* Ana Pais
Há uma semana, o Presidente Marcelo anunciou um novo prolongamento do estado de emergência até 2 de Maio, apesar das pressões para se reabrir a economia. Assim, apresentou razões relativas à prevenção e estabilização da ameaça à saúde pública, elogiou e acalentou três grupos da população (“pessoas da minha idade”, jovens e autarcas) e destacou a confiança como “palavra-chave” no controlo da crise na saúde, mas já lembrando a sua relevância para a retoma económica. Terminou com uma referência à imprensa internacional que designou por “milagre português” a eficácia do país no controlo de mortalidade devido à COVID 19: a deixa perfeita para fazer reverberar no coração colectivo os ecos – longínquos, mas bem conservados – da excepcionalidade heróica de Portugal.
Durante aquela semana, vários artigos na imprensa internacional elogiaram a acção portuguesa no combate ao vírus. Um artigo em particular, no jornal alemão Der Spiegel, descreve a situação portuguesa como um milagre, comparativamente a outros países europeus, nomeadamente a vizinha Espanha. Claro que o termo é usado com alguma ironia (talvez até maior do que possamos imaginar, uma espécie de elogio disfarçado de sobranceria pragmática perante um país do sul que nem só no sol tem sorte), evidenciada quando o jornalista pergunta se uma das razões que explicam o milagre não será por nós termos Fátima e Espanha não. A não ser que este fosse um texto escrito por um crente assumido, obedecendo a um programa evangelizador, não é difícil reconhecer o tom irónico. No discurso de Marcelo, porém, a ironia é minimizada porque a oportunidade de beneficiar das ressonâncias que o mito do milagre poderia ter num contexto de pandemia é demasiado perfeita, à luz de uma retórica conservadora. Senão vejamos. Após aludir a estas vozes internacionais, Marcelo estabelece uma ponte entre as seguintes ideias: “eles dizem que fizemos um milagre” + “estamos a fazer o milagre”. E avança a explicação oportuna: estamos a fazer o milagre porque Portugal é um milagre há 900 anos! Com o cansaço derivado de quatro semanas de isolamento, quem então ouviu os telejornais deve-se ter rido dessa ideia um pouco disparatada, ou pode ter pensado que se tratava de um excesso de entusiasmo do Presidente. Mas, conscientes ou não do que estava a acontecer neste discurso, os portugueses foram atingidos por um torpedo silencioso, em directo do Palácio de Belém para suas casas. O milagre explodiu no DNA cultural dos portugueses.
Afonso Henriques aludindo ao 'Milagre de Ourique' mitificando-se a ideia de que derrotou os mouros na Batalha de 1139 com ajuda divina.
O milagre é um tema enraizado na cultura portuguesa desde que se começam a construir as narrativas simbólicas sobre a fundação de Portugal, primeiro difundidas pelas crónicas históricas. A partir do século XV até ao século XVII (da Crónica de 1419, às Profecias de Bandarra que desde logo projecta um V Império, da épica de Luís de Camões aos Sermões do Padre António Vieira), as narrativas culturais sobre a nação desenham o carácter heroico de um povo e a predestinação divina de um país que tem tudo para dar errado, mas Deus quer que dê certo. É justamente com o início da expansão portuguesa pelo mundo (começando pela tomada de Ceuta em 1415) que se torna imprescindível enaltecer a coragem de um povo e a origem providencial de uma nação, cujas fronteiras são, segundo a narrativa mítica da história, as mais antigas da Europa. Por um lado, se o país se abalançava num investimento de dimensão incomparável para o seu tempo, convinha cultivar os sentimentos de bravura, determinação e heroicidade e, por outro lado, ao mitificar a origem e o providencialismo de Portugal, legitimava-se esse investimento com um propósito mais elevado e, consequentemente, justificava-se a violência do império colonial.
Mas de que milagre estamos a falar? Do mesmo a que o Presidente da República fez referência no seu discurso da tomada de posse quando elencou os sentimentos que caracterizam os portugueses: “a crença em milagres de Ourique”. A fundação de Portugal em 1143 decorre de várias batalhas, mas aquela que simboliza a sua fundação mítica é a Batalha de Ourique. Conta a lenda que D. Afonso Henriques terá recebido, na véspera da batalha, o sinal divino da vitória dos portugueses. Nada mais nada menos do que o próprio Cristo terá aparecido ao soberano do Condado Portucalense garantindo-lhe a vitória nesta e nas próximas batalhas, vaticinando assim a independência de Portugal e a sua mítica e mística protecção. Esta é a grandiosidade do milagre que estamos a falar e que foi invocado neste terceiro discurso de Marcelo em tempos virulentos para nos afagar a auto-estima. Mais uma vez, invoca-se uma lógica simbólica de guerra e de inimigo que é preciso combater – e mais: de um inimigo que estamos predestinados a eliminar! – ao associar o milagre de uma batalha decisiva para a fundação de Portugal ao “milagre” actual da contenção da epidemia no país.
Por que importa falar disto, esmiuçar as sub-reptícias minudências de sentido na comunicação do Presidente da República ao país? Por que estamos em pleno século XXI e continuamos a invocar ficções de há cinco séculos para criar laços sociais e estimular um espírito colectivo? Posso compreender que as palavras foram bem-intencionadas, que Marcelo já percebeu a necessidade da performance dos afectos à distância e, claramente, já se sente mais confortável com o novo papel. Mas é ofensivo para um país que se diz moderno, modernizado, europeizado. É ofensivo para os cidadãos. Por que não procura o Presidente novas palavras, outras formulações para dizer o que realmente importa?
O que verdadeiramente importa? Que não há milagres, mas forças colectivas, circunstâncias e pessoas extraordinárias; que não há inimigos invisíveis, mas outras vidas, outros mundos biológicos que, também eles para sobreviverem e prosperarem fazem o seu caminho, como os humanos fazem à custa de vidas de outras espécies; que a solidariedade fundada na sobrevivência individual não é solidariedade; que precisamos uns dos outros para fundar um mundo melhor, mais justo e paritário; que repetir discursos estiolados e bafientos não nos levará a parte nenhuma. É essencial estar consciente das implicações simbólicas das palavras porque elas também produzem atmosferas afectivas que têm uma acção viral: infiltram-se nas nossas mentes e infectam o coração das gentes.
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