe tivesse mentido sobre a pandemia. Uma e outra vez quis tergiversar o pensamento para diferentes azimutes, mas o veneno da vespa suspicácia já lhe espalhava o seu barrunto pela corrente sanguínea. Deu por si, preso naquele quarto minúsculo, a perguntar-se quanto ao certo seria verdade. Teriam as telecomunicações colapsado mesmo? Diriam os decretos do Estado de Emergência tudo o que o filho lhe relatava? O que sabia ele sobre vírus e pandemias? Quem era ele para disputar o que lhe dizia o filho, a quem dissera a rádio, a quem dissera o Presidente, a quem disseram os cientistas que era preciso fechar os velhos e trabalhar até exaustão? Poderia a pandemia durar para sempre? Ao fim de tanto tempo fechado, sem ouvir nem ver ninguém, a emergência torna-se em normalidade, a excepção converte-se em regra e o confinamento numa verdade tão desnecessária de provar ou discutir como o ar invisível que se respira.
Tinha de ouvi-lo pelos próprios ouvidos.
— Estás aí? — perguntou.— Sim — a voz seca do filho emergiu da estática.
— Quero ouvir a rádio.
A resposta do filho tardou, deixou o titanesco pedido de chumbo caído no chão, e subitamente caiu sobre ele, rápida, assertiva e com força de lei natural.
— Não pode ser, pai. Só temos uma e está comigo. Se ta desse, infectava-te.
— Não quero saber, desinfecta-a — recorreu desapegadadamente.
— O desinfectante está esgotado há dois anos, pai. Porque é que queres a rádio? Eu não te digo as notícias quando as há?
— Não interessa. Limpa-a como puderes. Usa sabonete, usa lixívia, mas traz-ma. Não oiço mais nenhuma voz há três anos. Quero ouvir a rádio. Até pode ficar desse lado da porta com o volume no máximo.
— Isto é por causa daquilo hoje de manhã? — Insurgiu-se o filho.
— Não. Só quero que me tragas a rádio durante uma hora. Estou a pedir-te.
— Não.
Um silêncio de fel borbulhava do telecomunicador, queimava-lhe os ouvidos e secava-lhe a boca.
— Se não me trouxeres imediatamente o rádio, eu vou-me embora.
De pouco serviram a súplicas enraivecidas do filho. Quando se tornou claro que o seu pedido seria indeferido, respirou fundo, colocou a máscara e agarrou na maçaneta da porta corta-fogo que, em três anos, nunca tentara rodar. A mão estremeceu-lhe quando rodou o puxador e um fio de gelo desceu-lhe pela espinha. Estava trancada. Estivera sempre trancada. E pela primeira vez, percebeu que era um prisioneiro. Por isso gritou, até a voz enrouquecer, esmurrou a porta até as mãos lhe sangrarem. Depois chamou pelo filho caído em lágrimas contra a porta como um trapo humano. Assim chorou baixinho durante muitas horas.
Costuma-se dizer que não é por falta de força que os elefantes não arrancam da terra as palancas a que os acorrentam, mas simplesmente porque assumem desde pequeninos que as estacas são impossíveis de arrancar e, quando crescem, nunca mais experimentam. Com ele fora ao contrário. Nunca tentara abrir a porta porque sempre assumira que estava aberta. Caindo por terra essa suposição, desmanchavam-se todas as outras certezas: haveria ainda confinamento obrigatório? Duraria ainda o Estado de Emergência? A requisição civil generalizada seria verdadeira? Existiria mesmo alguma pandemia?
Nessa noite, a primeira em que o filho não lhe trouxe o jantar, deitou-se na cama e retomou a leitura: volvidos muitos anos sobre a coroação de Édipo, uma misteriosa maldição abate-se sobre Tebas: toda a vida se torna estéril. A infecundidade afecta não somente os seres humanos como também as plantas e os animais por igual, matando lentamente a cidade à fome. O oráculo revela aos tebanos que a maldição só poderá ser quebrada descobrindo o assassino do rei Laio. Em busca de respostas, Édipo consulta Tirésias, o famoso profeta cego, que lhe revela ser ele o assassino de seu pai. Quando o anátema de Tirérias se confirma, o mundo de Édipo desmorona-se sob o peso da realidade. Jocasta, sua mãe e mulher, suicida-se e Édipo, incapaz de enfrentar a verdade, arranca os próprios olhos com um alfinete da mulher.
Não faria sentido esperar por Cronos, que devora tudo o que cria, era preciso agir. Édipo segredara-lhe uma ideia ao ouvido.
Na manhã seguinte, aliás como todos os dias, às 7 da manhã, o filho desceu as escadas com o pequeno almoço num tabuleiro: um copo de leite e um pão de leite com queijo e manteiga. Abriu o microondas que, através de duas portas, comunicava com o interior do quarto, permitindo desinfectar os alimentos através de uma fervura rápida, e poisou o pequeno-almoço no prato giratório. A outra porta também estava aberta, violação clara das regras de saúde, e, no chão do quarto, viu o pai, jacente de bruços numa enorme poça daquilo que tanto podia ser sangue como negra pez, não fosse só o sangue cheirar a sangue.
Destrancou a porta desesperado e ajoelhando-se junto ao pai entre soluços embargados e pedidos indecifráveis, agarrou-lhe entre as palmas a cara inerte. Procurava a ferida que tão copiosamente jorrava mas em nenhum lugar se via. Nem nos pulsos, nem no pescoço, nem nos lugares costumeiros dos suicidas convictos, nem sequer no coração, pelo menos a olho nu se visse, que ele há feridas no coração que profusamente sangram e nunca se vêem. Até que numa fracção de segundo, o pai levanta-se de um salto com um vigor juvenil guardado sabe-se lá onde, derruba no charco de sangue o filho meio atónito de cócoras e cruza como um felino o umbral. Antes que o filho pensasse sequer em se levantar, deu duas voltas à chave.
Enquanto estancava a hemorragia que provocara enterrando profundissimamente na coxa uma lâmina de barbear, ouvia os ecos abafados do filho a berrar impropérios e a projectar-se em peso contra a porta. Depois foi à janela. Forçou os olhos a habituarem-se à claridade do céu que não via há 3 anos. A rua imóvel e deserta de gente permanecia sob o mesmo feitiço soporífero. Só os gatos vadios e os estendais adejar os perfumes do detergentes da roupa na tarde de Primavera é que quebravam a ilusão de ter alguém carregado no botão da pausa. A casa também parecia congelada no tempo: o filho não mudara a posição de nada, nem sequer da televisão, que afinal continuava a funcionar normalmente. A pandemia afinal continuava, confirmou o noticiário, e a requisição civil era real, mas nem uma palavra sobre quaisquer medidas de confinamento forçado para os velhos. Algo não batia certo, como uma profecia que parece incompleta sem uma grande razão de existir.
Desceu as escadas, enfiou a cara no microondas e disse ao filho:
— Acho que me deves uma explicação.
— Vais prender-me aqui para sempre? — respondeu o filho sem o encarar. Estava sentado na cama, dobrado sobre si mesmo, com os cotovelos nos joelhos e a cabeça amparada entre as duas mãos. Dali, parecia estar a ver-se a si próprio na televisão: a barba menos branca, a cabeça menos calva, mas de resto tal pai, tal filho.
— Só se não me explicares porque é que me ias fazer isso a mim.
— Para não te infectar! Para te proteger!
— Não mintas, já estive a ver televisão.
Calmamente, o filho ergueu a cabeça e observou o quarto à sua volta como quem procura imaginar-se a viver numa casa nova. Naquele instante foi como se estivesse a olhar pela fechadura do tempo para o filho pequenino, assim sentadinho na cama do seu quarto, abstraído das profecias que lhe reservava o mundo. O que estava para fazer doeu-lhe tanto que sentiu as glândulas lacrimais em brasa e os ossos gelados e até Cronos, um tipo que devora os próprios filhos, se comoveu perante semelhante visão.
— A requisição geral — começou por fim — depois de meses em casa, fomos obrigados a ir trabalhar. Essa parte é verdade. Na fábrica todos os dias adoeciam trabalhadores. Eram substituídos automaticamente pelos funcionários das empresas que já não conseguiam laborar por problemas de logística, abastecimento ou falta de mão-de-obra. Os números de mortos também eram verdadeiros. Diziam que morrer a economia era pior do que morrermos alguns de nós. Só eles é que não morriam.
— Eles quem?
— O governo, o meu patrão… os ricos deste país. Esses aprenderam a proteger-se rapidamente. Sabes o que é que faziam? Nunca saíam de sítios como este. Maiores, é certo, mas não entendes que te estava a proteger? — perguntou o filho.
— E porque é que eu não podia saber? Porque tiveste de mentir este tempo todo? — devolveu o pai.
— A única escapatória à compulsão ao trabalho da requisição era a reforma antecipada, com um corte de 70 por cento… Só com isso eu não me safava, pai.
— Então prendeste o teu próprio pai para lhe roubares a reforma?!
O filho, como que sentindo os olhares reprovadores dos leitores, desviou os olhos envergonhados e levantou-se perturbado e sem saber que o maior opróbrio não é o seu mas o de um tempo em que os filhos dependem das reformas dos pais para se manterem vivos.
— Prendi-te aqui dentro para não morrer. Se fosse trabalhar ia trabalhar 11 horas por dia até morrer infectado.
— Porque não me pediste?
— Pedir-te uma mesada? Como um adolescente? Pedir-te que pusesses pão no prato de um velho de 58 anos? E tu, vais dizer que me dirias que sim?
Nessa noite sonhou com o mar. Quando acordou, preparou um pão com queijo e um copo de leite, tocou três vezes à porta, colocou o pequeno-almoço no prato giratório do microondas e foi ver televisão. O presidente anunciava a 50.ª renovação do Estado de Emergência, que expandia a iniciativa privada dentro das prisões e autorizava a polícia a fazer buscas sem mandato nas casas suspeitas de ocultaram trabalhadores em idade activa fugidos ao trabalho. Já não se lembrava de quase nada do sonho dessa noite, nem como ali tinha chegado nem por que razão estava sozinho, a nadar na imensidão nocturna de um oceano tranquilo, mas, de alguma forma, o sonho parecia-lhe fazer sentido.
17.4.20
Ilustração de Renata Candeias
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