domingo, 1 de agosto de 2021

João Miguel Tavares - Otelo e o princípio de Peter


OPINIÃO

Muitos disseram que Otelo Saraiva de Carvalho foi uma personagem complexa, contraditória, instável. Todos somos, quando não temos a menor ideia do que estamos a fazer.

*  João Miguel Tavares
27 de Julho de 2021, 0:00

Eram todos muito jovens. Às vezes esquecemo-nos disso. Salgueiro Maia tinha 29 anos. Vasco Lourenço tinha 31. Otelo era um pouco mais velho, tinha 37. Jaime Neves tinha 38. Ernesto Melo Antunes, que tantas vezes apareceu como a voz da experiência e da razão dentro do MFA, tinha 40 anos. Ramalho Eanes, 39.

As melhores tropas estavam em África. Os soldados revoltosos tinham pouco mais do que a instrução militar. O 25 de Abril de 1974 foi feito por miúdos, e por jovens oficiais que tinham passado várias vezes pela guerra, mas nunca por uma revolução. Não sabiam como se fazia. Ou melhor: sabiam como se derrubava uma ditadura, e derrubaram-na com grande coragem, brilhantismo e contenção – Abril foi, nessa medida, um empreendimento impressionante e digno da nossa maior gratidão –, mas não faziam a menor ideia de como se erguia uma democracia. O talento para destruir nada tem a ver com o talento para construir. É a diferença entre uma marreta e um estirador, e Otelo nunca teve talento para a arquitectura.

Muitos disseram que Otelo Saraiva de Carvalho foi uma personagem complexa, contraditória, instável. Todos somos, quando não temos a menor ideia do que estamos a fazer. O princípio de Peter explica isso: numa estrutura hierárquica, todos os funcionários tendem a subir até ao seu nível de incompetência, e a competência de Otelo terminou no dia 25 de Abril. A 26 de Abril, ele já era incompetente para a sua função. Infelizmente, demorou demasiado tempo a percebê-lo, e desse equívoco nasceu muito sofrimento e muitas mortes.

Otelo cometeu demasiados erros na época do COPCON, e errou de forma catastrófica na época das FP-25. Podia ter sido apenas um herói, mas os deuses amaldiçoaram-no com a pior das cegueiras: a inconsciência das suas próprias limitações

Vasco Lourenço escreveu um texto bonito sobre o seu amigo no PÚBLICO, onde disse: “Hoje, não teremos o Portugal com que cada um de nós sonhou, mas temos o Portugal que os portugueses têm sido capazes de construir. Em Liberdade e em Democracia.” Está muito bem dito. Por um lado, ninguém podia impedir os capitães de Abril de sonhar, muito menos em 1974 e 1975. Por outro, era inevitável que os sonhos de uns se tornassem nos pesadelos de outros, porque todas as grandes utopias estão pejadas de cadáveres. Salgueiro Maia, mais por temperamento do que por experiência, sabia-o bem, regressou a casa, e é hoje a única e verdadeira face apolínea de Abril: o capitão que após fazer o seu trabalho voltou para o quartel, onde morreu modestamente, ainda novo, consciente dos perigos das aventuras políticas extremadas e das tentações de engenharia social.

Vasco Pulido Valente disse o essencial sobre Otelo em 1979, e só precisou de quatro palavras: “Viva Otelo! Na reserva.” Sempre muito cheio de si e convencido das suas qualidades, Otelo não seguiu o conselho. A probabilidade de ele ter alguma competência para liderar o país seria semelhante à de Mário Soares ser um mestre a conduzir colunas de chaimites. A megalomania de Otelo impediu-o de perceber isso.

Em pleno Verão de 1975 – era ele, então, o “general Otelo Saraiva de Carvalho” –, andou entretido a fazer viagens de Estado e de estudo pela Suécia e por Cuba. Estranhamente, preferiu o modelo cubano para Portugal, e à chegada a Lisboa declarou: “Parece que se vai tornando impossível fazer uma revolução socialista na totalidade pela via pacífica.” Foi o tempo em que ameaçou colocar “os contra-revolucionários no Campo Pequeno”. Otelo cometeu demasiados erros na época do COPCON, e errou de forma catastrófica na época das FP-25. Podia ter sido apenas um herói, mas os deuses amaldiçoaram-no com a pior das cegueiras: a inconsciência das suas próprias limitações.

https://www.publico.pt/2021/07/27/opiniao/opiniao/otelo-principio-peter-1971905
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