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quarta-feira, 15 de abril de 2020
Gonçalo M. Tavares - Diário da Peste. Alguns idosos saem para a rua de forma ostensiva
* Gonçalo M. Tavares
Diário da Peste,
14 Abril
15.04.2020 às 7h22
Alguns idosos saem para a rua de forma ostensiva.
Há quem fale numa espécie de coragem alucinada.
Um quase suicídio, um para-suicida.
Nos mais velhos na rua, uma lucidez - mas com os olhos maiores do que o corpo.
Uma gula insólita, perigosa. Os velhos querem viver.
“Reino Unido. Chamadas para agência de apoio à vítima de violência doméstica disparam em todo o território”.
Aumentam os crimes na casa, diminuem no exterior.
Uma necessidade de violência que se desloca do interior para o exterior, do exterior para o interior.
Índia prolonga o fechamento em casa por tempo indeterminado.
E Argentina prolonga quarentena até 27 de abril.
Fazer o cálculo: talvez a violência geral do mundo seja uma variável fixa.
Se somarmos os crimes, dentro e fora, obteremos sempre o mesmo resultado.
É uma hipótese. Investigar isso.
Especialista em Homeopatia garante que “estímulo vibracional melhora os sintomas do coronavírus”.
Em quarentena mantenha o número de refeições, mas reduza as porções.
Ou: mantenha as porções, mas reduza as refeições.
No Rio de Janeiro, um militar idoso, um general, andava pela ciclovia com uma pistola na mão.
Tinha interrompido o isolamento em casa. Talvez já não aguentasse.
Estava com um surto, diziam.
Gritava que queria falar com os filhos.
Chegou mais tarde um dos filhos que o acalmou.
Orwell: “O importante não é mantermo-nos vivos, é mantermo-nos humanos.”
Cary Grant e Ingmar Bergman no filme “Notorius” de Hitchcock.
Um beijo de dois minutos, perseguição e suspensão mútua.
Um dos beijos mais longos do cinema.
Alguém comenta essa cena: tens três opções: ou me beijas, ou te beijo, ou nos beijamos.
Uma amiga do México conta que os jovens de classe média e alta fazem corona parties.
18-20 anos.
Mas alguns estão a morrer porque são obesos.
Comemos de forma desequilibrada, diz.
Comemos mal há muitos anos, diz ainda.
Uma entrevista de 2017 ao Papa Francisco.
O mau humor não é exemplo de santidade, afirma o Papa.
E diz: “às vezes pedem-me um exemplo de beleza simples, que ajude as pessoas a serem mais felizes.”
E o Papa levanta dois dedos e murmura: o sorriso e o sentido de humor.
O sorriso, sobretudo quando é gratuito, acrescenta.
“Governador do Rio de Janeiro infetado.”
O número de mortes em Nova Iorque ultrapassa as 10 mil.
Economia mundial vive a pior crise desde a Grande Depressão, avisa o FMI.
A palavra problema vem do grego.
Em grego problema significa promontório.
Uma elevação que entra pelo mar dentro. E também obstáculo.
À volta do problema não há chão, não há sítio para pôr os pés.
Podes discursar ou gritar, mas não te deves mexer.
Mantém-te quieto até encontrares a solução.
A solução é ter terra por baixo dos pés.
Não se cair enquanto se anda.
Eu faço equilíbrio num muro de 15 cm de altura.
A Jeri concorda com a cabeça não sei com quê, e a ferida da Roma melhora.
Eu depois fico parado e espero.
Não cair já é bom, os dias não estão para acelerações.
“Quero fazer uma confissão pessoal”, disse o Papa em 2017. “Todos os dias depois de rezar as orações principais, rezo a oração do mártir Tomás Moro para pedir sentido de humor.
Oração que começa de uma maneira que faz rir, diz o Papa, sorrindo:
“Dá-me Senhor, uma boa digestão.
Mas também algo para digerir”.
“Roger Waters emociona-se a tocar versão de John Prine, músico que a covid-19 vitimou.”
"Tenho saudades tuas, meu irmão", diz Roger Waters.
Rezar para pedir sentido de humor a Deus.
O incêndio perto de Chernobyl está controlado.
China promete não discriminar africanos que vivem no país.
China inicia testes clínicos de duas vacinas em seres humanos.
“Porque é que os países liderados por mulheres parecem responder melhor à crise do coronavírus”, uma reportagem.
Alemanha, Taiwan, Nova Zelândia, etc., como exemplos.
A repetição do amo-te, amo-te, é absurda - diz Barthes.
Mas não é absurda, diz Barthes, porque a linguagem nos apaixonados não é linguagem, é um toque de pele.
Parece que estão a falar, mas estão a tocar.
Nestes dias, isso é evidente.
Sul de Itália. Nápoles: filas enormes de homens pobres.
Uma fila em frente a uma igreja, são recebidos por homens protegidos de alto a baixo e vestidos de branco.
Entregam um saco de comida a cada um.
A igreja nos momentos duros deixa de ser um edifício e sai para o exterior.
Aumenta de comprimento, largura e altura.
Gosto destes versos do Nicanor:
“17 elementos subversivos
foram surpreendidos ontem
nos arredores de La Moneda
transportando laranjas”.
Que o dia nos dê boa digestão, mas também algo para digerir.
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