quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Carlos Coutinho - Poesia

(Carlos Coutinho, in Facebook, 01/08/2021)

Florbela Espanca, num soneto muito conhecido e até muito cantado, proclama que ser poeta “é ter asas e garras de condor”, questão que monopolizou a conversa de duas senhoras minhas desconhecidas, esta manhã, num café do meu bairro, onde raramente vou.

Aposto que são professoras, porque ambas tinham livros sobre a mesa, embora só uma folheasse de vez em quando um grosso caderno de argolas, precisamente aquela que mastigou o citado verso de Florbela e afirmou:

– Ainda não sei se, neste caso, não teremos aqui um poeta, em vez de uma poetisa… Como agora está na moda dizer…

– Que ideia! Lê o soneto desde o princípio.

Silêncio.

–. Sim. Nenhum macho seria capaz de escrever que ser poeta “é condensar o mundo num só grito”.

– Hum… os machos também sabem mentir.

Senti-me abrangido pela ofensa e fiquei sem respiração quando ouvi:

– Olha este: bla, blá, blá “quando os teus mamilos túmidos como cerejas de veludo tépido rastejam devagarinho no meu peito atento, descem de rojo pelo meu ventre e só me param nestas virilhas sôfregas, absolutamente se aninhando nelas, que finalmente lhe dão guarida …”

– Há melhor. Olha este: “Existe uma Valquíria que me faz voar sobre obstáculos irremovíveis. Como é bom sentir-lhe o peso!”

– Aí estão dois fragmentos que podem ser muito expressivos, mas nada de poético se deteta na sua construção… O que também está na moda. Gosto mais do tempo em que se escrevia assim: “Conheço o sal da tua pele seca…”

Olá, pensei, isto é Sena! E pus-me â escuta. Só que, tal como, alguns momentos antes, eu não tinha conseguido reter as palavras todas do pretenso poema e apenas me é possível transcrevê-las agora, porque a dona do papel o deixou cair ao chão inadvertidamente e se esqueceu de o apanhar quando foi embora, também o saboroso texto de Jorge de Sena me escapava em grande parte.

Mas eu sabia onde encontrá-lo e, quando cheguei a casa, corri para a estante, tirei a “Poesia-III” e não demorei a ver na pág. 236 o que pretendia. Li, saboreei e não me coíbo a transcrever aqui as duas primeiras e as duas últimas estrofes:

“Conheço o sal da tua pele seca

depois que o estio se volveu inverno

da carne repousando em suor nocturno.

“Conheço o sal do leite que bebemos

quando das bocas se estreitavam lábios

e o coração no sexo palpitava.

(…)

“Conheço o sal da tua boca, o sal

da tua língua, o sal de teus mamilos,

e o da cintura se encurvando de ancas.

“A todo o sal conheço que é só teu,

ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,

um cristalino pó de amantes enlaçados.”

Quem quiser conhecer o poema na íntegra faça como eu, que estes esforços não fatigam e dão saúde.


https://estatuadesal.com/2021/08/05/poesia/

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