quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Lídia Borges - Da companhia

* Lídia Borges 

Até há pouco era bom ser sozinho.
Mesmo não sendo sozinho
saber como fazer para ser sozinho:
um recanto qualquer onde a luz não magoasse,
uma música miúda para encostar a cabeça,
um bloco de notas, um lápis…

Quando escrevo, esqueço-me
mesmo que pela lembrança,
seja o esquecimento.
Não há como chegar inteiro ao presente
Sem calcorrear o passado.

O pior de tudo agora é
saber como ir ao Futuro.
Mas… havemos de ir ao futuro,
assim nos garante Filipa Leal, num poema,
e eu acredito. Eu acredito.

Todavia acontece que nesta primavera
sem marços, sem nardos
as palavras massacram-me, molestam-me
e as leituras ardem-me nos olhos
como lágrimas artificiais às quais
faço sérias alergia.

E de repente,
gostava que me pegassem no braço,
de pegar noutro braço
e outros braços se dessem
e, por um dia que fosse,
sermos muitos os “da companhia”.

O que eu mais queria,
nesta primavera sem marços nem nardos,
era abraçar as pessoas todas da minha rua.

[Mas onde estão as pessoas todas
da minha rua que as não oiço,
que as não sinto?]
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