quinta-feira, 23 de abril de 2020

Anabela Fino - Aos que deram tudo


  • Anabela Fino


Aos que deram tudo
«Foi a descoberta mais importante de toda a sua vida. Sabia ler. Possuía o antídoto contra a venenosa peçonha da velhice». As palavras de Luis Sepúlveda, o escritor, jornalista e activista político chileno que há dias nos deixou, vítima de Covid-19, dão-nos um vislumbre do que significava escrever – a sua forma de contar o mundo – para quem cedo descobriu que a América Latina limita ao Norte com o ódio e não tem mais pontos cardeais.Membro activo da Unidade Popular chilena nos anos 70, Sepúlveda estava no Palácio de La Moneda a fazer guarda ao Presidente Allende aquando do golpe militar fascista liderado por Pinochet, com o apoio dos EUA, a 11 de Setembro de 1973. Como escreveria 30 anos depois, no seu Memorial dos anos felizes, «Cada uma e cada um tem na sua memória um álbum particular de recordações felizes daqueles dias em que demos tudo, e parecia-nos que dávamos muito pouco, porque tínhamos gravado na pele os versos do poeta cubano Fayad Jamis: “por esta revolução haverá que dar tudo, haverá que dar tudo, e nunca será o suficiente”».

Um entre tantos que lutaram para fazer do Chile um país justo, feliz e digno, o escritor para quem seria insuportável ser imortal orgulhava-se de fazer parte dos que «não renunciaram à sua dignidade, dos que resistiram nos interrogatórios, dos que morreram no exílio, dos que regressaram para lutar contra a ditadura, dos que ainda assim sonham e se organizam, dos que não participam na farsa pseudodemocrática dos administradores do legado da ditadura».

São homens como estes que guardamos na memória, gratos por nos lembrarem que só voa quem se atreve a fazê-lo. Com eles, na despedida, «bebamos com orgulho o vinho digno das mulheres e dos homens que deram tudo, que deram tudo pensando que não era o suficiente».

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