terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Romanceiro - XXXVI Linda-a-Pastora



 * Almeida Garrett


Quem desce Tejo abaixo, por ésta margem do Norte onde está Lisboa, e tendo saudado o precioso monumento de Belem, a sua tôrre não menos bella, entra no fashionavel Pedroiços e d’ahi segue ás praias do Dafundo até á Cruz-quebrada, tem dado o mais bonito passeio que se póde dar nas vizinhanças da capital, e visitado os sitios que, depois de Cintra, mais frequenta a sociedade elegante da nossa terra. De fins de Agosto a principios de Novembro é que tudo alli corre, e que os banhos do mar povoam aquelles bellos ermos, nas outras estações desamparados.

Quem tiver porêm o bom gôsto de resistir ao despotismo tarifeiro da moda, e se abalançar em Maio ou Junho a este largo passeio, que no estado dos nossos caminhos é antes uma pequena viagem, creia que hade ser pago de sua nobre ousadia. Não ha palavras que digam todas as bellezas d’aquella terra, d’aquelle ceo, d’aquellas aguas. Á esquerda o Tejo, os navios que entram e sahem, as frotas de barcos pescarejos, a areia alva juncto á beira d’agua, e logo pegada á salsugem, a prodigiosa vegetação das plantas que a amam e em que se pasce gulloso e largo á vontade o gado. Perto, um saveiro que chegou á terra e cuja companha pucha ao longo da praia pela rede que arrasta os innumeraveis cardumes de peixes que logo virão saltar na areia. Á direita nas eminencias, as ruinas picturescas de conventos desertos, de moinhos abandonados, de fortes, de atalaias. E tudo isto incastoado na verdura viçosa e florida da primavera que ainda não queimou o sol do estio. No fim do verão quando vai todo o mundo, ja não ha senão resteva nos campos, talos de hervas seccas nos montes, árvores sem folha, poeira nos ares, e uma ventaneira despregada que não cessa.

Ja me eram familiares de annos aquelles sitios; mas posso dizer que os não conheci bem e como elles são devéras, senão quando, haverá hoje tres annos, alli fui um dia primeiro de Maio. Fui, como de maravilha em maravilha, por todos os pontos que tenho nomeado; mas chegando á ribeira de Jamor, parei extasiado no meio de sua ponte, porque a varzea que d’ahi se extende, recurvando-se pela direita para Carnaxide, e os montes que a abrigam em deredor, estava tudo de uma belleza que verdadeiramente fascinava. O trigo verde e viçoso ondeava com a viração desde as veigas que rega o Jamor, até os altos onde velejam centenares de moinhos. Árvores grandes e bellas, como rara vez se incontram n’esta provincia dendroclasta, rodeavam melancholicamente, no mais fundo do vale, a velha mansão do Rodizio. E lá, em prespectiva, no fundo do quadro, uma aldea de Suissa com suas casinhas brancas, suas ruas em soccalcos, seu presbiterio ornado de um ramalhete de faias; grandes massas de basalto negro pelo meio de tudo isto, parreiraes, jardinzitos quasi pensis, e uma graça, uma simplicidade alpina, um sabor de campo, um cheiro de montanha, como é difficil de incontrar tam perto de uma grande capital.

O logarejo é bem conhecido de nome e fama, chama-se Linda-a-Pastora. Porque? Não sei. Tem-me jurado antiquarios de ‘meia-tijella’ que o seu nome verdadeiro é Niña a Pastora. Mas emquanto não achar algum de ‘tijella inteira’ que me saiba dar a razão por que se havia de chamar assim, meio em portuguez meio em castelhano, um aldeote de aopé de Lisboa—heide chamar-lhe eu, como os seus habitantes e toda a gente diz: Linda-a-Pastora.

Namorei-me do sitio por modo, que alli passei o verão todo; e d’alli fiz deliciosas excursões pelas vizinhanças, que todas são bonitas. Foi n’este proprio e appropriado sitio que a Sr.ª Francisca, lavadeira bem conhecida do logar, me deu a última e, ao parecer, mais correcta licção que do presente romance tinha obtido. Em outras partes do reino traz elle o titulo de ‘Pastorinha;’ aqui era justo e natural que se lhe désse o de Linda-a-Pastora’, que assentei conservar-lhe.

Na fórma é um romance em endeixas, mas o fundo é de uma verdadeira pastourella do genero provençal; nem a fariam mais graciosa Giraud Riquier ou Giraud de Borneill.

Tem muitas variantes, porque todo o reino a sabe e canta. Eu noto somente as principaes.


LINDA-A-PASTORA


—‘Linda pastorinha, que fazeis aqui?’
—‘Procuro o meu gado que por ahi perdi.’
—‘Tam gentil senhora a guardar o gado!’
—‘Senhor, ja nascemos para esse fado.’
—‘Por éstas montanhas em tam grande p’rigo!’
Diga-me, ó menina, se quer vir commigo.’
—‘Um senhor tam guapo dar tam mau conselho[131].
Querer que se perca o gado alheio!’
—‘Não tenha esse medo que o gado se perca[132]
Por aqui passarmos uma ora de sésta.’
—‘Tal razão como essa não n’a ouvirei[133]:
Ja dirão meus amos que de mais tardei.’
—‘Diga-lhe, menina, que se demorou
Co’esta nuvem de agua que tudo molhou.’
—‘Fallarei verdade, que mentir não sei:
Á volta do gado eu me descuidei.’
—‘Pastorinha, escute, que oiço ballar gado...’
—‘Serão as ovelhas que me tem faltado.’
—‘Eu lh’as vou buscar ja muito depressa,
Mas que me espedace por essa charneca.’
—‘Ai como vai grave de meias de seda!
Olhe não as rompa por essa resteva[134].’
—‘Meias e sapatos[135], tudo romperei[136]
So por lhe dar gôsto, minha alma, meu bem.’
—‘Ei-lo aqui vem; é todo o meu gado.’
—‘Meu destino foi ser vosso criado.’
—‘Senhor, va-se embora, não me dê mais pena,
—‘Que hade vir meu amo trazer-me a merenda.’
—‘Se vier seu amo, venha muito embora;
Diremos, menina, que cheguei agora.’
—‘Senhor, va-se, va-se, não me dê tormento:
Ja não quero vê-lo nem por pensamento.’
—‘Pois adeus, ingrata da Linda-a-Pastora!
Fica-te, eu me vou pela serra fóra[137].’
—‘Venha cá, Senhor, torne atrás correndo...
Que o amor é cego, ja me está rendendo.’
Sentaram-se á sombra... tudo estava ardendo...[138]
Quando ellas não querem, então ’stão querendo.

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[131]
Não deve ser nobre quem dá tal conselho—Minho, Beira Baixa.

[132]
Eu não digo isso, que o gado se perca,
Mas que descancemos uma hora de sésta.—Beira Alta, Extremadura.

[133]
Que dirão meus amos em que me occupei—Beira Alta

[134]
Por essas estevas—Alemtejo.

[135]
Meias e vestido—Ribatejo.

[136]
Romperem—Coimbra.

[137]
Vai guardar teu gado pela serra fóra—Beira Alta

[138]
Senta-te a ésta sombra que está o mundo ardendo.
—‘Eu bem não queria, mas estou querendo.’
—‘Calla-te, pastora, não digas mais nada,
Que a aposta que eu fiz ja está ganhada.’
—‘Senhor, vou sentar-me não por má tenção.’
Pois sabe a verdade, que sou teu irmão.—Beira Alta.
—‘Sente-se a ésta sombra, passemos a sésta,
Ja pouco me importa que o gado se perca.’
Oh gente da casa, accudi ao gado,
Que foge a pastora c’o seu namorado.—Minho.

     

Romanceiro III       Romances Cavalherescos Antigos

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