Ler sobre a “santa
trincadeira”
Voltemos à terra. Deixem a
covid-19 à porta e leiam Aquilino e façam a festa da língua portuguesa em casa.
11 de Abril de 2020, 6:00
Uma pessoa às vezes tem sorte e
conhece na vida algumas personagens que pareciam apenas estar nos romances. Nos
tempos em que estive em Boticas a dar aulas, bendizendo estar tão baixo na
lista dos professores que fui parar àquele magnífico sítio, conheci algumas. A
escola era pequena, pelo que acabava por dar aulas a praticamente todos os
alunos e conhecer todos os professores e o pessoal administrativo da escola. A
maioria dos professores que lá estavam colocados maldiziam a sua sorte, porque
era o ultimo sítio onde queriam estar e à mais pequena oportunidade queriam era
vir-se embora. Não era fácil nem lá chegar, nem de lá sair, porque todas as
opções de estrada para o Porto demoravam pelo menos cinco horas de tormento,
quer se fosse pelo Barroso, quer por Vila Pouca de Aguiar, muitas vezes com
neve, e, no caso do trajecto que incluía o Marão, apanhar aquela sucessão de
curvas em que apetecia deitar o carro por uma ribanceira abaixo ou parar e não
sair mais dali. Não havia volta a dar.
Eu ficava muitas vezes no
fim-de-semana, porque gostava de lá estar numa casa de emigrante alugada junto
da aldeia de Pinho, na estrada entre Boticas e Vidago. A casa era nova, mas a construção
era má e incluía uma parede com “pedra rústica” e um andar térreo de terra
batida onde se colocava a lenha. Depois, por cada racha na parede entrava vento
e frio, e ali havia mesmo frio, mas as janelas – quando se conseguiam abrir –
mostravam uma paisagem de serras e vales, sem ventoinhas, e com muito poucas
construções modernas no meio do verde. Às vezes havia uma nuvem pousada mesmo
debaixo da janela. Descia-se e estava nevoeiro e subia-se e estava um sol
esplendoroso.
Um dos meus colegas era a tal
personagem da literatura, que muitos podem adivinhar como sendo tirada dos
livros de Aquilino. Já faleceu e deve estar no Céu a ser servido por um
anjo dispenseiro das cozinhas do paraíso. Sim, eu devo a Boticas ter conhecido
um genuíno abade, na verdade um padre que dava aulas na escola e exercia o seu
trabalho pastoral nas aldeias altas do Barroso, Alturas, Dornelas, até à
fronteira com o Larouco. Tinha uma “corpanzil”, uma palavra que me evita usar
eufemismos ou expressões pouco politicamente correctas, e uma enorme sotaina
para o tapar. Nos dias em que dava aulas íamos almoçar juntos a um restaurante
que também vinha na literatura, o Santa Cruz, neste caso referido por Ferreira
de Castro. O restaurante era de umas senhoras que cozinhavam praticamente ao
lado, traziam elas próprias a comida à mesa e das quais pouco sei a não ser que
tinham parentes no Canadá, porque me pediam para lhes traduzir uns formulários
em inglês que tinham que preencher.
Mais uma vez, o almoço podia vir
nos livros de Aquilino e eu, que já conhecia algumas descrições aquilinianas,
como o ataque a vários capões por um bando de abades ao pequeno-almoço, sabia
muito bem onde estava metido. Não havia muita variedade, mas também não era
preciso. O almoço tipo consistia em pedaços de bola de presunto, às vezes
acompanhados por fatias de presunto, de entrada, seguidos por uma sopa de
legumes, a que se acrescentavam de imediato umas trutas. E ainda estávamos só
nos preliminares, faltava o prato principal. Este era quase sempre vitela
assada com batatas e arroz, ou frango assado com batatas e arroz e salada. O
nosso bom padre comia tudo e, por isso, também a salada. Depois vinha a sobremesa,
a maioria das vezes um pudim e uns doces caseiros, melhor, um pudim mais uns
doces caseiros e café. Vinho, ele não ia no “vinho dos mortos” que dizia que
era para os turistas, antes preferia a variante de barril, servida em caneca,
ou melhor, canecas. Dar aulas a seguir era um tormento.
Já comi em muitos sítios, mas
presunto, trutas, batatas e carne são deste planeta e as de Boticas eram de
outro corpo celeste regido por Gargantua e seu filho Pantagruel
Não se lhe podia dizer que não a
coisa nenhuma, porque ele insistia já com o garfo ou a colher cheia junto ao
prato dizendo “ó senhor professor tire um pouco mais carne…”. E eu obedecia ao
eclesiástico, ungido por um sacramento especial, que eu não tinha nem queria
ter, mas à mesa impunha autoridade. Era o tempo da “santa trincadeira”;
Ocupemo-nos da santa
trincadeira, que o meu estômago está a gritar contra a cabeça que o governa! – proferiu
o abade, ajeitando o corpanzil à margem da mesa opípara.
O problema é que a descrição
parece demasiado trivial nestes tempos em que as sardinhas “repousam no seu
suco” e as coisas são “resumidas”. Só que o presunto era de Chaves, as trutas
do Beça, as batatas, que quem nunca as comeu não sabe o que são batatas, idem
para a carne do Barroso. Já comi em muitos sítios, mas presunto, trutas,
batatas e carne são deste planeta e as de Boticas eram de outro corpo celeste
regido por Gargantua e seu filho Pantagruel.
Voltemos à terra. Deixem a
covid-19 à porta e leiam Aquilino e façam a festa da língua portuguesa em casa.
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