OPINIÃO
* Manuel Loff
27 de Julho de 2021, 0:15
“Há em mim uma série de contradições imensas”, confessou há anos a Paulo Moura, que dele fez a sua última biografia (Otelo, o revolucionário, 2012). Tinha toda a razão. Tal é seguramente verdade com a maior parte de nós, mas a biografia de Otelo Saraiva de Carvalho é feita de muitas.
A primeira delas é apenas aparente mas é a que fez com que tivéssemos uma dívida de gratidão para com ele. A de, sem antecedente algum que possa ser descrito como democrático ou rebelde, se ter transformado num protagonista central do MFA que, coletivamente, organizou o 25 de Abril de 1974 mas que entregou a Otelo em particular a preparação do plano de operações. Participar num movimento de jovens oficiais rapidamente transformado em conspiração para, ao fim de doze anos de guerra colonial, derrubar uma ditadura que, ao fim de 47 anos, lhes devia parecer confundir-se com a identidade do seu próprio país, não foi, de forma nenhuma, pouca coisa. Naqueles meses de preparação do 25 de Abril, Otelo conquistou um lugar na História e na nossa memória coletiva, e é isso mesmo que lhe reconhecem hoje todos quantos, com mais ou menos reservas ao seu percurso posterior, sabem bem como esse momento foi decisivo nas vidas dos portugueses e dos povos sujeitos ao nosso domínio colonial.
Nada havia no percurso biográfico anterior de Otelo que o fadasse para, aos 36 anos, romper a hierarquia castrense, montar a única conspiração que conseguiu derrubar a ditadura e que se viesse a transformar no revolucionário que nele reconheceram muitos portugueses. O mesmo, aliás, se pode dizer da grande maioria dos capitães de Abril, o que torna ainda mais admirável o ato de rebeldia deles todos: formados no seio de umas Forças Armadas intrinsecamente reacionárias às grandes mudanças do séc. XX, garantes da ditadura que elas próprias instauraram e do império colonial que preenchia o imaginário da instituição, estes oficiais constituíram-se como rebeldes e, contra as ordens dos seus superiores, acabaram com o regime para acabar com a guerra em que eles próprios tinham combatido durante mais de uma década.
Outra contradição é, afinal, uma das características centrais do processo revolucionário português – aliás, de qualquer processo intenso de mudança, que tende a fazer com que os atores políticos e sociais procurem não perder o pé. O jovem capitão que manteve sempre admiração por Spínola (como confessou a Paulo Moura, PÚBLICO, 24.4.2009) começou por ser tido como um spinolista, para, depois do 28 de Setembro, passar a autodefinir-se como social-democrata, como lembra Sánchez Cervelló; é só depois do 11 de Março que Otelo passa a ser aquilo que a maior parte de nós se lembra: o comandante do COPCON por ele descrito como “vanguarda e braço armado do MFA”, o homem que julgava que “se tivesse mais cultura política seria o Fidel Castro da Europa”, o candidato presidencial que, no verão de 1976, galvanizou a maioria do povo de esquerda que queria a revancha do 25 de Novembro, apesar de este não ter, longe disso, impedido o avanço da Reforma Agrária e a consagração constitucional de muitas das conquistas de Abril.
Pelo meio, depois de ser o comandante militar com mais poder em Portugal, permanentemente enfrentado com Vasco Gonçalves e com o PCP, referência da maioria das correntes da extrema-esquerda, sem, contudo, queimar as pontes com os moderados do Grupo dos 9, foi preso por ordem das Forças Armadas dos tempos de Eanes duas vezes, em 1976 e outra em 1977. Todo aquele capital político esfumou-se em pouco tempo. Nos anos seguintes, desde a criação da FUP e o desastre da sua segunda campanha presidencial (1980) ao seu envolvimento na concretização do Projeto Global que, em 1975, havia sido concebido por militantes do PRP-BR, sob a forma das FP-25 – processo no qual ele sempre rejeitou qualquer participação –, a biografia de Otelo está marcada pela irrelevância política, o esmagamento policial e judicial e a batalha pela sua reabilitação.
Os últimos 25 anos de Otelo são feitos de bonomia, da sua habitual loquacidade, da surpreendente reconciliação com a maioria dos camaradas de armas com que havia rompido em 1975-76, a inesperada exposição pública da sua vida privada. E, creio, também pela confirmação de muita da sua inconsistência quando, por exemplo, disse a Paulo Moura que, afinal, “foi o 25 de Novembro que restituiu ao país a pureza dos ideais do 25 de Abril”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Historiador
https://www.publico.pt/2021/07/27/opiniao/opiniao/otelo-1971917
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