domingo, 1 de agosto de 2021

João Garcia - Contas ainda por ajustar com o 25 de Abril

* João Garcia 

Conta a História pouco divulgada que houve um ministro inglês que deu ordens aos seus militares para lançar gás sobre os insurrectos inimigos. Acreditava que apenas o homem branco tinha condições para governar e que a guerra química contra os “selvagens” era necessária. Elogiou os seus militares por terem realizado um enorme lançamento de bombas de gás, pois assim “os árabes e os curdos” ficaram a saber “o que significa um verdadeiro bombardea­mento”. Para ele, Gandhi era “um faquir sedicioso”; empolgado, aconselhou os seus generais a “deitarem fogo à Europa” quando o seu país entrou na Segunda Guerra Mundial.

Também houve um general francês que conduziu uma guerra em que morreram 300 mil argelinos defensores da independência e que tudo tentou para esmagar o hoje endeusado Maio de 68.

Ambos, Churchill e De Gaulle, ficaram na História, não por estes atos raramente recordados, mas pelos enormes feitos de terem derrotado Hitler e libertado a França. Ficaram pelos feitos maiores. Como deve ser.

Spínola, o fundador do MDLP — movimento que tinha o ELP como braço armado e foi causador de muitas mortes e variadíssimos casos de violência —, desertou de Portugal com mate­rial militar. Nunca foi julgado (apenas interrogado durante umas horas em Caxias). Fala-se dele por ter defendido uma solução política para a Guerra Colonial e pelo papel que teve nos primeiros tempos de democracia — não pelo demais.

E ainda bem que assim é. Fica-se na História pelos grandes contributos. Devem omitir-se ou minorar os erros? Nada disso, primeiro para não falsear a História; depois para, por mera pedagogia, se perceber que até grandes homens dizem e fazem enormes asneiras. Quando se elogia o pensamento de Adriano Moreira, ex-ministro de Salazar, ou a estreita ligação de Marcelo Rebelo de Sousa a Caetano, devem sempre recordar-se estes aspetos? Não me parece.

Mas há um homem que muitos sentem necessidade de associar ao pior que fez. Otelo, obviamente. Mesmo entre os mais comedidos, são frequentes as referências aos excessos, esquecendo que, na época, certamente também os cometeram. Muitos dos que então se envolviam na política fizeram e disseram coisas que hoje os fariam corar. Foram menores os seus crimes? Talvez, mas também foram muito menores os seus feitos.

Portugal vive mal, muita da esquerda incluída, com os homens do 25 de Abril. Só dois foram conselheiros de Estado por nomeação presidencial. Contam-se pelos dedos os que tiveram cargos de destaque no Estado. Que eu conheça, há apenas um memorial, em Grândola, com nomes de homens de Abril e, no país, julgo que só foi erigido um “monumento aos capitães de Abril” em Castro Verde. Porquê? Porque, na esmagadora maioria, eles não pertenciam, e poucos entraram, aos aparelhos partidários e derrubaram a ditadura sem o beneplácito das organizações políticas. Os partidos tendem a esquecer quem teima em ficar de fora.

Os capitães de Abril toleram-se, mas não se homenageiam. Não caíram na boa graça das elites pensadoras nem dos partidos. Não lhes pertenciam

Há um homem, José Alves Costa, que o jornalista Adelino Gomes tirou da ignorância nacional. Quem é? Um heroico cabo apontador que, apesar de ter ouvido o seu brigadeiro dizer-lhe “ou dá fogo ou meto-lhe um tiro na cabeça”, se recusou a disparar contra as tropas de Salgueiro Maia, estacionadas à sua frente, a cortar a Rua do Arsenal. Um ato que levou o capitão de Abril a afirmar: “Aqui é que se ganhou o 25 de Abril.” Não deve haver, sequer, uma rua cabo apontador José Alves Costa. Na internet, as referências começam e acabam em 2014, ano de lançamento de “Os Rapazes dos Tanques”, de Alfredo Cunha e Adelino Gomes.

Temos um Aeroporto Cristiano Ronaldo mas nem um memorial à altura daqueles a quem devemos a liberdade, que a conquistaram e devolveram, que vão desaparecendo e sendo esquecidos. Não há um mural que os liste e imortalize. E luto nacional não haverá por qualquer deles, a manter-se a abstrusa explicação de Marcelo Rebelo de Sousa de que a falta de antecedentes impede homenagens futuras. Como se esta decisão não coubesse ao Governo e Presidente do momento e exigisse especial coerência. Por Sá Carneiro, o Governo da Aliança Democrática decretou cinco dias.

Os que nunca sentiram a falta da liberdade não percebem o que receberam; os que a sentiram parecem mal-agradecidos. Sentem-se melhor com a ingratidão do que com os capitães de Abril.

Jornalista, antigo membro da direção do Expresso e ex-diretor da “Visão”

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2544/html/primeiro-caderno/opiniao/contas-ainda-por-ajustar-com-o-25-de-abril


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