quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Daniel Oliveira - A ordem moral das coisas e a identidade de género

* Daniel Oliveira 
 
O que os assusta não é que a menina chegue a casa e diga que quer ser rapaz. É que elas possam ser tão livres ou egoístas como eles. As identidades estão baralhadas porque foram construídas por quem tinha o poder. Sem isso, a genitália não chega para definir o lugar de cada um. Já não dá para pôr a mulher livre no hospício. Por isso, é fundamental que elas continuem a aprender qual é o seu lugar. Tivesse Adelaide nascido neste tempo...

Adelaide Coelho da Cunha teve a sorte ou o azar de ser a legítima herdeira e proprietária do “Diário de Notícias”. E, por despeito ou amor, cometeu o erro ou a audácia de se envolver com o seu motorista e abandonar “o leito conjugal” de um marido que lhe era infiel. O motorista era pobre e muito jovem. Pobre como a criada que o seu filho engravidou, jovem como a amante do seu marido. Mas Adelaide era mulher. E não é normal as mulheres fazerem o que os homens fazem. Porque, diz-se, as mulheres são diferentes dos homens.

Para além disso, o marido de Adelaide Coelho da Cunha queria vender o “Diário de Notícias” e ela não deixava. E não era normal uma mulher vetar a vontade do seu marido. Pelas duas razões, foi internada num hospício com a ajuda empenhada de homens ilustres, como Egas Moniz e Júlio de Matos. A história de Adelaide Coelho da Cunha é contada em “Ordem Moral”, de Mário Barroso.

Em cem anos mudou muita coisa. Mas há coisas que mudaram menos do que pensamos. Veja-se o caso da rapariga filmada a fazer sexo com dois rapazes, numa carruagem de comboio, que foi achincalhada no espaço público e mereceu uma patologização do seu comportamento que foi dispensada aos seus parceiros, como bem descreve este texto de Fernanda Câncio. A rapariga será maluca, eles serão uns "grandes malucos". Ou, na pior das hipóteses, um pouco indecentes. Porque os homens, já se sabe como são. Agora, uma rapariga?

Anda por aí, graças a uma moda importada, uma grande preocupação com a identidade de género. De tal forma que os ultraconservadores inventaram uma ideologia para os seus opositores: a ideologia de género. A expressão nasce nos estudos de género para caracterizar as crenças sociais vigentes sobre o lugar da mulher e do homem na sociedade e foi apropriada por Ratzinger, ainda antes de ser Papa, para definir os que contestam essas crenças. Hoje é usada por grupos de extrema-direita e de religiosos radicais. E vai fazendo o seu caminho.

Os ultraconservadores têm medo que esta ideologia de género, que supostamente tomou conta das escolas sem que os professores me consigam dizer em que canto das salas de aulas se escondem, confunda as crianças. Que os seus filhos cheguem a casa e, do nada, lhes digam: “pai, eu quero ser menina”, “mãe, eu quero ser menino”. Espanta-me a pouca confiança que demonstram ter na natureza. Se é tão esmagadoramente natural a diferença entre homens e mulheres não será uma palestra que afastará o rapaz do azul e a menina do cor-de-rosa. Não serão uns livros que retirarão à rapariga o instinto maternal e ao rapaz a testosterona de guerreiro. As coisas acontecerão porque têm de acontecer.

O que temem nada tem a ver com as rasteiras que a ideologia consiga dar à natureza. Temem o que temia a sociedade que meteu Adelaide Coelho da Cunha no hospício: que cada um deixe de saber o seu lugar. É de poder que falamos. O poder que afasta as mulheres do topo de todos os poderes. O que quer continuar a impor a vontade masculina ao aparelho reprodutivo das mulheres. O que lhes reserva o lugar de grandes mulheres atrás de grandes homens. É apenas isso: poder.

O que os assusta não é que, por descobrirem que a homossexualidade existe, os meninos comecem a gostar de meninos. Isso acontecerá se tiver de acontecer, nas suas barbas ou às escondidas. Com o seu apoio se quiserem que os seus filhos sejam felizes ou a sua oposição se preferirem torturá-los. É que isso baralha o papel que cada um dos géneros deve desempenhar na sociedade e na família. O que os assusta não é que a menina chegue a casa e diga que quer ser rapaz. É que a mulher descubra que, como o homem, pode ter amantes e eles podem ser mais novos e mais giros do que os seus maridos. É que elas possam ser tão livres ou egoístas como eles. Que deixem de ser “galdérias” (ou tantos outros insultos que não têm correspondente para os homens) e passem a ser apenas o feminino do “mulherengo” (também não foi inventado). É que elas possam ser chefes deles, ganhar mais do que eles. Aquilo de que têm medo é de perder parte do poder que herdaram e pelo qual nunca tiveram de lutar.

Já não é possível, como no início do século XX, pôr a mulher livre no hospício. Mas dá para lhes continuar a ensinar o seu lugar. Tentam travar o vento com as mãos. As identidades estão baralhadas porque foram sempre construídas por quem tinha o poder para as impor. Sem isso, a genitália não chega para definir o lugar de cada um. E não falta muito para que não chegue ser homem para ter o lugar da frente. Tivesse Adelaide nascido neste tempo...   

30.09.2020 às 8h15 - DANIEL OLIVEIRA


https://expresso.pt/opiniao/2020-09-30-A-ordem-moral-das-coisas-e-a-identidade-de-genero

terça-feira, 29 de setembro de 2020

29 de Setembro de 1964 – Nasce a Mafalda



Quando a primeira tira apareceu na revista «Primera Plana», há mais de meio século, ninguém esperava que as histórias da Mafalda irreverente e contestatária percorressem o mundo em 26 línguas e permanecessem vivas muito para além do seu desaparecimento. Fruto da imaginação e arte de Joaquín Lavado «Quino», um argentino pobre de Mendoza que aos 18 anos chegou a Buenos Aires com uma pasta de desenhos debaixo do braço, Mafalda despediu-se dos seus leitores em Junho de 1973, mas a universalidade das suas críticas sociais e políticas tornaram-na imortal. Forçado a exilar-se em 1976 na sequência do golpe de Estado de Rafael Videla que mergulhou a Argentina numa feroz ditadura militar, Quino, para quem o humor «é aquele pequeno grão de areia com o qual contribuímos para que as coisas mudem», não tenciona ressuscitar a Mafalda porque, afirma, «ressuscitá-la seria dizer que está morta, e ninguém duvida que ela esteja bem viva, por sorte». Ou seja, a mensagem permanece actual, como disse numa entrevista ao Página/12: «Se pensarmos que o cristianismo levou três séculos para se impor, por que não podemos pensar que o socialismo voltará e que finalmente poderemos viver em um sistema mais justo e mais humano para todos?»

http://www.avante.pt/pt/2235//142185/

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Mário Cláudio - A chávena de chá

* Mário Cláudio
28.09.2020 às 10h00


Columbano Bordalo Pinheiro – "A Chávena de Chá", 1898, Museu do Chiado


Lisboa tem dias assim, vizinhos do solstício de Inverno, em que as cores esmaecem até se apagarem, e o frio me empalidece as mãos. Só as camélias entendem essa quadra do ano, quando o esforço de as ver através da vidraça embaciada é um desafio que não apetece aceitar. São momentos em que me assalta uma ânsia de anulação, sentimento vulgar nas estéreis, vivendo no ocaso dos seus propósitos, e submetidas a uma ideia inatingível.

Passo entre veludos, norteada pela luz do samovar, e da chávena de chá. Restrinjo-me ao cenário que me consentem, alumiada na face mais perfeita do rosto. Alguém tosse lá dentro, confiando na minha longínqua vigilância, sereno por saber que lhe classifiquei a correspondência, lhe arrumei as pastas, e lhe lavei os pincéis e as broxas. Um fio de prata esgueira-se de uma gravura antiga, e vem debruar a chávena que levanto para acolher o chá.

Mantenho-me alerta, não se dê o caso de precisarem dos meus serviços, destruindo-me num sopro o silêncio, e o descanso que o acompanha, Nada ouço, a não ser as passadinhas do gato no corredor, o recrudescimento das bátegas de chuva, e um estalido da credência. Desando a torneirita do samovar, e fazendo tremer um pouco a chávena sobre o pires, permito que ela se encha até meio. Bebê-lo-ei sem açúcar, e a ínfimos goles, debicando a intervalos a torrada com um mínimo de manteiga, tirada do prato à minha esquerda.

O cenário aquece-me na tranquilidade da penumbra, e descaio na dormência como num nirvana intemporal. O aguaceiro suspendeu-se, cedendo lugar a uma poalha que enegrece à medida que se extingue a tarde. Há um hiato na permanência do jardim, favorável ao surto de certos organismos rastejantes e moles, as lesmas, os caracóis, mais raramente uma salamandra.

Rodo o pescoço, furtando-me à atenção de quem me observa, e que jamais identificarei. Mulher envergonhada da sua falta de brilho, aprendi a subtrair-me a confrontos, não por temor de outrem, mas por pânico do meu reflexo nas pupilas de um anónimo qualquer.

Regresso ao samovar, e deixo que escorra o bastante para segunda meia chávena de chá. A medo, não se prove que os fantasmas existem, estendo-a a quem, há infinito tempo, não repara em mim. Fico presa do longo silvo da máquina, e aguardo que o sono se apodere da minha desolação.

https://expresso.pt/opiniao/2020-09-28-A-chavena-de-cha

domingo, 27 de setembro de 2020

Rainer Maria Rilke - Tudo isto era missão

 * Rainer Maria Rilke

Sim, as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas
esperavam de ti que as sentisses. Levantava-se
uma onda no passado e aproximava-se, ou,
ao passares pela janela aberta,
um violino entregava-se. Tudo isto era missão.
Mas cumpriste-a tu?

sábado, 26 de setembro de 2020

José Luís Peixoto - eras tu a claridade

* José Luís Peixoto

o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.


sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Nuno Júdice - uma coisa simples

* Nuno Júdice

Quero dizer-te uma coisa simples:
a tua ausência dói-me.
Refiro-me a essa dor que não magoa, que se limita à alma;
mas que não deixa, por isso,
de deixar alguns sinais -
um peso nos olhos, no lugar da tua imagem, e um vazio nas mãos.
Como se as tuas mãos lhes tivessem roubado o tacto.

Porém, é o sonho que me traz a tua memória;
e a realidade aproxima-me de ti,
agora que os dias correm mais depressa,
e as palavras ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de mim -
e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.


quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Mário Cláudio -Aurélia de Sousa

 

Aurélia de Sousa – Auto-retrato, 1882, Museu Nacional de Soares dos Reis

* Mário Cláudio

Alfobres de tísicos e japoneiras, as quintas barrocas do estuário do Douro, quando não convertidas em hospícios e cooperativas, ou arrasadas para dar espaço a condomínios fechados, fariam de nós uma geração de nostálgicos. Não fugiria à regra a chamada “da China”, assombrada por uma pintora delgadinha, e mais bambu do que junco, cujos pulmões pagavam tributo às manhãs esponjosas em que a bruma ocultava uma margem da outra. Daí que a permanente fadiga que a afligia se somasse à dor de, sempre que revisitava alguma das suas telas antigas, se aperceber de que uma fosca velatura aderira entretanto aos pigmentos.

As tintas levavam longo tempo a secar, e enquanto ela as vigiava, desempenhando função paralela à da irmã que lhe tirava a temperatura, Aurélia recapitulava as viagens que empreendera na demanda de si mesma, e do seu ofício. Liquidados os anos de Paris, vagabundeara por Londres e Roma, por Veneza e Amsterdão, constantemente só, sujeitando-se a que a Cidade lhe inventasse infâmias, e estimulando as amigas a atribuir-lhe heroísmos. Levada pela urgência de se masculinizar, vira-se como um santo mendicante, e afivelara sucessivas máscaras, até se confundir com um cavaleiro geométrico, e porventura o seu tanto feminino, restrito ao casaco vermelho de excêntrico indiferente à vox populi.

Mas bastava uma tarde de chuviscos, demorando-se pela “Quinta da China”, para que a identidade se lhe esvaísse, dupla do revenant que aparecia no salão, manifestando-se pela mais luminosa das brancuras, e evaporando-se sem rasto, nem sequer o do aroma das violetas. Retornava à quietude, pairando entre um ele e uma ela, criatura que poderia revelar-se implacável como um guarda prisional, ou exacta como um ministro das finanças, de alfinete redondo que lembrava um pingo de lacre, a marcar-lhe a obsessão do asseio. Assim anularia os seus medos maiores, o de se extraviar num labirinto imaginário, o de se esgotar nos arranjos de costura, e o de se vulgarizar nas rosas a óleo que lhe encomendavam.

Quando o Douro crescia lá ao fundo, transbordando para os campos, e arrastando troncos de salgueiro, cabeceiras de cama, e vestidos de noiva em farrapos, o sono abatia-se sobre ela após um acesso de tosse. Vogava-lhe na memória o nevoeiro do Tamisa, o fauno de mármore da villa romana, o chape-chape da água do Gran Canale, ou a folhagem que cobria o pátio holandês.

Escondia o rosto entre os braços, adormecia no tampo da mesa, e o cromatismo de um remoto Verão recusava-se a fixar-se numa paisagem esquecida

https://expresso.pt/opiniao/2020-09-23-Aurelia-de-Sousa

andorinhas na poesia


foto victor nogueira - ninhos de andorinhas

Quem se lembra destes ninhos, construídos em muitos edifícios em Portugal de lés a lés, ninhos de andorinhas que com o seu chilreio anunciavam o regresso cíclico  da Primavera?  

Quem se lembra dos galos que cocoricavam de madrugada, ao despontar do sol, anunciando um novo alvorecer?

Quem se lembra dos burros, machos e mulas, que durante milénios foram as bestas de carga para transportarem mercadorias e pessoas, puxarem o arado ou a carroça ou fazerem girar as noras e outros aparelhos para extraírem água dos poços?

Poesia sobre as andorinhas

* Fernando Pessoa

Andorinha que vais alta,
Porque não me vens trazer
Qualquer coisa que me falta
E que te não sei dizer?

s.d.
Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa
~~~~~~~~

* Manuel Bandeira

Andorinha lá fora está dizendo:
— "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...
~~~~~~~

* Casssiano  Ribeiro   

As Andorinhas de António Nobre 

—Nos
—fios
—ten
sos

—da
—pauta
—de me-
tal

—as
— an/
do/
ri/
nhas
—gri-
tam

—por
—fal/
ta/
—de u-
ma
—cl’a-
ve
—de
—sol
~~~~~~~~

* Natália Correia  

O Espírito 

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

Natália Correia, in “Poesia Completa
~~~~~~~~

* Florbela Espanca 

Filtro

Meu Amor, nao é nada: - Sons marinhos
Numa concha vazia, choro errante...
Ah, olhos que nao choram! Pobrezinhos...
Nao há luz neste mundo que os levante!

Eu andarei por ti os maus caminhos
E as minhas maos, abertas a diamante,
Hao de crucificar-se nos espinhos
Quando o meu peito for o teu mirante!

Para que corpos vis te nao desejem,
Hei de dar-te o meu corpo, e a boca minha
Pra que bocas impuras te nao beijem!

Como quem roça um lago que sonhou,
Minhas cansadas asas de andorinha
Hao-de prender-te todo num só vóo...
~~~~~~~~

* Maria João Brito de Sousa

Acenar a Primavera nas asas duma andorinha

Aonde as andorinhas que as não vejo?
Atrasos? Nunca os houve neste céu!
Talvez seja, afinal, engano meu
Ou talvez seja céu quanto eu desejo...

Aonde os negros fatos que eu invejo?
Aonde os aventais que Deus teceu?
Aonde as asas negras como breu
Criando aéreas pontes sobre o Tejo?

Aonde as andorinhas que chegavam,
Em louca revoada, ao Portugal
Que havia nos meus tempos de menina?

Até onde os meus olhos alcançavam
As negras asas davam-me o sinal
Para acender, num sonho, a luz divina.

 
Maria João Brito de Sousa - 18.03.2008
~~~~~~~

(Popular)

Ó meu amor de tão longe,
Escreve-me uma cartinha;
Se não tiveres papel,
Nas asas duma andorinha

(Cancioneiro da Serra de Agra)

sábado, 19 de setembro de 2020

dois poemas de Gisela Casimiro


* Gisela Casimiro

Quando for grande

Quando for grande quero ser polícia
para bater nos pais de outros meninos
em frente aos outros meninos.

O meu pai sempre me disse:
cuidado a quem dás bastonadas.

Nunca dês bastonadas a um preto
senão vão achar que és racista.

Se deres bastonadas a um branco
estarás apenas a ser polícia.

Erosão
 

Escorre luz pela curva
forte do teu queixo:
o Outono tão preciso.

 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Mário Cláudio - Lázaro Leitão Aranha

* MÁRIO CLÁUDIO

OPINIÃO - 
18.09.2020 às 10h25

Vieira Lusitano – Lázaro Leitão Aranha, c. 1747, Museu da Segurança Social -  DR

Oartista que contratei para me pintar, e que anda em voga, compreenderia desde o início que o sedentarismo me governa como um tirano, e que sem ele jamais eu teria chegado aonde cheguei. Pedi ao mordomo que o guiasse na visita à minha casa da Junqueira, edifício de que muitos troçam por lhes parecer um pavilhão de férias fora do sítio, mas que outros admiram por se lhes afigurar precursor condigno da Real Barraca, mais tarde levantada para resistir à repetição do grande terramoto. O homem regressou na consciência do meu poderio, armou o cavalete, e lançou-se a produzir a obra que tenho agora diante dos olhos.

O artista que contratei para me pintar, e que anda em voga, compreenderia desde o início que o sedentarismo me governa como um tirano, e que sem ele jamais eu teria chegado aonde cheguei. Pedi ao mordomo que o guiasse na visita à minha casa da Junqueira, edifício de que muitos troçam por lhes parecer um pavilhão de férias fora do sítio, mas que outros admiram por se lhes afigurar precursor condigno da Real Barraca, mais tarde levantada para resistir à repetição do grande terramoto. O homem regressou na consciência do meu poderio, armou o cavalete, e lançou-se a produzir a obra que tenho agora diante dos olhos.

Nela compareço como soberbo dignitário, mas com a dose de naturalidade bastante a alimentar o diálogo com uma pessoa qualquer. É provável que quem aí me observar descubra sobre mim tanto quanto eu, e que o pintor maravilhosamente adivinharia. Cavalheiro atarracado, fui construindo a minha envergadura de lente de Cânones, amante da acumulação de objectos preciosos, ou simplesmente pitorescos, refastelado em almofadas por mor do hemorroidal que atenaza os bulímicos da minha espécie. Metido em sedas e damascos, apoio a mão esquerda no bastão áulico, e com a direita seguro o barrete clerical. Assim me comprazo com a imagem de mim, réplica lusíada, posto que com século e meio de atraso, do romano cardeal Barberini.

Fiquei muito bem, e ao abrigo da peruca sem pó, na qual uns quantos reconheceriam a minha aristocracia modesta, estrumada pelos campos do Marco de Canavezes que me viram nascer. Repoltreado hoje na bergère, e na atmosfera rosa-chá, delicio-me com o aroma da murta do jardinete, a penetrar pela porta entreaberta. Em tal estado poderei acolher as viúvas do Recolhimento de Nossa Senhora dos Anjos, fundado por mim, e em exclusivo destinado a damas de subida condição. Apaparicam-me com os coscorões da sua lavra, e há sempre uma mais jovem que, fitando-me com atenção por cima do sinal falso que lhe pica a face, me canta uma modinha em que se trata de violas, corações e praias ao luar.

O mestre ocultou-me as pernas onde reside o meu martírio maior, consequência da ureia que se encarniça contra mim, nas pesadas vestimentas que escolheu para me representar. Ninguém lhe recomendou que me beneficiasse, mas eis que, velho como eu, intuiria ele que nada deverá oferecer-se de premonitório a tutti quanti nos desejam a morte.

Destituído de amásias em odor de santidade, e à imagem e semelhança de El-Rei, deslocar-me-ei em breve para o leito que estremecerá sob o meu peso, e adormecerei de imediato, dispensando-me de prestar a Deus contas pelo dia que se extinguiu. Gracilmente colorido, permaneço entretanto no salão, tão imóvel, e tão silencioso, que até os ratos se atrevem a vir banquetear-se com as migalhas dos coscorões.

https://expresso.pt/opiniao/2020-09-18-Lazaro-Leitao-Aranha


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

David Mourão-Ferreira - Nocturno

* David Mourão-Ferreira

 
Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...

Era, no copo, além do gin, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.

Era no gira-discos, o Martírio
de São Sebastião, de Debussy....
Era, na jarra, de repente, um lírio!
Era a certeza de ficar sem ti.

Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...


Manuel António Pina - Café Orfeu

Café Orfeu
Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.
* Manuel António Pina

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.


quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Mário Cláudio - Dona Isabel de Moura

Mário Cláudio publica no Expresso uma série de crónicas inéditas dedicadas a portugueses marcantes, desde a Idade Média até à contemporaneidade. Começa com o retrato de Dona Joana de Eça, de autor desconhecido do século XVI, e terminará com Mário Soares, pintado por Júlio Pomar. Há uma subtil diferença nos textos. Nos autorretratos, a voz é a do narrador. Nos retratos, a voz é a do retratado. Mário Cláudio é o único autor português a receber por três vezes o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores

* Mário Cláudio

Dona Isabel de Moura  -  DR

Nunca me agradaram os dias de Verão, quando o calor me obriga a erguer a fímbria do vestido, a refrescar-me com um palmito, e a dessedentar-me com sucos de laranja. Desde sempre o frio habita em mim, e na harmonia com que nele moro, amiga do arrepio que me inteiriça o corpo, e me robustece o espírito. Na nossa Quinta da Boavista, tentando descortinar os peixes vermelhos do tanque, sobreviventes à película de gelo da superfície, habituei-me à solidão das raparigas desgraciosas, ignoradas pelas companheiras de suas manas.

Já por essa altura se me estreitava o rosto nas manhãs húmidas, não me inquietando o relance ocasional das minhas feições, reflectidas numa salva de prata, e muito menos a apurada estirpe a que pertencia, e que constitui o cuidado maior das que ficam solteiras. Criaturas como eu, ora se metem em casa, entregues ao seu mister, ora ingressam num mosteiro, a despedir-se de si mesmas na ausência de instrumentos que lhes gratifiquem a vaidade. Chegada a Espanha nos anos de irrisão da pátria portuguesa, nenhuma curiosidade despertavam em mim os teatros da política, dos quais ouvia falar com a indiferença que me inspirava a descrição dos lances de xadrez.

Agasalhada na eterna peliça, acabei por depositar nas filhas as prendas que me distinguiam, o bordado de canotilho, a geleia de medronho, ou as saquetas de alfazema. Mas insistia em que não se envergonhassem de ir avante, isto depois de saberem como se eliminam os piolhos com vinagre, se caça a rataria com trigo-roxo, e se enxugam com flanela as axilas para que não ganhem cieiro.

Só de longe a longe aparece alguém de fora, e que me proporciona, mas sem que eu o admita, um curto pretexto de respiração. Aceitámos o pintor para me tirar o retrato, e que se chamava Domingos Vieira, alcunhado de “o Escuro”. Era um homem pequeno e vagaroso, parecendo pedir licença a cada pincelada para passar à seguinte, e nele supus ter descoberto uma alma gémea. Nas longas tardes de pose, não trocando entre nós meia dúzia de palavras, tornámo-nos confidentes um do outro. No seu silêncio queixava-se da mulher que o aguardava, uma marafona de mãos cruzadas sobre o avental, a confrontá-lo assim, “O meirinho já te pagou?, lembra-te de que não me resta o que pôr na mesa.” Ele comia a sopa com sofreguidão, arrependia-se de um cinzento que bem poderia ter sido mais sombrio, e esquecia-se da fidalga da Quinta da Boavista.

Afago sem que ninguém se aperceba a cabeça de Valério, o galgo que mais prezo, e concluo que nada de momento me compete fazer. Desço ao jardim de buxo, retiro as folhas molhadas que tapam o mostrador do relógio-de-sol, mas não entendo o que me desespera, ao dar conta das horas. Muito juntos, os meus olhos secam de algumas lágrimas, e na minha lembrança é sempre noite cerrada.

https://expresso.pt/opiniao/2020-09-16-Dona-Isabel-de-Moura

terça-feira, 15 de setembro de 2020

David Mourão-Ferreira - Equinócio

* David Mourão-Ferreira

 
Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato

Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena

Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo

Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe


segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Shakespeare - Monólogo de António no funeral de Julio César

* William Shakespeare

Antonio: Amigos, romanos, compatriotas, escuchadme: he venido a enterrar a César, no a ensalzarlo. El mal que hacen los hombres les sobrevive; el bien suele quedar sepultado con sus huesos. Que así ocurra con César.
Bruto os ha dicho que César era ambicioso: si lo fue, era la suya una falta grave, y gravemente la ha pagado.
Por la benevolencia de Bruto y de los demás, pues Bruto es un hombre de honor, como lo son todos, he venido a hablar en el funeral de César. Fue mi amigo, fiel y justo conmigo; pero Bruto dice que era ambicioso. Bruto es un hombre honorable. Trajo a Roma muchos prisioneros de guerra, cuyos rescates llenaron el tesoro público. ¿Puede verse en esto la ambición de César? Cuando el pobre lloró, César lo consoló. La ambición suele estar hecha de una aleación más dura. Pero Bruto dice que era ambicioso y Bruto es un hombre de honor.
Todos visteis que, en las Lupercales, le ofrecí tres veces una corona real, y tres veces la rechazó. ¿Eso era ambición? Pero Bruto dice que era ambicioso y es indudable que Bruto es un hombre de honor.
No hablo para desmentir lo que Bruto dijo, sino que estoy aquí para decir lo que sé. Todos le amasteis alguna vez, y no sin razón. ¿Que razón, entonces, os impide ahora hacerle el duelo? ¡Ay, raciocinio te has refugiado entre las bestias, y los hombres han perdido la razón!... Perdonadme. Mi corazón está ahí, en esos despojos fúnebres, con César, y he de detenerme hasta que vuelva en mí...
Primer ciudadano: Creo que hay mucha sabiduría en lo que dice
Segundo ciudadano: Si te paras a pensarlo, César cometió un gran error
Tercer ciudadano: ¿Ah, si? Me temo que alguien peor ocupará su lugar.
Cuarto ciudadano: ¿Le has prestado atención? No creo que él quisiera tomar la corona. Y por lo tanto, no era un ambicioso.
Primer ciudadano: Y si se descubriera que lo fue… algunos lo soportaríamos.
Segundo ciudadano: Pobrecillo, sus ojos están rojos como el fuego de llorar…
Tercer ciudadano: No hay nadie más noble en Roma que Antonio.
Cuarto ciudadano: Préstale atención, que empieza a hablar otra vez.
Antonio: Ayer la palabra de César hubiera prevalecido contra el mundo. Ahora yace ahí y nadie hay lo suficientemente humilde como para reverenciarlo. ¡Oh, señores! Si tuviera el propósito de excitar a vuestras mentes y vuestros corazones al motín y a la cólera, sería injusto con Bruto y con Casio, quienes, como todos sabéis, son hombres de honor. No quiero ser injusto con ellos. Prefiero serlo con el muerto, conmigo y con vosotros, antes que con esos hombres tan honorables! Pero aquí hay un pergamino con el sello de César. Lo encontré en su gabinete. Es su testamento. Si se hiciera público este testamento que, perdonadme, no tengo intención de leer, irían a besar las heridas de César muerto y a empapar sus pañuelos en su sagrada sangre. Sí. Suplicarían un cabello suyo como reliquia, y al morir lo mencionaría en su testamento, como un rico legado a su posteridad!
Cuarto ciudadano: Queremos escuchar el testamento. Léelo, Marco Antonio
Todos los ciudadanos: ¡El testamento!. ¡El testamento! Queremos escuchar el testamento del César.
Antonio: Tened paciencia, amigos. No debo leerlo. No es conveniente que sepáis hasta que extremo os amó César. No estáis hechos de madera, no estáis hechos de piedra, sois hombres, y, como hombres, si oís el testamento de César os vais a enfurecer, os vais a volver locos. No es bueno que sepáis que sois sus herederos, pues si lo supierais, podría ocurrir cualquier cosa.
Cuarto ciudadano: Lee el testamento. Queremos escucharlo, Antonio: debes leernos el testamento, el testamento de Cesar.
Antonio: ¿Queréis tener paciencia? ¿Queréis esperar un momento? He ido demasiado lejos en deciros esto. Temo agraviar a los honorables hombres cuyos puñales traspasaron a César. ¡Lo temo!
Cuarto ciudadano: ¡Esos hombres honorables son unos traidores!
Todos los ciudadanos:¡El testamento! ¡El testamento!
Segundo ciudadano: ¡Son unos miserables asesinos! ¡El testamento! ¡Lee el testamento!
Antonio: ¿Me obligáis a que lea el testamento? En ese caso, formad círculo en torno al cadáver de César, y dejadme mostraros al que hizo el testamento. ¿Bajo? ¿Me dais vuestro permiso?
Todos los ciudadanos: ¡Baja! Segundo ciudadano: ¡Baja!
Tercer ciudadano: ¡Tienes permiso!
Cuarto ciudadano: Acercaos, haced un círculo.
Primer ciudadano: Haced sitio al cadáver.
Segundo ciudadano: Haced sitio al noble Antonio.
Antonio: ¡No me empujéis! ¡Alejaos!
Todos: ¡Atrás, atrás!
Antonio: Si tenéis lágrimas, preparaos a derramarlas. Todos conocéis este manto. Recuerdo la primera vez que César se lo puso. Era una tarde de verano, en su tienda, el día que venció a los nervios. ¡Mirad: por aquí penetró el puñal de Casio! ¡Ved que brecha abrió el envidioso Casca! ¡Por esta otra le apuñaló su muy amado Bruto! Y al retirar su maldito acero, observad como la sangre de César lo siguió, como si abriera de par en par para cerciorarse si Bruto, malignamente, la hubiera llamado. Porque Bruto, como sabéis, era el ángel de César. ¡Juzgad, oh dioses, con que ternura le amaba César! ¡Ese fue el golpe más cruel de todos, porque cuando el noble César vio que él lo apuñalaba, la ingratitud, más fuerte que las armas de los traidores, lo aniquiló completamente. Entonces estalló su poderoso corazón, y, cubriéndose el rostro con el manto, el gran César cayó a los pies de la estatua de Pompeyo, al pie de la cual se desangró... ¡Oh qué funesta caída, conciudadanos! En aquel momento, yo, y vosotros, y todos, caímos, mientras la sangrienta traición nos sumergía. Ahora lloráis, y me doy cuenta que empezáis a sentir piedad. Esas lágrimas son generosas. Almas compasivas: ¿por qué lloráis, si sólo habéis visto la desgarrada túnica de César?
Mirad aquí. Aquí está, desfigurado, como veis, por los traidores.
Primer ciudadano: ¡Penoso espectáculo!
Segundo ciudadano: ¡Ay, noble César!
Tercer ciudadano: ¡Funesto día!
Cuarto ciudadano: ¡Traidores! ¡Miserables!
Primer ciudadano: ¡Sangrienta visión!
Segundo ciudadano: ¡Queremos venganza!
Todos: ¡Venganza! ¡Juntos! Perseguidlos, quemadlos, matadlos, degolladlos, no dejar un traidor vivo!
Antonio: ¡Conteneos, ciudadanos!
Primer ciudadano: ¡Calma! ¡Escuchemos al noble Antonio!
Segundo ciudadano: Lo escucharemos, lo seguiremos y moriremos por él
 Antonio: Amigos, queridos amigos: que no sea yo quien os empuje al motín. Los que han consumado esta acción son hombres dignos. Desconozco qué secretos agravios tenían para hacer lo que hicieron. Ellos son sabios y honorables, y no dudo que os darán razones. No he venido, amigos, a excitar vuestras pasiones. Yo no soy orador como Bruto, sino, como todos sabéis, un hombre franco y sencillo, que quería a mi amigo, y eso lo saben muy bien los que me permitieron hablar de él en público. Porque no tengo ni talento, ni elocuencia, ni mérito, ni estilo, ni ademanes, ni el poder de la oratoria para enardecer la sangre de los hombres. Hablo llanamente y sólo digo lo que vosotros mismos sabéis. Os muestro las heridas del amado César, pobres, pobres bocas mudas, y les pido que ellas hablen por mí. Pues si yo fuera Bruto, y Bruto Antonio, ese Antonio exasperaría vuestras almas y pondría una lengua en cada herida de César capaz de conmover y amotinar los cimientos de Roma.
Todos: Nos amotinaremos.
Primer ciudadano: ¡Quemaremos la casa de Bruto!
Tercer ciudadano: ¡Vamos, pues, persigamos a los conspiradores!
Antonio: Escuchadme, ciudadanos. Escuchadme lo que tengo que decir.
Todos: ¡Alto! Escuchemos al noble Antonio.
Antonio: ¡Pero, amigos, no sabéis lo que vais a hacer! ¿Qué ha hecho César para merecer vuestro afecto? No lo sabéis. Yo os lo diré. Habéis olvidado el testamento de que os hablé. Todos: ¡Es verdad, el testamento! Esperemos a oír el testamento.
Antonio: Aquí está, con el sello de César. A todos y cada uno de los ciudadanos de Roma, lega setenta y cinco dracmas.
Ciudadano segundo: ¡Noble César! ¡Vengaremos su muerte!
Tercer ciudadano: ¡Oh, magnánimo César!
Antonio: Tened paciencia y escuchadme:
Todos: ¡Alto!
Antonio: Lega, además, todos sus paseos, sus quintas particulares y sus jardines, recién plantados a este lado del Tíber. Los deja a perpetuidad a vosotros y a vuestros herederos, como parques públicos, para que os paseéis y recreéis. ¡Éste sí que era un César! ¿Cuando tendréis otro como él?

http://dramadromo.blogspot.com/2008/09/deberes.html

Mário Cláudio - Dona Joana de Eça

* Mário Cláudio

“Tecida de minudências, a raça perde-se, mas recupera-se, a cada volta do caminho.” Digo-lhes isto, ou algo assim, quer por carta, quer por voz, e respeitam-me a opinião. Há muitos anos, ainda ontem, pouco eu curava de matérias domésticas. Elevada ao meu estatuto, porfio em proclamar sabenças superiores ao usual, mas não incompatíveis com ele. Acalentei o crescimento da fama de doceira do bolo podre que nunca provo, nem consinto em que o façam diante de mim. No meu asseio, teimo em que se divulgue, não entram perfumes, nem sequer água-de-cheiro, e as mãos definham-se-me a olhos vistos, mercê do sumo de limão, única substância com que as lavo.

Filha dos mais altos, ensino às monjas, e à parentela que as visita, que uma senhora se reconhece por quanto lhe cobre a cabeça, e por aquilo em que enfia os pés. Nada sobre isto determina a Regra da Nossa Mãe Santa Clara, e julgo não haver incorrido em soberba, ao avançar com semelhantes prescrições. Insisto em tratar pessoalmente da mantilha de cambraia, e dispenso a goma no escapulário, costume ofensivo da pobreza que abracei. Do meu tempo de camareira da Rainha, e de preceptora do Rei pequenino, seu neto, criança caprichosa e encantadora, guardei o poder de influenciar pelo exemplo, movimentando para a Coroa quem a sirva melhor. Nenhum luxo reivindico, excepto o de que me peçam conselho, e de que me atribuam o engenho de o prestar.

Substituí o abanico pelo rosário que nunca mais deixei de desfiar, menos concentrada hoje em dia, e ora esquecendo-me de uma camândula para passar à seguinte, ora repetindo a reza sem avançar no mistério. Vêm os pescadores da Madragoa e de Santos, a cumprir as promessas a Nossa Senhora da Piedade e da Esperança, estendem-me diante da cátedra seiras de robalos e safios, e levantam para mim uma vozearia de louvores e reclamações. Atendo-os com paciência, e ofereço-lhes o sorriso da compaixão, mantendo-me atrás da banqueta com a almofada de damasco em cima. Eis o maior esplendor que me concedo, a fim de que não me confundam a austeridade dos votos com a limpeza do sangue.

Espero que saiam aos poucos, e ouço-os à distância com suas juras e seus protestos. Cuidando de não turbar as irmãs, vou devagarinho cortar a talisca de marmelada que meto rapidamente à boca, e outra ruga se cava na minha face direita.


Gravura- Autor Desconhecido – "Dona Joana de Eça" (?), c. 1550-1560, Museu Nacional de Arte Antiga

https://expresso.pt/opiniao/2020-09-14-Dona-Joana-de-Eca

domingo, 13 de setembro de 2020

Alexandre O'Neill - Os Convencidos da Vida

 * Alexandre O'Neill

«Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.

Mas também os aturo por escrito. No livro, no jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema!). Será que voltaram os polígrafos? Voltaram, pois, e em força.

Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista.

Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se? (...)

No corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil.

Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajectória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro.

Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi.»

Alexandre O'Neil, Uma Coisa em Forma de Assim

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Salvador Allende - último discurso


* Salvador Allende



Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei dirigir-me a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um castigo moral para quem traiu seu juramento: soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Armada, e o senhor Mendoza, general rastejante que ainda ontem manifestara sua fidelidade e lealdade ao Governo, e que também se autodenominou diretor geral dos carabineros.

Diante destes fatos só me cabe dizer aos trabalhadores: Não vou renunciar! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos, não poderá ser ceifada definitivamente. [Eles] têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos.

Trabalhadores de minha Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que foi apenas intérprete de grandes anseios de justiça, que empenhou sua palavra em que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez.

Neste momento definitivo, o último em que eu poderei dirigir-me a vocês, quero que aproveitem a lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos à reação criaram o clima para que as Forças Armadas rompessem sua tradição, que lhes ensinara o general Schneider e reafirmara o comandante Araya, vítimas do mesmo setor social que hoje estará esperando com as mãos livres, reconquistar o poder para seguir defendendo seus lucros e seus privilégios.

Dirijo-me a vocês, sobretudo à mulher simples de nossa terra, à camponesa que nos acreditou, à mãe que soube de nossa preocupação com as crianças. Dirijo-me aos profissionais da Pátria, aos profissionais patriotas que continuaram trabalhando contra a sedição auspiciada pelas associações profissionais, associações classistas que também defenderam os lucros de uma sociedade capitalista. Dirijo-me à juventude, àqueles que cantaram e deram sua alegria e seu espírito de luta. Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos, porque em nosso país o fascismo está há tempos presente; nos atentados terroristas, explodindo as pontes, cortando as vias férreas, destruindo os oleodutos e os gasodutos, frente ao silêncio daqueles que tinham a obrigação de agir. Estavam comprometidos.

A historia os julgará.



https://vermelho.org.br/2020/09/11/relembre-como-foi-o-ultimo-discurso-de-salvador-allende/

Carla Romualdo - Dignidade

* Carla Romualdo 

As filhas da Dona Graça estavam certas de que a mãe já não tinha idade para dormir com o namorado. “Namorado”. Só o nome que ela lhe dava já lhes parecia ridículo. Uma mulher de 77 anos não tinha namorados. Vê-la de mão dada com ele pela rua era embaraçoso. Parecia-lhes uma manifestação de senilidade, sem dúvida, mas também de bizarria, porque havia algo de animalesco nesses apetites da mãe, e essa animalidade era um vexame para as filhas, ainda que ela parecesse incapaz de entendê-lo. A Mafalda até confessou que sentia a mesma vergonha que a fazia virar a cara quando, em criança, os cães copulavam à porta de casa e era preciso separá-los com um balde de água, mas a Joana achou a comparação excessiva. 

Em qualquer caso, quando a mãe metia o namorado dentro de casa, sem se esconder dos vizinhos, expunha-se a ela, mas também às filhas. Não se daria conta disso, do embaraço que era para elas? Com aquela idade, ainda precisava daquilo? Não tivera tempo suficiente para serenar? Se o pai levava dez anos morto, não fora suficiente para ela se esquecer dessas coisas? E esse homem, também próximo dos 80 anos, só podia ser um depravado que se aproveitava da solidão dela. Era uma situação intolerável, havia que pôr-lhe fim.

Estava já decidido que a Dona Graça seria inscrita num lar de idosos quando a senhora sofreu um AVC que lhe deixou uma incapacidade de 85%. Foi um alívio para as filhas. Agora a mãe já poderia ter um fim de vida digno. 


https://aventar.eu/2020/09/11/dignidade-3/

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Adriano Miranda - A roda gigante do Avante!

* Adriano Miranda -

OPINIÃO - 3 de Setembro de 2020, 10:49

Muitas vezes a roda da vida leva-nos para encontros e desencontros. A Festa que eu sempre frequentei e onde sempre me senti bem. A Festa que não devia acontecer este ano. Estamos desencontrados.

As laranjeiras estão altas. Há também pereiras e uma camélia enorme. Uma carroça de bois, uma adega e uma casa térrea. Ao fundo, a terra sempre cultivada, uma eira e uma casa pequena. José e outros, levantam-se cedo. Deitam a semente à terra. Depois desaparecem. Encerram a porta da casa pequena. Os pássaros pintam o céu. Não há que ter medo. Nunca se ouviu falar que um pássaro fosse bufo. José e os outros, constroem textos com letras de chumbo. Dobram papel fino. Rolam rolos vestidos a tinta negra. As horas passam e o homem da bicicleta descasca uma laranja. Saboreia. Bebe água do poço. A porta abre-se. José abraça o homem da bicicleta. No quadro, com um arame improvisado, um cesto com couves é pendurado. Cai a noite e a bicicleta rola. A lua ajuda.

Ainda o sol não deu os bons dias e já uma matilha de esfarrapados se faz à rua. Trabalhadores de fábrica. Trabalhadores de terra. Pelas pedras espreitam papéis. Saíram clandestinamente do ventre das couves. No adro da igreja espreitam papéis. Nos paralelos da calçada espreitam papéis. São amachucados, escondidos em sapatos ou algibeiras. E quando for possível, longe dos olhares dos abutres, grupos de homens e mulheres rodeiam o papel fino tingido a letras de chumbo. Quem souber juntar letras é o eleito para ler. É necessário aumentos na jorna. Melhores condições na fábrica. Escola para os filhos. Salário igual entre homens e mulheres.

Cidadania e Desenvolvimento: onde os alunos aprendem a “não roubar, não estragar, não andar à pancada”
José e os outros descansam os corpos em colchão de palha. Os cães ladram. A porta é arrombada. A polícia de defesa do estado intervém para bem da nação. Aos socos e pontapés, levam José e os outros para as salas bafientas com Salazar e Carmona a olharem. Sorrisos de hiena estampados em molduras pesadas. José e os outros são espancados, torturados. O hálito do agente é ácido. Quem vos mandou fazer os avantes? Foram vocês que montaram a porra da tipografia clandestina? Aquela merda veio de Moscovo? Quem são os vossos chefes? Quem colocou a merda dos avantes na aldeia? Filhos de uma cabra. Comunas de merda. Não vão ficar cá para contar a história. José e os outros não abriram a boca. Cada soco, cada estalada, cada hora de estátua eram anos de silêncio. Levem os gajos. Só comem daqui a três dias. Odeio comunas.  

Pela manhã os avantes estavam novamente na vila. O agente de hálito ácido volta a espancar José e os outros. Se não falam, mato-vos. Silêncio e silêncio. José e os outros foram libertados para sempre. De vez. Em abril. 

José e os outros continuam a gostar de laranjeiras. Por vezes ainda lançam a semente à terra. Não perderam o jeito nem o gosto. Muito menos a firmeza. José, os outros e tantos outros, lutaram pela liberdade. Combateram como ninguém a escuridão. O medo. A opressão. Lutaram para chegarmos todos até aqui. Um país livre. Livre como o vento ou como um catavento. Um país também de ingratidão. José e os outros resistiram aos socos e à estátua. À fome e à sede. Ao agente de hálito ácido. Também resistem agora. O hálito anda no ar. Cheira-se. Sente-se. Na conversa de café. No comentador limitado. No líder (adoram esta palavra) bafiento. No truque. Na mentira. Na manipulação. Até no pedido de desculpas. Sente-se o agente de hálito ácido a querer pendurar os sorrisos de hiena.

José e os outros, estão cá para os enfrentar. E há muitas pedras para colocar os papéis. Não julgue o agente de hálito ácido que desta vez será fácil. Talvez até seja impossível, enquanto houver quem teime em lutar.

O agente de hálito ácido é todo ele ódio. Tem sede de vingança. José e os outros, pintam letras às cores na Quinta da Atalaia. Não perderam a firmeza. Lutam novamente contra o medo. Pela liberdade. O agente de hálito ácido semeia calhaus em terra de pandemia.

Conheço o José e os outros. A todos eles, dou um abraço de gratidão maior que o mundo. Muitas vezes a roda da vida leva-nos para encontros e desencontros. Como agora. A Festa do Avante. A Festa que eu sempre frequentei e onde sempre me senti bem. A Festa que não devia acontecer este ano. Estamos desencontrados. Mas os dias vão passando e afinal, os socos, as bofetadas, a estátua, as torturas ainda não acabaram. O agente de hálito ácido ainda grita – morte aos comunas! Não posso esquecer o lado da barricada em que estou. Pela amizade e pela solidariedade com homens e mulheres íntegros, José, os outros e tantos outros, estarei na Quinta da Atalaia. No cimo da roda gigante levantarei o punho, em silêncio, como tu José, contra o medo e pela liberdade.

tp.ocilbup@adnarima

https://www.publico.pt/2020/09/03/opiniao/opiniao/roda-gigante-avante-1930191