sábado, 25 de abril de 2020

José Pacheco Pereira Um assassinato político ao modo da máfia


OPINIÃO
* José Pacheco Pereira

Resolvi agora visitar os magníficos textos de Oliveira Martins e da sua fonte Fernão Lopes, nenhum dos quais apanhou com a covid-19 e continuam, intactos, a ser do melhor da língua portuguesa e da história de Portugal. É pena que hoje se leiam pouco, mas isso é outra pandemia.
25 de Abril de 2020, 1:10

O segundo volume da biografia de Álvaro Cunhal termina com a sua prisão no Luso. Descrevendo o evento, disse que os pides que tinham participado na operação estavam “felizes”. O Manuel Villaverde Cabral disse-me, meio a brincar e meio a sério: “Como é que tu sabes que eles estavam felizes?” Não sabia, claro, mas sabia. Só que não havia fontes para a afirmação. Respondi ao Manuel: “Olha, fiz como o Oliveira Martins quando relata a morte do Andeiro e as reacções da rainha.”

Resolvi agora visitar os magníficos textos de Oliveira Martins e da sua fonte Fernão Lopes, nenhum dos quais apanhou com a covid-19 e continuam, intactos, a ser do melhor da língua portuguesa e da história de Portugal. É pena que hoje se leiam pouco, mas isso é outra pandemia.

A melhor propaganda para a leitura são mesmos os textos. Veja-se este excerto de Fernão Lopes:

“O Mestre, que mais vontade tinha de o matar que de estar com ele em razões, tirou logo um cutelo comprido e enviou-lhe um golpe à cabeça, porém não foi a ferida tamanha que dela morresse, se mais não houvera. Os outros que estavam derredor, quando viram isto, lançaram logo as espadas de fora para lhe dar, e movendo-se ele com aquela ferida para se acolher à câmara da Rainha, Rui Pereira, que era mais cerca, meteu por ele um estoque de armas de que logo caiu em terra morto.

Os outros quiseram-lhe dar mais feridas, mas o Mestre disse que estivessem quedos e nenhum foi ousado de lhe mais dar. (…) E era o Mestre, quando matou o Conde, em idade de vinte e cinco anos e andava nos vinte e seis. E foi morto aos seis dias de Dezembro, na era já escrita de quatrocentos e vinte e um.”


"Leonor Telles deante do cadaver do conde de Andeiro”, Roque Gameiro (1864–1935)

O que aqui se relata é um assassinato político. É precedido por uma discussão sobre comida. O Andeiro convidara o Mestre a comer com ele, e insistiu várias vezes. A resposta foi que já tinha “feito de comer”:

Ficando assim o Conde João Fernandes, gastava-se-lhe o coração, e tornou a dizer ao Mestre, Senhor, vós todavia comereis comigo.

Não comerei, disse o Mestre, que tenho feito de comer.

Sim, comereis, disse ele, e enquanto vós falais, irei eu mandar fazê-lo prestes.

Não vades, disse o Mestre, que vos hei de falar uma coisa antes que me vá, e logo me quero ir, que já é horas de comer.

A “coisa” era matá-lo, o que ele fez logo em seguida. Mas é a comida que marca o tempo dos acontecimentos, e a uma dada altura o Mestre quer apressar a “coisa” para poder ir almoçar.

O que estes textos permitem é “ver” o que se passou, como se fosse um filme, e quando os lemos é como se estivéssemos lá dentro, no Paço

Mas o texto tem muitos detalhes interessantes, a começar pelas idades. O Mestre tinha 25 anos, e a maioria dos que o acompanhavam rondavam por idades semelhantes. Eram homens habituados à guerra e à violência, não se comportavam de forma diferente de um grupo de mafiosos dos filmes, ou de um gang como os Peaky Blinders. Andavam todos armados. Numa resposta à rainha, que lhes disse que os ingleses não andavam armados a não ser em tempo de guerra – Os ingleses hão mui bom costume, que quando são no tempo da paz não trazem armas nem curam de andar armados, mas boas roupas e luvas nas mãos como donzelas –, o Mestre respondeu-lhe que não eram “donzelas”. E: “Se no tempo da paz não usarmos as armas, quando viesse a guerra não as poderíamos suportar.” E a guerra vinha mesmo a caminho.

Havia motivos que hoje consideramos nobres, mas havia também animosidades pessoais e conflitos de território, propriedade, poder e “respeito”. A máfia também se apresentava como protegendo a comunidade italiana dos abusos das autoridades. E havia também a punição ao Andeiro, porque dormia com a rainha, “com a mulher do seu Senhor”. O pormenor que conta Fernão Lopes dos que queriam continuar a espadeirar o morto também é dos filmes, quando a uma bala que mata se seguem várias de pura raiva. E, continuando na máfia, um dos companheiros preparava-se para roubar as pratas, a pretexto de cobrir as despesas – “Já vós aqui tendes para a despesa de hoje” –,​ mas o Mestre recusou. Havia também a comunicação social da época, o pajem “que fosse depressa pela vila, bradando que matavam o Mestre”, para mobilizar o povo ao lado dos conspiradores.

Depois, há o português antigo “gastava-se-lhe o coração”, os condes amigos do Andeiro quando souberam do sucedido, “cada um trabalhou de se pôr a salvo”, etc., etc. Ou seja, tudo bom. O que estes textos permitem é “ver” o que se passou, como se fosse um filme, e, quando os lemos, é como se estivéssemos lá dentro, no paço, presumo que do lado do Mestre com um espadalhão à cintura, mais nobre do que um insidioso punhal. E sangue, muito sangue, tão habitual que Fernão Lopes não fala nele.

Historiador


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