domingo, 27 de junho de 2021

Carmen Garcia - O avô é imortal

CRÓNICA

Eu queria levá-los à feira como o meu pai me fazia. Queria dar-lhes um churro cheio de gordura e chocolate e comprar-lhes senhas para que pudessem andar de carrossel até se sentirem tontos.

Carmen Garcia

27 de Junho de 2021, 8:06

"Mas no meio daquela noite tão estranha achei, por alguma razão, que ir comprar as farturas era uma coisa que fazia imenso sentido" NELSON GARRIDO

Em circunstâncias normais, estas palavras estariam a ser escritas ao mesmo tempo que a brisa me impregnava o quarto com o cheiro enjoativo das farturas e que uma voz cheia de efeitos me adentrava a casa enquanto anunciava o preço dos bilhetes para a pista de carrinhos de choque. Mas este é o segundo ano em que as circunstâncias não são normais e em que a cidade que me viu nascer não vê a Feira de São João tomar conta do Rossio.

Cresci com esta feira, sabem? Mesmo antes de viver em Évora, era certo e sabido que o Rossio, em Junho, era local de visita obrigatória. A minha mãe aproveitava para comprar facas de cabo de madeira, daquelas que cortam bem de verdade, e eu delirava com os carrosséis que me pareciam enormes e tão divertidos. O meu pai, que na verdade sempre gostou pouco de ajuntamentos, fazia o frete para nos ver felizes e conseguia-o. E talvez por perceber desde cedo que fazer 50 quilómetros para passear numa feira era uma coisa que ele só fazia porque nos amava, nunca deixei de o associar a estes dias.

Quando o meu pai fez 60 anos, menos de duas semanas após uma cirurgia cardíaca para colocação de uma válvula aórtica mecânica e de um bypass coronário, depois de um episódio de vómito em casa, o coração dele decidiu deixar de bater. E se não sabem o que é angústia, eu digo-vos que angústia é estar do lado de fora de uma sala de emergência depois de o vosso pai ter estado em paragem cardiorrespiratória, saberem que ele está a lutar pela vida lá dentro e não poderem fazer mais do que rezar ao Deus em que o vosso coração quer acreditar, mas que o vosso cérebro teima em gritar alto não existir.

Já era noite quando o meu pai estabilizou e foi levado para o bloco operatório. Apesar da intervenção recente ao coração, o problema estava na vesícula e tinha-se instalado uma inflamação da membrana que envolve a nossa cavidade abdominal. O quadro era grave e a cirurgia tinha tudo para ser complexa, não só pela medicação que tinha iniciado depois da cirurgia cardíaca, mas pelos valores analíticos que, nas palavras de um dos médicos que o assistiu na urgência, eram um autêntico descalabro. A cirurgiã, preocupada, veio falar comigo antes do procedimento e disse-me que o quadro era demasiado complexo e o prognóstico tão reservado que era melhor preparar a minha mãe para o pior e não acalentar grandes esperanças.

Faltou-me o ar. Juro que me faltou o ar. Queria respirar e não conseguia. Queria falar e não encontrava as palavras. Mas lá encontrei uma réstia de força e, depois de atabalhoadamente pedir à médica que fizesse o melhor possível, saí a correr do hospital e sentei-me num passeio escuro perto de um parque de estacionamento. Era dia 18 de Junho. E apesar de ter esquecido tal facto durante quase todo o dia, o cheiro a fritos dominava o ar e a música pimba sobrepunha-se a todos os ruídos. De repente, o ar voltou aos meus pulmões. Levantei-me e comecei a caminhar. Fui à feira.

Passeei pela feira durante as quatro horas que o meu telemóvel demorou a tocar. Mas soube antes de o atender que tinha corrido tudo bem. Não me perguntem como nem porquê e saibam que sou a pessoa menos mística deste mundo. Mas eu soube. E a voz da minha colega, do outro lado, confirmou. “Correu melhor do que o previsto”, disse-me ela. “Eu sei”, respondi.

Se ela achou que eu tinha enlouquecido, teve o mérito de disfarçar bem e, de forma muito profissional, informou-me que o meu pai iria seguir para os cuidados intensivos, mas que, muito provavelmente, seria ainda extubado durante a noite. E eu desliguei o telemóvel, dei mais uma volta pela feira, fui comprar duas farturas cheias de gordura, açúcar e canela como o meu pai costumava comer e levei-as para casa. Ninguém as comeria, é certo. Mas no meio daquela noite tão estranha achei, por alguma razão, que ir comprar as farturas era uma coisa que fazia imenso sentido.

Este é o segundo ano em que as circunstâncias não são normais e em que a cidade que me viu nascer não vê a Feira de São João tomar conta do Rossio

E se a feira de São João já era importante para mim, depois deste 18 de Junho, tornou-se ainda mais. Não falhei uma única edição, ainda que em 2018, a “rebentar pelas costuras” de grávida, tenha demorado menos do que 15 minutos no meu passeio anual. Mas tinha de lá ir, percebem? Tinha de ir respirar aquele vento frio (por incrível que pareça, faz sempre frio nas noites do São João), tinha de ir percorrer aquelas ruas de sempre, tinha de entrar nos pavilhões que parecem montados a papel químico de uns anos para os outros, porque uma parte da história da minha vida foi escrita ali.

Este ano estou em casa. A creche dos miúdos está fechada porque uma criança testou positivo à covid-19 e eles estão em isolamento profiláctico há 11 dias. Não houve feira pelo segundo ano consecutivo. Estamos em Junho, é noite, não ouço o barulho dos megafones onde se anunciam três cuecas de algodão por cinco euros e as ruas estão tão desertas que mais parecem assombradas. A pandemia continua a roubar-nos partes da vida. E estas pequenas partes são as que mais me têm doído.

Este isolamento dos pequenos tem sido mais difícil do que os longos períodos de confinamento que vivemos. Cada dia parece durar um século. Eles arrastam-se pela casa, perguntam quando podem ir ao parque e a casa dos avós, e eu arrasto-me atrás deles enquanto vou torcendo para que as horas passem mais depressa. Sinto que fomos os três apanhados por uma espécie de letargia que colocou a nossa vida em pausa. Eles são meninos pouco habituados a estar presos.

E eu queria levá-los à feira como o meu pai me fazia. Queria dar-lhes um churro cheio de gordura e chocolate e comprar-lhes senhas para que pudessem andar de carrossel até se sentirem tontos.

"Este isolamento dos pequenos tem sido mais difícil do que os longos períodos de confinamento que vivemos. Cada dia parece durar um século" MIGUEL NOGUEIRA

Queria que a infância deles fosse tão normal quanto possível. Sem máscaras, com festas de aldeia, com feiras e romarias. Acho que o meu mais novo nem tem noção de que é possível andar na rua de cara destapada e saber isso parte-me o coração. No outro dia, depois de lhes dar banho, fui dar com o Pedro a enfiar o cotonete com que lhe limpei os pavilhões auriculares dentro do nariz do irmão enquanto lhe dizia “sossegado que isto é para testar se tens o coronavírus”. E eu quase chorei.

Quase chorei porque de alguma forma sinto que estamos a roubar a estas crianças muitas oportunidades que não voltam, porque sei que um dia vou amaldiçoar cada hora que eles passaram longe do colo dos avós, porque sinto que esta pandemia, que teima em manter-se viva, depois de todas as contas feitas, nos vai sair demasiado cara em afectos e experiências.

É claro que nada disto vale uma vida e, por aqui, mais ou menos cansados, continuamos e continuaremos sempre a cumprir. Mas caramba, tanto que quero pegar nestes dois e levá-los pela mão a passear nas ruas da feira. E um dia, quando eles já tiverem capacidade para entender, u dizer-lhes que foi ali, naquelas ruas empedradas e naquela terra batida do Rossio, que tive a certeza de que o avô Januário estava vivo e que é ali e só ali, naquela feira, que a cada ano comprovo que o avô é imortal.

https://www.publico.pt/2021/06/27/impar/cronica/avo-imortal-1967590


sexta-feira, 18 de junho de 2021

António Guerreiro - A santa resiliência

 CRÓNICA ACÇÃO PARALELA

* António Guerreiro

18 de Junho de 2021, 10:13

Antes que o jargão da tripla aliança política, económica e mediática nos submerja com a sua capacidade injuriosa e de cancelamento da crítica, devemos cuidar das palavras, observar a sua vida e perceber o sentido das suas inflexões. Num tempo que nos parece hoje já distante, mas do qual, se nascemos nos últimos quarenta anos, somos ainda contemporâneos, a palavra “progressista” teve uma considerável fortuna e sinalizava o “imaginário” político (“imaginário” é, aliás, outra palavra defunta). Ser “progressista” era acreditar no progresso. Não no progresso tecnológico ou científico (muito embora esse também fizesse parte do processo), mas num progresso que tinha uma escala muito mais ampla: a do curso inelutável da história em direcção à “justiça” social e à “emancipação” política. “Progressista” era o termo condescendente usado pelos comunistas para nomear quem não se comprometia com lutas revolucionárias, mas também não estava do lado das soluções conservadoras ou até reaccionárias. Nesse jargão outrora dominante, ser progressista significava olhar em frente, em direcção a um futuro radioso, em oposição aos reaccionários, que olhavam para trás, para um passado geralmente mitificado. Quando o progresso e o mundo por vir em vez de inspirar confiança e mobilizar a acção começaram a gerar o medo, ser progressista perdeu a condição de título a reivindicar. A herança dos antigos progressistas reside hoje num pensamento que, pelos critérios de antigamente, seria considerado reaccionário (como classificar muitas das lutas identitárias e ecológicas?). Esta inversão de valores constitui um enorme desafio às representações baseadas na topologia que divide o espaço político entre esquerda e direita.

Hoje, que a palavra “revolução” passou por uma zona demoníaca e tornou-se depois uma ruína inerte, um outro “re-” substituto entrou em cena e triunfou. Comecemos por uma aproximação negativa: não é “resistência”. Resistir era a atitude do “antes quebrar que torcer”, era um heroísmo com uma dupla face: ou era épico ou trágico. A atestá-lo, aí estão, por todo o lado, os monumentos e os “lugares de memória” que celebram os “heróis da resistência”, ao serviço do uso que em cada momento se faz da história. Um discurso do presidente francês, Emmanuel Macron, pronunciado no dia 9 de Novembro de 2020, pelo cinquentenário da morte do general de Gaulle, indica-nos qual é o novo “re-” que revogou a “resistência”. Nessa ocasião, Macron, com a eloquência francesa que serviu durante séculos como medida da “civilização”, saudou o “espírito de resiliência” do general. E assim passou de Gaulle a herói da “resiliência” francesa. Foi uma operação “revisionista” sem grandes custos: bastou a substituição de uma palavra por outra, muito mais actual. A República ganhou assim o seu terceiro “re-”, caducado que foi o tempo da revolução e fora de moda em que caiu a resistência.

Os novos tempos são pois os da resiliência. Do Atlântico aos Urais e para além, da costa leste à costa oeste e vice-versa. Temos a nova palavra-maná pronunciada a toda a hora pelos políticos democratas (sim, porque nos regimes ditatoriais os opositores não julgaram ainda adequado substituir a resistência pela resiliência, e os ditadores movem-se noutro campo semântico). Basta ouvir os nossos políticos para perceber que a resiliência se tornou uma ideologia: a ideologia do sofrimento e da infelicidade que salvam e purificam. O resistente estava disposto a quebrar; o resiliente é maleável, adapta-se a tudo, não tenta alterar nenhuma ordem, mas, pura e simplesmente, fazer o jogo da ordem presente para daí retirar ganhos. A táctica da resiliência é o consentimento. Por cada crise, infortúnio ou catástrofe, os arautos da resiliência prometem que “vamos sair daqui ainda mais fortes”. Toda a felicidade é conseguida à custa da infelicidade, e é sempre a destruição que é uma fonte da reconstrução. Aliás, o pressuposto da resiliência, essa terapia inventada nos gabinetes clínicos da aliança económico-política, é que a infelicidade é um mérito e a destruição uma bênção. Uma coisa que tem o nome de “Plano de Recuperação e Resiliência” poderia ser uma prescrição médica seguida numa associação de alcoólicos anónimos. Tudo neste jargão político tresanda de vício e de uma execrável ideologia.

https://www.publico.pt/2021/06/18/culturaipsilon/cronica/santa-resiliencia-196667

quinta-feira, 10 de junho de 2021

10 de Junho



* Joana Lopes

Este post regressa quase todos os anos. Por mais tempo que passe, nunca deixará de ser, para mim, o tal «Dia da Raça», já que não consegui apagar da memória o que era até ao 25 de Abril. 

Assinala-se hoje o dia em que Camões foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, em 1880. Feriado nacional desde os anos vinte do século passado, a data ganhou um novo significado em 1944, quando Salazar a rebaptizou como «Festa de Camões e da Raça». Fê-lo por ocasião da inauguração do Estádio Nacional, que ocorreu com grande pompa, em cerimónias a que terão assistido mais de 60.000 pessoas e que foram filmadas por António Lopes Ribeiro (vídeos aqui e aqui). Linguagem inequívoca: «Às cinco horas, chegou o chefe: Salazar. Salazar, campeão da pátria, era o atleta número um, naquela festa de campeões.»

Mais graves, e bem mais trágicos, passaram a ser os 10 de Junho a partir de 1963. Transformados em homenagem às Forças Armadas envolvidas na guerra colonial, eram a data escolhida para distribuição de condecorações, muitas vezes na pessoa de familiares de soldados mortos em combate (fotos reais no topo deste post).

De 1974 a 1976 não houve comemorações. Até que, um militar presidente da República as ressuscitou em 1977, primeiro como «Dia de Camões e das Comunidades» e, a partir de 1978, também como «Dia de Portugal». Mas continua-se a distribuir condecorações – outras, por motivos diferentes e eventualmente louváveis. No mínimo, talvez fosse possível escolher outra data para o efeito, já que, pelo menos no que me diz respeito, sou incapaz de não associar qualquer distribuição de medalhas neste dia às trágicas imagens do Terreiro do Paço, em tempo da guerra colonial.

Porque era assim:


https://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2021/06/10-de-junho.html

O feriado do 10 de junho faz hoje 110 anos. Esta é a sua história

 SOCIEDADE

A historiadora Maria Isabel João tem investigado a data do 10 de Junho, e é autora do livro “Memória e Império — Comemorações em Portugal (1880–1960)” 

 

As celebrações do 10 de Junho sobreviveram a três regimes políticos. Quase que poderemos dizer quatro, já que esta data — muito acarinhada pelos republicanos — foi evocada pela primeira vez em 1880, no reinado de D. Luís. Se quiser saber a história até aos nossos dias leia a entrevista com a investigadora Maria Isabel João

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10 JUNHO 2021 10:31

Manuela Goucha Soares  Jornalista

Um ano antes do golpe que instituiu a ditadura militar em 1926, a I República declarou que a “Festa de Portugal se celebrará no dia 10 de Junho de cada ano”. O Estado Novo manteve a data como Festa de Portugal, elevando-a à condição de feriado nacional em 1929.

O título de Dia de Portugal só surgiria décadas depois. E, apesar de ninguém saber se o poeta Luís Vaz de Camões morreu mesmo neste dia, a democracia continuou a celebrar o 10 de Junho como data da identidade nacional. Uma originalidade portuguesa que é praticamente “caso único” no mundo, segundo a professora Maria Isabel João, autora do livro “Memória e Império — Comemorações em Portugal (1880–1960)”. A historiadora lembra que a “maioria esmagadora dos países do mundo escolhe uma data que se relaciona com a fundação do Estado ou do regime político vigente”.

Como é que esta data consegue resistir a três regimes políticos como símbolo da identidade nacional?
Porque está identificada com a figura de Camões, que é o símbolo da nação desde o século XIX. É uma figura que emerge no contexto da mitologia nacional criada pelos românticos e que se transforma num símbolo da nação. O [historiador] Oliveira Martins diz que Camões é o epónimo de Portugal. E o [republicano] Teófilo Braga, num dos seus textos, diz que, se dissermos que somos portugueses no estrangeiro, ninguém nos identifica. Mas, se dissermos que somos da pátria de Camões, já nos identificam.

A I República acarinha o dia por causa de Camões?
Sim, porque na altura das comemorações do tricentenário da morte de Camões, em 1880, os republicanos, e nomeadamente Teófilo Braga, que tinha importado as conceções positivistas de Auguste Comte para Portugal, entendia que era importante substituir os símbolos religiosos por laicos. Camões surge como um símbolo laico.

Podemos dizer que Teófilo é o ‘pai‘ do Dia de Camões?
Ele é o pai da ideia da comemoração do III centenário da morte de Camões, que cria as bases para que o 10 de Junho pudesse vir a ser feriado nacional. Falou-se nisso na época, mas nunca foi feriado no período da monarquia. Teófilo empenhou-se muito, como estudioso de literatura, a estudar Camões e a obra dele, e também como mentor das comemorações do III centenário, bem como na promoção da figura de Camões como símbolo nacional. Este acontecimento adquiriu uma enorme importância, porque houve uma grande mobilização da imprensa da época, que contribuiu para que ficasse na memória.

A imprensa foi determinante para a consagração e interiorização da figura de Camões como símbolo nacional?
Teófilo Braga apareceu na imprensa [com artigos] a defender o centenário. Os republicanos impuseram um modelo de celebrações importado da França e da Revolução Francesa, o que fez com que os monárquicos e a própria Corte tivessem hesitado no modelo das comemorações sem desconfiarem da figura de Camões. A ideia de que na época iria haver uma procissão cívica no 10 de Junho era uma apropriação de rituais religiosos que foram [assim] laicizados. As comemorações mobilizaram Câmaras de todo o país, associações... E houve um grande cortejo, que partiu da Praça do Comércio e foi depor flores na estátua de Camões, que contribuiu para a afirmação dos republicanos como força política, embora o próprio rei tenha presenciado as comemorações.

A partir de 1911, o 10 de Junho passa a ser feriado municipal de Lisboa...
O regime republicano homenageou a data, tornando o dia feriado na capital. Ao longo dos anos, as comemorações do dia 10 de junho foram variando consoante as circunstâncias políticas. Em 1917, a data foi celebrada como Dia dos Aliados, porque a I Guerra Mundial mobilizava a atenção de todos. E em 1924, quando se celebrou o IV centenário do nascimento de Camões, o 10 de Junho foi a data escolhida. A imprensa da época utilizava a expressão Festa da Raça para as comemorações camonianas, e o sentido do termo ‘raça’ era vago e identificava-se com o próprio povo português. A celebração durou seis dias e teve repercussão no estrangeiro, em especial em Espanha.

É o Estado Novo que batiza a data como Dia de Portugal?
Sim, mas só em 1952. Entre 1925 e 1952, o 10 de Junho foi designado como Festa de Portugal. E só passou a ser celebrado como feriado nacional em 1929.

As pessoas precisam de símbolos. É isso que explica que o 10 de Junho tenha sobrevivido à queda da ditadura como símbolo da identidade nacional?
Exatamente, a questão simbólica é muito importante, mas isso [também] revela o quanto o 10 de Junho estava enraizado na consciência nacional. Em 1974, realizou-se uma manifestação de solidariedade com as Forças Armadas; no fim, colocaram flores na estátua de Camões [em Lisboa]. E em 1977, depois de Ramalho Eanes ter sido eleito, a data passou a Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas. No ano seguinte começou a ser celebrado como Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas [designação que mantém].

[esta entrevista foi inicialmente publicada a 10 de junho de 2017]

https://expresso.pt/sociedade/2021-06-10-O-feriado-do-10-de-junho-faz-hoje-110-anos.-Esta-e-a-sua-historia-421331ec

domingo, 6 de junho de 2021

João Pedro Marques - “Os escravos ainda têm de agradecer a alguns brancos”

 

DIA DE PORTUGAL

* João Pedro Marques 

João Pedro Marques, historiador, acredita que Portugal não é um país racista

TEXTO CHRISTIANA MARTINS E HENRIQUE MONTEIRO

Polémico, não receia confrontar os afrodescendentes ao dizer que foram os brancos que defenderam o fim generalizado da escravatura no mundo ocidental.

Que alternativa havia no século XVI ao modelo de colonização português?

A escravidão não desapareceu da Europa com a queda do Império Romano. Os escravos vinham trazidos pelos mongóis. Eram brancos. No século XIII, com as Cruzadas, os ocidentais conheceram a produção açucareira na Terra Santa e associaram-na à exploração intensiva da mão de obra. Esse modelo foi passando para o Ocidente: Chipre, Creta, Sicília, sul de Espanha e Portugal, que já tinha escravos mouros. E há uma coincidência infeliz para os africanos: o momento em que Portugal avança na costa africana e contacta com as populações subsarianas, é o mesmo em que se interrompe o fornecimento de escravos do Oriente e a necessidade de mão de obra é respondida pela disponibilidade que encontram em África, onde há muito havia escravatura interna.

A escravatura anterior à expansão normaliza o tráfico negreiro?

Sim, há jurisprudência e pensamento filosófico sobre a relação entre escravos e senhores, a posse da pessoa e da sua prole: escravo é alguém que não tem posse sobre si próprio.

Este pedido de desculpas é uma alavanca política

Porque Portugal beneficiou da ideia de um colonialismo “português suave”?

Em Angola, os portugueses estabeleceram-se com relações de proximidade, houve uma africanização. No século XV havia quem, para fugir à justiça real, saísse dos navios para a costa de África, eram os “lançados”, que viviam nas comunidades locais, casavam com mulheres poderosas e serviam de intermediários com os portugueses que iam comprar escravos. Depois, Gilberto Freyre desenvolve a ideia da propensão dos portugueses de se ligarem aos locais. É muito diferente da relação com os alemães ou os belgas, que chegam tardiamente, no final do século XIX, e trazem uma ideia de extermínio.

A abordagem distinta não ilude a presença de violência?

Claro que não. O racismo na segunda metade do século XIX é uma teoria e uma convicção em crescimento; as pessoas acreditam que o negro é um ser inferior, alguém que só a pancada será possível civilizar e fazer trabalhar. À época colocou-se um problema moral, filosófico e jurídico. Perguntava-se quem eram aquelas pessoas e supunha-se que eram condenados, pois os potentados negros vendiam-nos como adúlteros e ladrões, mas não havia meio de os brancos saberem.

A elite portuguesa preocupava-se em promover a libertação?

Pouco, porque Portugal começou tarde e foi perro no caminho abolicionista. Quando Sá da Bandeira consegue passar mais leis tendentes à libertação da escravidão, já havia um refluxo da maré. Nos meados do séc. XIX começou a fixar-se a convicção de que o negro era mandrião. Já não era possível manter a escravidão por razões morais, mas defendia-se uma tutela paternal que obrigasse os vadios, como eram chamados, a trabalhar. Quando Portugal aboliu a escravatura, parte da elite tinha a convicção de que teria de ser substituída pelo trabalho forçado, o que acontece em 1870.

O abolicionismo em Portugal vem acompanhado pelo racismo?

Não, o abolicionismo do fim do século XVIII não tem uma visão racista, mas no século XIX, com a desilusão e o desenvolvimento das teorias racistas, uma coisa engrena na outra.

Nas colónias portuguesas houve um sentimento abolicionista?

Não. Luanda, um grande porto exportador de escravos durante séculos, não teve nenhuma revolta escrava. Os escravos reagiam de várias formas à condição horrível em que viviam. Se pudessem, fugiam e formavam quilombos. Às vezes revoltavam-se, mas não eram contra a escravidão, apenas contra a sua própria escravidão. Muitas vezes negociavam escravos para obter armas e pólvora. Em África não há vestígios de líderes ou pensadores abolicionistas naquela época. É uma ideia ocidental.

Esta narrativa é rejeitada pelos afrodescendentes.

A história está a ser falsificada. Essa narrativa visa dar às comunidades negras elementos de identificação e orgulho. Mas não é história: é ideologia.

Criou-se uma situação em que o negro não pode ser criticado porque é racismo

A singularidade ocidental está em ter acabado com a escravatura e condenar o racismo como algo desumano?

Sim. O que é específico deste sistema foi ter colocado um fim à escravatura. Não é simpático dizer que os escravos ainda têm de agradecer a alguns brancos.

Então não coloca a questão do pedido de desculpas histórico?

Não faz sentido. Em primeiro lugar porque era aceite pelas duas partes, a que vendia e a que comprava. E porque só foi considerado um crime a partir do século XVIII. Temos de ir devagar. Por isso, só entidades sem responsabilidade direta o podem fazer, como o Papa.

A culpa não é uma herança?

Este pedido de desculpas é uma alavanca política para se pedir o ressarcimento material. É preciso dizer-lhes que não são vítimas nem herdeiros da escravatura: esses estão no Brasil. Os que estão cá descendem no máximo de quem vendeu os escravos. Criou-se uma situação em que o negro não pode ser criticado porque é racismo.


https://expresso.pt/sociedade/2021-06-06-10-de-junho.-Os-escravos-ainda-tem-de-agradecer-a-alguns-brancos-diz-Joao-Pedro-Marques-3ac5966d